A Cédula de Produto Rural – CPR foi instituída pela Lei 8.929/94[1], através da qual o emitente se compromete a entregar ao credor uma quantidade de produto nela registrada, mesmo sem existência ao tempo do negócio, em data futura, mediante o recebimento antecipado do preço para custeio da produção agrícola.
Assim, o produtor tem a sua disposição a troca de produto rural por insumos, ou a venda antecipada do produto cultivado pelo produtor para a agroindústria ou empresas que atuam no ramo de exportação desses produtos.
Trata-se, pois, de um ajuste negocial de compra e venda de produto rural, que está atrelado a instrumento contratual em separado onde ocorre o pagamento antecipado do preço pelo comprador (à vista) e entrega prometida do produto negociado pelo vendedor na data do vencimento da cédula.
Logo, se a causa primária subjacente de emissão da CPR é uma venda e compra de produto rural, tal origem deverá direcionar o título até seu final cumprimento, quer no sentido de obrigar o emitente a entregar a coisa ao comprador, assim como no sentido de constranger o comprador ao pagamento do preço ao tempo da confecção da cédula, na sua fiel medida.
Dessa forma, já que se trata de venda antecipada, cujo objetivo é custear a produção agrícola, obviamente um dos requisitos da CPR, inclusive para sua validade até como título executivo extrajudicial, é o pagamento do preço.
Sobre o tema em questão, oportuna à colação da lição do doutrinador Lutero de Paiva Pereira[2]:
É, portanto, a CPR, um título contra o qual a teoria da abstração plena não se aplica, já que a causa primária de sua emissão, ou seja, a compra e venda do bem prometido, somente tem-se por perfeita e acabada, nos termos do art. 1.122, in fine, do código Civil, mediante o pagamento do preço acordado.
A prova do pagamento, em face de se apresentar como um título causal, deve acompanhar sempre a Cédula, para que a exigência da entrega, que por meio dela é exercida pelo credor não sofra qualquer obstáculo e até mesmo quando se tratar do credor endossatário, visto que a parte final do inc. II, do art. 10 adiante observado, impõe ao endossante a responsabilidade pela existência da obrigação.
O não pagamento do produto negociado retira da CPR a condição de título executivo por lhe faltar requisito essencial, consistente na exigibilidade, que, na lição de Humberto Theodoro Júnior[3], ocorre quando o seu pagamento não depende de termo ou condição, nem está sujeito a outras limitações.
Índice
1. Discussão da causa debendi da CPR
Como se vê da leitura da Lei 8.929/94, embora não tenha sido a intenção do legislador, é cediço que a CPR geralmente é firmada visando à captação, pelo cooperado, de recursos financeiros necessários à produção da safra, sendo emitida pelos produtores rurais para garantia de produtos agrícolas, principalmente de insumos adquiridos, encerrando uma promessa de entrega, em quitação, do produto agropecuário.
Nesse sentido, em que pese a CPR seja, em regra, dotada de literalidade, autonomia e abstração, tais características não são absolutas, de maneira que, não havendo circulação do título, é possível discutir a sua causa debendi.
Quanto à matéria, convém trazer os ensinamentos do Ilustre doutrinador Fábio Ulhoa Coelho[4], verbis:
A abstração, então, somente se verifica se o título circula. Em outros termos, só quando é transferido para terceiros de boa-fé, opera-se o desligamento entre o documento cambial e a relação em que teve origem.
A consequência disso é a impossibilidade de o devedor exonerar-se de suas obrigações cambiárias, perante terceiros de boa-fé, em razão de irregularidades, nulidades ou vícios de qualquer ordem que contaminem a relação fundamental. E ele não se exonera exatamente porque o título perdeu seus vínculos com tal relação.
Logo, se observado esse contexto, se o título não circulou, resta caracterizada a possibilidade de discussão da causa subjacente, nos casos em que o emitente alegue o descumprimento daquilo que consta na CPR como obrigação da parte credora.
Nesse sentido, o próprio art. 476 do Código Civil é explícito ao dispor que somente poderá ser cobrada a dívida em contratos bilaterais, quando a parte interessada cumprir a sua obrigação, viabilizando, caso contrário, a discussão da causa debendi quando a CPR não circular.
