Auto de infração ambiental aplicado contra a mineradora Vallourec pelo Governo de Minas Gerais que indicou multa ambiental de R$ 288,6 contém vícios que conduzem à sua integral nulidade.
Muito tem se falado na mídia nacional[1] [2] [3] [4] sobre a “multa” de R$ 288,6 milhões aplicada no dia 09.01.2022 pelo governo de Minas Gerais à mineradora Vallourec[5] por supostos danos ambientais causados pelo transbordamento de um dique da Mina Pau Branco, em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
A causa do transbordamento, ao que tudo indica, tem relação com as fortes chuvas que têm assolado a região nos últimos dias, fato notório e amplamente divulgado pela mídia.
Analisando as imagens de um vídeo[6] que circula na internet, do momento exato do transbordamento do dique, fica claro, ao menos para nós, que o motivo que fez o dique transbordar é decorrente de um fenômeno natural conhecido como cabeça d’água. Veja o momento exato em que o dique é atingido pelo fenômeno:
A cabeça d’água é um fenômeno meteorológico causado pelo aumento rápido e repentino do nível de água em rios, que ocorre quando uma grande quantidade de chuva cai em partes superiores do rio e causa uma enxurrada inesperada e volumosa. Esse fenômeno já foi causa de muitas mortes de turistas que são pegos de surpresa com a cabeça da água.
Cumpre esclarecer que, ao contrário do que veiculado pela mídia, não houve a aplicação de “multa” contra a Vallourec, mas sim, a lavratura de um auto de infração que apenas inaugura o processo administrativo destinado à apuração da infração ambiental, assegurado o direito ao contraditório e ampla defesa.
Em nota, a Vallourec informou que irá oferecer defesa administrativa contra a autuação, e, com razão, diante da flagrante nulidade que permeia do Auto de Infração 289702/2022.
Referido auto de infração foi analisado pelos Advogados do Escritório Farenzena & Franco Advocacia Ambiental, limitando-se o presente artigo à análise da responsabilidade administrativa ambiental da Vallourec, tendo em vista que também há outros vícios que maculam a higidez do auto de infração em comento e que serão objeto de outro estudo, a saber:
- ilegalidade na aplicação da reincidência;
- desproporcionalidade do valor da multa indicada;
- vício de motivação;
- cerceamento de defesa;
- atipicidade da conduta;
- ausência de indicação dos parâmetros utilizados para a dosimetria da multa;
- descrição genérica da infração, dentre outros.
Também importante esclarecer que o presente estudo foi elaborado de forma independente e sem qualquer vínculo com a empresa autuada, e, inobstante a análise aqui lançada, prestamos nossa solidariedade ao povo mineiro que tem enfrentado uma série de prejuízos e tragédias em decorrência das chuvas.
Índice
1. Auto de infração (e não multa) aplicado à Vallourec
O auto de infração 289702/2022 lavrado em face da Vallourec teve como tipificação a Lei Estadual 7.772/80:
Art. 112 – Constituem infrações às normas previstas na Lei nº 7.772, de 1980, na Lei nº 13.199, de 1999, na Lei nº 14.181, de 2002, na Lei nº 14.940, de 2003, na Lei nº 18.031, de 2009, na Lei nº 20.922, de 2013, na Lei nº 21.972, de 2016, na Lei nº 22.231, de 2016, na Lei nº 22.805, de 2017, na Lei nº 23.291, de 25 de fevereiro de 2019, e na Lei Federal nº 9.605, de 1998, as tipificadas nos Anexos I, II, III, IV e V.
§ 1º – As penalidades previstas nos Anexos I, II, III, IV e V incidirão sobre os autores, sejam eles diretos, contratuais, e bem como a todos aqueles que de qualquer modo concorram para a prática da infração, ou para dela obter vantagem.
§ 2º – Os valores das penalidades de multa previstas nos Anexos I, II, III, IV e V serão indicados através da Ufemg. […]
A infração imputada está prevista no Código 114 do Decreto 47.383/18, assim descrita:
Código 114. Descrição da infração: Causar intervenção de qualquer natureza que resulte em poluição, degradação ou dano aos recursos hídricos, às espécies vegetais e animais, aos ecossistemas e habitats ou ao patrimônio natural ou cultural, ou que prejudique a saúde, a segurança e o bem estar da população.
A descrição sumária da infração foi assim redigida no auto de infração:
Descrição: Causar intervenção de qualquer natureza que resulte em poluição, degradação ou dano aos recursos hídricos, às espécies vegetais e animais, aos ecossistemas e habitats ou ao patrimônio natural ou cultural, ou que prejudique a saúde, a segurança e o bem estar da população.
