A ocupação do território e o desenvolvimento urbano deve atender ao interesse geral da sociedade, sendo princípio elementar que o uso do espaço geográfico tem por finalidade maior promover a qualidade de vida, a integração social e o bem-estar dos cidadãos.
Visando isso é que o Estatuto das Cidades obriga os municípios com mais de 20 mil habitantes à elaboração do Plano Diretor, que deve ser aprovado por lei municipal e constitui-se como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
Ainda de acordo com o Estatuto das Cidades, o Plano Diretor, como parte integrante do processo de planejamento municipal, deve ser revisto, pelo menos, a cada 10 anos.
Ainda que não obedecido o prazo decenal, são comuns revisões de planos diretores que alteram o zoneamento das cidades autorizando construções e aumentando os índices construtivos.
Em outras vezes, essas revisões acabam limitando o direito de construir ou até mesmo impondo restrições, como por exemplo, criando Áreas de Preservação Permanente – APP através de simples mapas temáticos quando ausentes os seus requisitos.
Índice
1. PLANO DIRETOR DE FLORIANÓPOLIS E AS APPs
No dia 17 de janeiro de 2014, entrou em vigor o novo Plano Diretor de Florianópolis (Lei Complementar 482), que revogou o Plano Diretor dos Balneários (Lei 2193/85) atualizado pela Lei Complementar 1, de 03 de outubro de 1997 (Plano Diretor de 1997).
O Novo Plano Diretor trouxe significativas mudanças há muitas áreas da Ilha, passando a tratar imóveis com índices construtivos altos como sendo áreas de preservação permanente.
Vale lembrar que à época (em 2014), já estava em vigência o Código Florestal de 2012, que considera determinadas áreas como sendo de preservação permanente, aquelas previstas no seu art. 4º, assim como também previa o art. 21 da revogada Lei Complementar 1/97.
Ocorre que, pela atual legislação (art. 42, § 1º, I, da Lei 482/2014), consideram-se áreas de preservação permanente:
os espaços territoriais declarados de proteção pela legislação urbanística anterior, notadamente pela Lei 2.193, de 1985 e pela Lei Complementar 01, de 1997, conforme zoneamento consolidado nos mapas desta Lei Complementar, recobertos ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas, conforme definidas na legislação vigente.
Conforme se observa no caos de Florianópolis, para que uma área fosse zoneada como de preservação permanente, havia necessidade de ela já ter sido assim declarada pelas legislações urbanísticas anteriores (Lei 2.193/85 e LC 01/97), fato que acontecia se possuíssem uma das seguintes características:
I – topos de morros e linhas de cumeada, considerados como a área delimitada a partir da curva de nível correspondente a dois terços da altura mínima da elevação em relação à base;
II – encostas com declividade igual ou superior a 46,6% (quarenta e seis e seis décimos por cento);
III – mangues e suas áreas de estabilização;
IV – dunas móveis, fixas e semi-fixas;
V – mananciais, considerados como a bacia de drenagem contribuinte, desde as nascentes até as áreas de captação d`água para abastecimento;
VI – faixa marginal de 33,00 m (trinta e três metros) ao longo dos cursos d`água com influência da maré, e de 30,00 m (trinta metros) nos demais;
VII – faixa marginal de 30,00 m (trinta metros) ao longo das lagoas e reservatórios d`água situados na zona urbana, e de 50,00 (cinquenta) a 100,00 m (cem metros) para os situados na zona rural, conforme a Resolução CONAMA 004/85;
VIII – fundos de vale e suas faixas sanitárias, conforme exigências da legislação de parcelamento do solo;
IX – praias, costões, promontórios, tômbolos, restingas em formação e ilhas;
X – áreas onde as condições geológicas desaconselham a ocupação;
XI – pousos de aves de arribação protegidos por acordos internacionais assinados pelo Brasil;
XII – (vetado);
XIII – Áreas dos parques florestais, reservas e estações ecológicas.
2. LEGISLAÇÃO FEDERAL E AS APPs
No âmbito do ordenamento jurídico atual, uma área pode ser protegida ambientalmente de forma integral por constituir APP, hipótese em que a proteção se dá automaticamente, decorrendo de lei.
Significa dizer que, em cada lugar em que se manifestar de fato, serão protegidas por desempenharem alguma função ambientalmente relevante.
Nesse sentido, colhe-se da lapidar doutrina de Paulo Affonso Leme Machado[1]:
Cabe examinar as consequências jurídicas do teor do art. 4º, caput, ao dizer: “Considera-se Área de Preservação Permanente, (…) para os efeitos desta Lei” – Lei 12.651/2012 (que não se autodenominou “Código”, conforme constava na redação da anterior Lei 4.771/1965).
A APP é considerada existente, ou como devendo existir, desde que haja a ocorrência de determinadas situações fáticas. Não é necessária a emissão de qualquer ato do Poder Executivo (Federal, Estadual, do Distrito Federal ou Municipal) para que haja uma APP nos moldes previstos pelo art. 4º da lei.
Há autoaplicabilidade da própria lei, não se exigindo regulamentação para sua efetividade nos casos deste artigo.
Se dúvidas surgirem, serão problemas de medição, pois a localização e as obrigações de manutenção, de reparação, de uso, ou até a possibilidade de supressão da vegetação, decorrem da própria lei.
Com efeito, não se pode conceber áreas de preservação permanente desprovidas das funções que lhe são precípuas, devidamente referendadas pelos Códigos Florestais de 1965 e de 2012.