2. Defesa contra execução de Cédula de Produtor Rural – CPR
A Cédula de Produto Rural é título executivo extrajudicial, por força de lei, e por possuir liquidação financeira, afigura-se como título líquido e certo, exigível, na data de seu vencimento, pelo resultado da multiplicação do preço, apurado de acordo com a quantidade do produto especificado.
Para a cobrança da CPR com liquidação financeira, cabe ação de execução por quantia certa, podendo o executado se defender através de embargos à execução, podendo alegar toda matéria de defesa que lhe couber.
É certo que, não obstante a CPR seja um título de crédito, não se pode negar que estamos diante de um contrato bilateral (sinalagmático), ou seja, um contrato em que ambas as partes têm obrigações recíprocas, e que o cumprimento da obrigação de um dos contratantes depende do adimplemento obrigacional do outro, de modo que ambos são ao mesmo tempo credores e devedores.
Por outro lado, como já dissemos linhas atrás, o Código Civil, em seu art. 476 estabelece que nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro, o que é válido para a CPR que embasa a presente demanda.
Acerca da execução de contratos bilaterais leciona o processualista Humberto Theodoro Júnior[5], com sua conhecida autoridade, que:
Na realidade, nos contratos bilaterais não há nem credor nem devedor, pois ambos os contraentes são, a um só tempo, credores e devedores. Aquele que pretender executar o respectivo crédito, terá antes que deixar de ser devedor, solvendo o débito a seu cargo e fazendo cessar a bilateralidade do vínculo contratual.
Nesse sentido é também a lição de Araken de Assis, ao citar sobre o contrato sinalagmático que:
A 4ª Turma do STJ decidiu: O contrato bilateral pode servir de título executivo quando o credor desde logo comprove o integral cumprimento de sua prestação.[6]
Nessa linha, se o credor da CPR exigir o seu pagamento sem comprovar o cumprimento de suas obrigações contratuais, mais especificamente a de entrega de produtos até a totalidade perseguida, não se terá uma obrigação certa, líquida e exigível, o que pode acarretar na extinção da execução.
3. Extinção da execução de Cédula de Produtor Rural
A teor do art. 783, do Código de Processo Civil, a CPR somente poderá ser exigida se corresponder a uma obrigação certa, líquida e exigível, verbis:
Art. 783. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível.
Nesse norte, nos termos do art. 803, inciso I, do Código de Processo Civil, evidencia-se a nulidade da execução, já que o contrato particular pactuado entre as partes não corresponde a obrigação exigível. Senão, vejamos:
Art. 803. É nula a execução se: I – o título executivo extrajudicial não corresponder a obrigação certa, líquida e exigível;
Logo, deve ser reconhecida a nulidade da execução de CPR quando, a teor do art. 803, inciso I, do Código de Processo Civil, a obrigação contida no título executivo não for exigível, a exemplo da exceção do contrato não cumprido, previsto no art. 476, do Código Civil.
Com efeito, apesar de se tratar de título executivo, entendemos que o exequente (credor da CPR) deve fazer prova do cumprimento da obrigação, ou de parte dele, de modo a não pairar dúvidas sobre a validade do título.
Desse modo, entendemos que cabe ao credor da CPR inadimplida, fazer prova na execução de que efetivamente cumpriu com a obrigação que deu origem a CPR, e de igual forma, que o valor total dos produtos e insumos condizem com o que o devedor executado teria que lhe entregar, por exemplo, em sacas de soja,
Logo, havendo de se aferir se houve a efetiva entrega dos produtos pela Embargada e em que quantidade, e ainda, que tais produtos correspondem ao valor consignado na CPR executada, tem-se que o título não se encontra revestido dos requisitos essenciais à sua exigibilidade.
Portanto, apesar da vinculação do fornecimento de produtos com a emissão da CPR, entendemos que se o credor não comprovar de forma segura e escorreita a entrega e o recebimento da totalidade dos produtos a evidenciar a exigibilidade do título executado, deve haver a extinção da execução.