No campo de “observações” do auto de infração, constou:
Observações O transbordamento do Dique de Contenção de Sedimentos Lisa causou os seguintes impactos ambientais: 1) impacto na vegetação e degradação do solo; 2) interdição da rodovia BR 040, na altura do km 562. Além disto, de acordo com a Nota Técnica nº 1/FEAM/DGER/2022, também estão relacionados a este evento, os seguintes impactos ambientais, visíveis e imediatos: 3) degradação da paisagem e fragmentação de habitats; e 4) poluição de corpos hídricos, com o aumento dos sólidos em suspensão, com potencial mortandade de peixes, supressão e degradação de habitats aquáticos e ripários (pela deposição de rejeito no leito e margens). A Infração é tipificada pelo código 114 do Decreto Estadual 47383/18 e seu valor fixado pelo Art. 80 deste mesmo decreto devido ao seu enquadramento nos quesitos por ele estabelecidos. Foi constatado que os impactos alcançaram duas unidades de conservação, a APA Estadual Sul RMBH, constituída pelos atos legais Decreto 35624/94, Decreto 37812/96 e Lei Estadual 13.960/01, bem como o Monumento Natural Municipal Serra da Calçada, constituído pelo ato legal Decreto 5320/2013, alterada pela Lei Municipal 2186, de 29/12/2020.
Por ocasião da lavratura do auto de infração, a agente autuante indicou quatro agravantes previstas nas alíneas “a”, “b”, “c” e “j” do inciso II do art. 85 do Decreto 47.383/18:
Art. 85 – Sobre o valor base da multa serão aplicadas circunstâncias atenuantes e agravantes, conforme o que se segue:
II – agravantes, hipóteses em que ocorrerá aumento da multa em 30% (trinta por cento):
a) dano ou perigo de dano à saúde humana;
b) dano sobre a propriedade alheia;
c) dano sobre Unidade de Conservação; […]
j) ter o agente cometido infração que provoque a interdição total de vias públicas, estradas ou rodovias.
Além das agravantes, foi indicado pela agente autuante a existência de reincidência genérica prevista no art. 83 do Decreto 47.383/18, que acarreta multa em dobro:
Art. 83 – Para fins da fixação do valor da multa a que se referem os arts. 77, 78, 79 e 80, serão observados os seguintes critérios:
II – se for constatada reincidência, genérica ou específica, o valor base da multa será o valor máximo cominado, sendo este sempre o dobro do valor mínimo, acrescido conforme disposições no código da infração, quando for o caso.
O valor total da multa indicado pela agente autuante perfaz o montante de 60.503.388,18 UFEMG, que, de acordo com a Resolução 5.523/2021[7], para o exercício de 2022, tem valor de R$ 4,7703 por UFEMG, totalizando R$ 288.619.112,63.
Por fim, também foi imposta a suspensão imediata das atividades relacionadas à Pilha Cachoeirinha e ao Dique Lisa, até que sejam apresentados documentos que garantam a estabilidade destas estruturas, ressalvadas a execução de medidas que visam estabilização das estruturas e retomada das condições de segurança.
Feita essa análise dos fatos e fundamentos que levaram à autuação da Vallourec, passemos agora aos elementos que caracterizam a nulidade do auto de infração, aqui limitada à ausência de responsabilidade administrativa.
2. Responsabilidade administrativa da Vallourec é subjetiva
Em que pese existir certa discricionariedade administrativa, é necessário ponderar que a Vallourec, em nossa análise, não contribuiu com qualquer ação ou omissão para a ocorrência do alegado dano ambiental.
Além do mais, a mineradora não se enquadra no núcleo do tipo administrativo que lhe fora imputado (Código 114 do Decreto 47.383/18), conquanto este pune a conduta daquele que “causar intervenção”, ou seja, seria necessário que a Vallourec tivesse praticado alguma intervenção que resultasse no dano, ou seja, uma interferência, ingerência, intromissão, influência, intercessão, interposição, o que de fato não aconteceu, ante a ocorrência de eventos externos (chuvas).
Além do mais, não se pode perder de vista que a mineradora adotou as providências necessárias à recuperação do dano conforme demonstrado em algumas demandas judiciais movida contra a empresa após o fato, não se observando razões para a aplicação da reprimenda, que, inclusive, é superior ao teto legal permitido.
