EXCELENTÍSSIMO (A) SENHOR (A) DOUTOR (A) DESEMBARGADOR (A) PRESIDENTE DO GRUPO DE DIREITO CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA
REVISIONANDO, 61 anos de idade, brasileiro, casado, aposentado, inscrito no RG sob o n… expedido pela SSP/SC, e CPF n…, residente e domiciliado na Rua…, n…, Bairro…, Florianópolis/SC, CEP…, vem, por seu advogado, à honrada presença de Vossa Excelência, com fundamento no artigo 621, I, do Código de Processo Penal, requerer
REVISÃO CRIMINAL COM PEDIDO LIMINAR
em face da sentença condenatória transitada em julgado proferida nos autos n…, que tramitou na Vara Criminal da Capital – SC, requerendo ao final, que seja julgada procedente conforme as razões de fato e de direito a seguir expostas.
EMÉRITOS (AS) DESEMBARGADORES (AS) DO GRUPO DE DIREITO CRIMINAL
1. DO CABIMENTO
A presente revisão criminal encontra amparo no art. 621, inciso I, do Código de Processo Penal, na medida em que visa corrigir erro judicial, pois a sentença condenatória que se pretende revisar, além de ser contrária ao texto expresso da lei penal, também não observou a evidencia dos autos, tão pouco a ilegalidade das provas produzidas durante a persecução penal, como será demonstrado a seguir.
Sobre a possibilidade de revisão criminal nesses casos, anota Guilherme de Souza Nucci que “havendo a jurisprudência firmado entendimento de que a lei deve ser interpretada num determinado prisma – até porque sua redação é confusa, o que não é raro – cabe revisão criminal, com base em afronta à lei, quando o magistrado adotar posicionamento oposto ao majoritário. ” (Código de processo penal comentado. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 1.070). Portanto, mostra-se perfeitamente cabível a presente revisão criminal.
2. DOS FATOS
Depreende-se dos autos, que no dia 21 de abril de 2016, durante fiscalização de rotina, a Polícia Militar Ambiental adentrou em um sítio rural que estava com a porteira aberta, o qual é de propriedade do revisionando, localizado no interior do município de Florianópolis.
Os depoimentos dos policiais militares na Central de Polícia, confirmam que tratava-se de fiscalização de rotina e entraram em um sítio que estava com a porteira aberta, e quando se aproximaram da casa, avistaram aves em gaiolas em uma área externa, ocasião em que foram recepcionados pela esposa do revisionando. Em seguida, um dos policiais se deslocou para a sacada do imóvel porque avistou mais duas aves.
A partir disso, vistoriaram o interior da residência, ocasião em que encontraram o revisionando em um quarto, uma arma de fogo do tipo espingarda calibre .12 com registro vencido, e outra espingarda do tipo garrucha de fabricação caseira na garagem da casa, além de munições calibre .12 e .36 na gaveta de uma cômoda e em cima de um freezer.
Diante dos fatos, os policiais deram voz de prisão ao revisionando, o qual foi conduzido a Central de Polícia onde foi mantido preso até ser concedida a liberdade provisória.
Ocorre que os policiais vistoriaram o imóvel, em total desacordo com o preceito constitucional, que estabelece taxativamente, quatro exceções à inviolabilidade: (i) flagrante delito; (ii) desastre, (iii) prestação de socorro, e, (iv) determinação judicial, pois o flagrante apenas ocorreu após a violação do domicílio, que ocorreu sem nenhuma justa causa. Não havia denúncia contra o revisionando, muito menos fundadas razões de que ali estaria ocorrendo crime que permitisse a penetração na residência.
Após a instrução processual, sobreveio sentença que condenou o revisionando pela prática do crime previsto no art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/2003, à pena privativa de liberdade de 3 anos de reclusão, em regime inicialmente aberto, substituída por duas penas restritivas de direito, consistente na prestação pecuniária e de serviços à comunidade.
Em que pese ter sido arguida a violação ilegal do domicílio do revisionando requerendo a declaração de nulidade das provas, o MM Juiz que proferiu a sentença condenatória se limitou a não acolher o pedido porque entendeu ter sido feito de maneira genérica.
Na verdade, concessa maxima venia, genérica foi a fundamentação da sentença, que a propósito, condenou o revisionando em delito diverso do praticado.
Ocorre que a busca no interior do imóvel é flagrantemente ilegal, pois o domicilio do revisionando foi violado sem qualquer justificativa, razão pela qual busca-se em sede de revisão criminal anular o processo originário. Subsidiariamente, caso não seja declarado nulo, requer seja revisada a condenação com base no art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/2003, vez que é equivocada, necessitando de reclassificação por este Grupo, conforme será demonstrado.
3. DA VIOLAÇÃO AO DOMICÍLIO
O art. 5º, XI, da Constituição da República consagrou o direito fundamental relativo à inviolabilidade domiciliar, ao dispor que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
O Pacto de São José da Costa Rica[2] e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos[3] também protegem o domicílio contra ingerências arbitrárias.