3. ADMINISTRAÇÃO SÓ PODE FAZER O QUE A LEI AUTORIZA
Como visto, é fácil deduzir que o instituto das áreas de preservação permanente tem objetivos bem expressos em relação à integridade dos ecossistemas e à qualidade ambiental do meio.
É de bom alvitre lembrar, que a Administração somente pode fazer o que a lei determina, nunca se sobrepondo ao entendimento ou ato de vontade do próprio administrador.
A propósito, a Constituição Federal de 1988, expressamente dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II).
Sobre o tema, Maria Sylvia Zanela Di Pietro[2] ensina que a Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei.
Não se desconhece que o município pode legislar sobre a matéria ambiental, inclusive sobre APP em área urbana, pois estaria dispondo de interesse local, suplementando a legislação federal, inclusive, podendo ampliar a proteção ambiental.
Contudo, tal ampliação não pode decorrer do zoneamento fixado em mapa temático específico anexo à Lei do Plano Diretor ― o qual reproduz a própria conceituação legal de APP da legislação federal ―, mas sim, de uma situação fática que atenda à realidade local.
4. JURISPRUDÊNCIA
Notadamente no caso de Florianópolis, como dito, muitas áreas antes passíveis de construção passaram a ser não edificantes, pois inseridas como áreas de preservação permanente.
A novel legislação contrariou o Plano Diretor de 1985 e 1997, que seguia os ditames previstos no Código Florestal de 1965 e não considerava essas mencionadas áreas como sendo de preservação permanente, e nem houve ampliação delas pelo Código Florestal de 2012.
Para nós, essa criação de APPs quando ausentes os requisitos ou suas funções ambientais, como no caso de Florianópolis, configura equívoco da Administração passível de revisão na esfera judicial. E, revisões assim já foram enfrentadas pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Em um dos casos, o imóvel foi zoneado como APP sem possuir qualquer característica para tanto, o que foi reconhecido ainda em primeira instância e confirmado pelo Tribunal, dando novo zoneamento à área, veja-se:
ADMINISTRATIVO – PRETENSÃO DE ALVARÁ PARA EDIFICAÇÃO DE RESIDÊNCIA UNIFAMILIAR NA PARTE ALODIAL DO TERRENO – RECUSA DO MUNICÍPIO SOB ALEGAÇÃO DE SE TRATAR DE ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – PERÍCIA JUDICIAL QUE AFASTA ESSA CONFIGURAÇÃO E CARACTERIZA A ÁREA COMO URBANA CONSOLIDADA E DE PRESERVAÇÃO COM USO LIMITADO (APL) ONDE SE PODE CONSTRUIR – IMÓVEL CUJA PARTE ALODIAL FAZ FRENTE COM RUA E LADEADO POR CONSTRUÇÕES – AUSÊNCIA DOS CRITÉRIOS DA LEI FEDERAL N. 4.771/1965 E DA LEI N. 2.193/1985 DO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS PARA CARACTERIZAÇÃO COMO APP – PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE – PEDIDO PROCEDENTE – RECURSO DESPROVIDO.
A Lei Federal 4.771/1965, vigente à época dos fatos e da propositura da ação, e a Lei 2.193/1985, do Município de Florianópolis, que nesse ponto não divergem, proíbem a edificação em áreas de preservação permanente (APP) cuja caracterização está bem definida nessas normas, que estabelecem os respectivos critérios.
Constatado pela perícia judicial que o imóvel não pode ser considerado de preservação permanente, porque nenhuma das variáveis está presente, tratando-se de terreno alodial em área urbana consolidada, caracterizada como de preservação com uso limitado (APL), onde se pode construir, já que também não há qualquer outro empecilho de ordem física ou geológica, até porque faz frente com uma rua e está ladeada por construções residenciais, não há como proibir a edificação de residência unifamiliar, desde que sejam respeitadas as demais exigências legais.
Observe-se que, no caso acima citado, o imóvel do demandante não detinha as características para ser zoneado como área de preservação permanente, mas sim como área de preservação de uso limitado.
Por tais motivos, como os critérios exigidos por lei não se faziam presentes, entendeu-se pela necessidade de se readequar o zoneamento do local, autorizando um índice de construção de 10%.
5. CONCLUSÃO
A revisão do plano diretor pelo Judiciário é possível e decorre justamente da necessidade de interpretação das normas de zoneamento urbano com o contexto social e ambiental em que o imóvel está inserido, sobretudo quando houver construções adjacentes em área consolidada e antropizada.
Vale destacar, que as APPs decorrem diretamente de lei, isto é, decorrem de uma situação fática. Onde quer que se constate uma das hipóteses legais vigentes aplicáveis à região para constatação de APP, haverá uma APP.
Para tanto, a lei deve indicar expressamente que tal situação ambiental será considerada “área de preservação permanente”. Não se pode deduzir que uma área ou um bioma seja uma APP apenas porque uma norma prevê que um bioma “será protegido”.
É claro que não se pode extrapolar os limites das rigorosas restrições previstas para as áreas de preservação permanente.
Agora, o que não se pode admitir, é que sejam concebidas áreas de preservação permanente a restringir o direito de construir por mera alteração do Plano Diretor que concebe APPs em seus mapas temáticos desprovidas dos requisitos para tal, ocasião em que cabível demanda judicial para alterar o zoneamento de acordo com a realidade fática.