Assim, é de fundamental importância diferenciarmos responsabilidade objetiva e subjetiva para perquirir qual incide sobre a Vallourec.
Pois bem. Pacificado na jurisprudência, temos que a responsabilidade pelo dano ambiental, na seara cível, é de natureza objetiva (teoria do risco integral), solidária (obrigação propter rem) e ilimitada, sendo regida pelos princípios poluidor-pagador e da reparação integral.
Por outro lado, a responsabilidade administrativa que enseja a imposição de sanção ao infrator (e não a obrigação de recuperação ambiental) é de cunho subjetivo, devendo ser demonstrada a autoria da degradação ambiental e existência de culpa ou dolo.
Isto é, a responsabilidade administrativa ambiental é de natureza subjetiva, conquanto não obedece à lógica da responsabilidade objetiva da esfera cível, mas deve obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ser cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano.
Nesta senda, a aplicação e a execução das penas na seara administrativa, limitam-se aos transgressores, porquanto somente podem ser aplicadas a quem efetivamente praticou a infração com dolo ou culpa, demonstrando-se ainda, o nexo entre a conduta e o dano, elementos ausentes no caso da Vallourec.
Isso porque, para nós, o motivo do transbordamento é decorrente das fortes e atípicas chuvas de intensidade e amplitude absolutamente anormal que causou vários desastres no Estado de Minas Gerais, e, somente houve o transbordamento do dique quando formado o fenômeno da cabeça d’água na cabeceira do dique.
Por outro lado, a reparação ambiental, de cunho civil, é regida pela responsabilidade objetiva, onde não se exige para sua caracterização, a comprovação de culpa ou dolo, bastando apenas a demonstração da presença do liame causal entre a conduta (omissiva ou comissiva) e o evento danoso, situação que, a priori, poderia tornar a Vallourec responsável pelo transbordamento, frise-se, na esfera cível, e não na administrativa.
Contudo, muito embora a responsabilidade civil ambiental seja objetiva e integral, é obrigatória a demonstração de nexo de causalidade apto a vincular o resultado lesivo efetivamente verificado ao comportamento (comissivo ou omissivo) daquele a quem se repute a condição de agente causador, in casu, a Vallourec. Se ausentes estes elementos na esfera cível, também restará afastada a responsabilidade cível da mineradora.
3. Nulidade do auto de infração aplicado à Vallourec
Feita essa digressão, retornemos ao caso específico do auto de infração lavrado pelo órgão ambiental de Minas Gerais contra a mineradora Vallourec, que, para nós, é nulo, visto que da própria descrição sumária da infração não é possível extrair qualquer elemento caracterizador da responsabilidade administrativa, a reiterar, dolo ou culpa, e o nexo entre a conduta e o dano.
O referido auto de infração foi lavrado, depois que fortes chuvas atingiram a região em que localizado o dique da Mina Pau Branco, em Nova Lima, tendo como motivação o seu transbordamento, que, para nós, foi causado por uma cabeça d’água, conforme evidencia o vídeo que circula na internet acima inserido.
Tendo em conta que a responsabilidade administrativa ambiental depende da aferição de culpa, o ônus da sua demonstração é do órgão fiscalizador/autuante. No caso, o auto de infração por nós analisado, ao indicar mero transbordamento do dique, não apontou qualquer elemento de negligência, imperícia ou imprudência (dolo ou culpa) da Vallourec.
Outrossim, se observa que, de imediato, a empresa adotou todas as providências emergências para o atendimento do sinistro, de acordo com os procedimentos operacionais vigentes, conforme relatado em algumas demandas judiciais as quais tivemos acesso, como aquela ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais após o fato, que pede o bloqueio de R$ 1 bilhão[8] [9] [10] em contas da Vallourec.
De outro lado, restou inconteste a existência de um fator de força maior: intensa chuva no local. Assim, seja pela falta da prova de culpa, seja pela existência de força maior (rompimento do nexo de causalidade), não resta consolidado o ilícito administrativo.
Noutros termos, há apenas um sinistro ambiental decorrente do impacto da atividade — que muito se diferencia de dano ambiental — que demanda a devida recomposição/indenização apenas na esfera cível, desde que demonstrado o nexo de causalidade apto a vincular o resultado lesivo ao comportamento (comissivo ou omissivo) da Vallourec.
Concluímos, assim, que o auto de infração aplicado à Vallourec padece de vício, pois não demonstrado pela agente autuante os pressupostos caracterizados da responsabilidade administrativa ambiental.