O texto constitucional estabeleceu, na referida regra, a máxima de que a residência é asilo inviolável, atribuindo-lhe contorno de direito fundamental vinculado à proteção da vida privada e ao direito à intimidade.
Ao mesmo tempo, previu, em numerus clausus, as respectivas exceções, quais sejam: a) se o morador consentir; b) em flagrante delito; c) em caso de desastre; d) para prestar socorro; e) durante o dia, por determinação judicial.
Ocorre que no âmbito processual penal, o direito à inviolabilidade de domicílio esbarra no campo probatório, de forma que, a validade das provas ou mesmo dos procedimentos probatórios são nulos.
O contexto fático, portanto, deve servir de suporte para justificar a ocorrência de uma das situações e flagrante que autorize a violação de domicílio.
Em outros termos, as circunstâncias que antecederem a violação do domicílio devem evidenciar, quantum satis e de modo objetivo, as fundadas razões que justifiquem o ingresso no domicílio e eventual prisão em flagrante.
No caso em tela, evidente que não foi demonstrada a presença de elementos mínimos que indicassem a suspeita de situação de flagrante delito, a permitir a quebra da garantia da inviolabilidade de domicílio do revisionando, pois é evidente, conforme corroboram os depoimentos, que somente após o ingresso na residência, é que foram localizadas as armas de fogo e munições.
E, nessa linha de raciocínio, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 603.616/RO, em 05.11.2015, ao analisar questão de repercussão geral manifestou-se pela legalidade das provas obtidas mediante invasão de domicílio por autoridades policiais sem o devido mandado de busca e apreensão, desde que haja a demonstração de que a medida tenha sido adotada mediante justa causa, com a indicação de elementos mínimos que caracterizem a suspeita de uma situação que autorize o ingresso forçado em domicílio, não justificando a medida a mera constatação de situação de flagrância posterior ao ingresso.
Acontece que não foi demonstrada a justa causa, mesmo porque, o revisionando e sua esposa eram à época dos fatos e ainda são, aposentados. Dessa forma, ausentes os requisitos que autorizam a penetração da polícia na residência, o MM Juiz ao proferir a sentença condenatória deveria ter extinguido o processo por tratar-se de provas ilegais.
Confira-se, por oportuno, o noticiado no Informativo n. 806 do Excelso Pretório, no qual se consignou que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões – na dicção do art. 240, § 1º do CPP – devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito, e ainda, que a entrada forçada em domicílio é arbitrária, de modo que não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida:
A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados. Essa a orientação do Plenário, que reconheceu a repercussão geral do tema e, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário em que se discutia, à luz do art. 5º, XI, LV e LVI, da Constituição, a legalidade das provas obtidas mediante invasão de domicílio por autoridades policiais sem o devido mandado de busca e apreensão. O acórdão impugnado assentara o caráter permanente do delito de tráfico de drogas e mantivera condenação criminal fundada em busca domiciliar sem a apresentação de mandado de busca e apreensão. A Corte asseverou que o texto constitucional trata da inviolabilidade domiciliar e de suas exceções no art. 5º, XI (“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”). Seriam estabelecidas, portanto, quatro exceções à inviolabilidade: a) flagrante delito; b) desastre; c) prestação de socorro; e d) determinação judicial. A interpretação adotada pelo STF seria no sentido de que, se dentro da casa estivesse ocorrendo um crime permanente, seria viável o ingresso forçado pelas forças policiais, independentemente de determinação judicial. Isso se daria porque, por definição, nos crimes permanentes, haveria um interregno entre a consumação e o exaurimento. Nesse interregno, o crime estaria em curso. Assim, se dentro do local protegido o crime permanente estivesse ocorrendo, o perpetrador estaria cometendo o delito. Caracterizada a situação de flagrante, seria viável o ingresso forçado no domicílio. Desse modo, por exemplo, no crime de tráfico de drogas (Lei 11.343/2006, art. 33), estando a droga depositada em uma determinada casa, o morador estaria em situação de flagrante delito, sendo passível de prisão em flagrante. Um policial, em razão disso, poderia ingressar na residência, sem autorização judicial, e realizar a prisão. Entretanto, seria necessário estabelecer uma interpretação que afirmasse a garantia da inviolabilidade da casa e, por outro lado, protegesse os agentes da segurança pública, oferecendo orientação mais segura sobre suas formas de atuação. Nessa medida, a entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa conforme o direito, seria arbitrária. Por outro lado, não seria a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificaria a medida. Ante o que consignado, seria necessário fortalecer o controle “a posteriori”, exigindo dos policiais a demonstração de que a medida fora adotada mediante justa causa, ou seja, que haveria elementos para caracterizar a suspeita de que uma situação a autorizar o ingresso forçado em domicílio estaria presente. O modelo probatório, portanto, deveria ser o mesmo da busca e apreensão domiciliar — apresentação de “fundadas razões”, na forma do art. 240, §1º, do CPP —, tratando-se de exigência modesta, compatível com a fase de obtenção de provas. Vencido o Ministro Marco Aurélio, que provia o recurso por entender que não estaria configurado, na espécie, o crime permanente. RE 603616/RO, rel. Min. Gilmar Mendes, 4 e 5.11.2015. (RE-603616).