3. Conclusão
Ao que se vê, o Estado de Minas Gerais acabara de ser submetido a fortes chuvas, em patamares absolutamente inesperados, o que configura caso de força maior, razão pela qual há total ausência de responsabilidade administrativa da mineradora Vallourec em relação ao transbordamento do dique da Mina Pau Branco.
Como visto, o auto de infração foi lavrado por autoridade ambiental do Estado de Minas Gerais, indicando multa no valor de R$ 288.6 milhões, por suposta ofensa ao Código 114 do Decreto Estadual, sem qualquer comprovação de dolo ou culpa ou do nexo causal entre a conduta e o alegado dano.
No entanto, as fortes chuvas ocorridas se deram em quantidade atípica, de intensidade e amplitude absolutamente anormal, causando vários desastres por todo o Estado, noticiado nacionalmente devido à sua gravidade, não havendo, pois, como serem previstas, razão pela qual, para nós, aplicável a força maior, por se tratar de evento imprevisível, fora de qualquer escala já presenciada, sob a qual a Vallourec não possuía qualquer controle, ou seja, não há como se negar a ocorrência de força maior, circunstância que afasta qualquer possibilidade de demonstrar dolo ou culpa e o nexo causal entre a conduta e o dano.
Trata-se, portanto, de situação excepcional, que foge à normalidade, decorrente de evento da natureza, não havendo que se falar em ilegalidade no agir da Vallourec que possa dar ensejo à lavratura de um auto de infração.
Nesse diapasão, tem-se a quebra do nexo causal ensejador da responsabilidade da Vallourec, porquanto o evento configura força externa, alheio às atividades desenvolvidas pela empresa, não se inserindo nas hipóteses de risco do empreendimento.
Não há dúvidas de que o auto de infração é nulo tendo em vista as circunstâncias de sua lavratura, não havendo culpa ou dolo da Vallourec, tão pouco nexo entre sua conduta e o alegado dano, uma vez que foram causados por chuva intensa (cabeça d’água), caso de força maior, excludente de responsabilidade.
Nesse sentido, não cabe à Vallourec demonstrar a inexistência da ilicitude ou do nexo causal, pelo contrário, é do órgão fiscalizador o ônus de aplicar a multa somente quando restarem configurados tais elementos, mormente porque a responsabilidade administrativa por infração ambiental é subjetiva, dependendo da efetiva ocorrência de ilicitude praticada pelo administrado.
Conquanto louvável a preocupação do Governo de Minas Gerais com a proteção do meio ambiente, esta não pode vir em atropelo das garantias processuais e constitucionais, normas de ordem pública e, de regra, indeclináveis, seguida de imposição de arbitrariedades em desfavor daquele que fora atingido por um fenômeno natural, afigurando-se qualquer imposição de multa verdadeiro ato confiscatório.
O que se extrai da conclusão do órgão ambiental de Minas Gerais, é que a autuação lavrada em face da Vallourec está amparada na responsabilidade objetiva do poluidor pela reparação do dano ambiental, tendo como o risco de chuvas acima do normal fato inerente à atividade exercida pela empresa e que caberia a ela adotar medidas adequadas para impedir o transbordamento.
Tais entendimento claramente confunde a responsabilidade administrativa com a responsabilidade civil ambiental, esta sim, de natureza objetiva e independente da configuração de ato ilícito. No entanto, o fato de a empresa ser, em tese, objetivamente responsável pela reparação do dano ambiental causado (transbordamento do dique), não implica que possa ser penalizada administrativamente por tal circunstância.
Vale reiterar que a responsabilidade administrativa ambiental decorre da aplicação de sanção administrativa prevista em lei para determinado ato tipificado como transgressor, ou, em outras palavras, um comportamento em desobediência a determinada norma, uma conduta contrária a ela, razão por que possui natureza subjetiva, aferindo-se a responsabilidade mediante a comprovação de culpa e do nexo causal entre a conduta e o dano.
No caso da Vallourec, não há comprovação de que teria ela praticado, concorrido ou se beneficiado da infração, o que impossibilita sua responsabilização, inexistente conduta ilícita que lhe possa ser atribuída, tampouco qualquer vínculo subjetivo com o ilícito ocorrido.
Portanto, inexistente prova inequívoca da autoria da infração por parte da Vallourec, mostram-se ausentes os pressupostos necessários a ensejar sua responsabilidade administrativa, devendo ser desconstituída a presunção de legalidade e legitimidade que possui o ato administrativo, razão pela qual afigura-se nulo o auto de infração estudado.