Evidente Excelência, que a posse de armas no interior do domicílio não caracteriza situação de flagrância a permitir a medida, pois como dito, foi somente após a entrada na residência, que os policiais militares localizaram as armas e munições. Isso consta nos depoimentos dos policiais. Daí a ilegalidade do ato. Ademais, o registro da espingarda calibre .12 estava vencido, caracterizando mera infração administrativa, e não prisão em flagrante.
Sobre a delimitação das circunstâncias que indicariam a existência dessas fundadas razões, assinalou o Ministro Relator Gilmar Mendes (RE 603616/RO):
É amplo o leque de elementos que podem ser utilizados para satisfazer o requisito. O policial pode invocar o próprio testemunho para justificar a medida. Claro que o ingresso forçado baseado em fatos presenciados pelo próprio policial que realiza a busca coloca o agente público em uma posição de grande poder e, por isso mesmo, deve merecer especial escrutínio. No entanto, ao ouvir gritos de socorro e ruídos característicos de uma briga vindos de dentro de uma residência, o policial tem fundadas razões para crer que algum crime está em andamento no ambiente doméstico. Não se deve exigir que busque confirmação adicional para agir. Por outro lado, provas ilícitas, informações de inteligência policial – denúncias anônimas, afirmações de “informantes policiais” (pessoas ligadas ao crime que repassam informações aos policiais, mediante compromisso de não serem identificadas), por exemplo – e, em geral, elementos que não têm força probatória em juízo não servem para demonstrar a justa causa.
A ementa do aresto foi sintetizada nos seguintes termos:
Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal. 5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. 7. Caso concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao recurso. (RE 603616, Relator (a): Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 05/11/2015, Acórdão Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-093 Divulgação 09-05-2016. Publicação 10-05-2016).
O precedente da Suprema Corte foi escorreito em assinalar que não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida, por isso busca-se por meio da presente revisão criminal, anular o processo, porque foi exatamente após a busca na residência do revisionando, que se constatou o flagrante.
Deve haver, assim, uma causa provável, ou seja, uma justa causa para o ato invasivo, a partir da segura verificação, posto que superficial, da existência de fatos ou de circunstâncias que permitam qualquer pessoa acreditar ou ao menos suspeitar, com base em elementos concretos, que um crime esteja ocorrendo no interior do domicílio (MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Método, 2011, p. 141).
Mas qual seria a justa causa para permitir a medida, tratando-se de um casal de idosos aposentados em propriedade rural, longe de qualquer força policial em caso de furto ou roubo? Aliás, os próprios policiais militares e testemunhas de defesa reconhecem que na região haviam vários furtos e roubos.
E, no que se refere ao Superior Tribunal de Justiça (assim como o Supremo Tribunal Federal), a jurisprudência foi ajustada para perquirir em qual medida a entrada forçada em domicílio é tolerável:
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INVASÃO DE DOMICÍLIO PELA POLÍCIA. NECESSIDADE DE JUSTA CAUSA. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO DO AGENTE. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental relativo à inviolabilidade domiciliar, ao dispor que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
2. A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo, o qual, na companhia de seu grupo familiar espera ter o seu espaço de intimidade preservado contra devassas indiscriminadas e arbitrárias, perpetradas sem os cuidados e os limites que a excepcionalidade da ressalva a tal franquia constitucional exige.
3. O ingresso regular de domicílio alheio depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, somente quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio.
4. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral, que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes) DJe 8/10/2010).
5. O direito à inviolabilidade de domicílio, dada a sua magnitude e seu relevo, é salvaguardado em diversos catálogos constitucionais de direitos e garantias fundamentais, a exemplo da Convenção Americana de Direitos Humanos, cujo art. 11.2, destinado, explicitamente, à proteção da honra e da dignidade, assim dispõe: “Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.”
6. A complexa e sofrida realidade social brasileira sujeita as forças policiais a situações de risco e à necessidade de tomada urgente de decisões no desempenho de suas relevantes funções, o que há de ser considerado quando, no conforto de seus gabinetes, realizamos os juízes o controle posterior das ações policiais. Mas, não se há de desconsiderar, por outra ótica, que ocasionalmente a ação policial submete pessoas a situações abusivas e arbitrárias, especialmente as que habitam comunidades socialmente vulneráveis e de baixa renda.
7. Se, por um lado, a dinâmica e a sofisticação do crime organizado exigem uma postura mais enérgica por parte do Estado, por outro, a coletividade, sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais precárias economicamente, também precisa sentir-se segura e ver preservados seus mínimos direitos e garantias constitucionais, em especial o de não ter a residência invadida, a qualquer hora do dia, por policiais, sem as cautelas devidas e sob a única justificativa, não amparada em elementos concretos de convicção, de que o local supostamente seria um ponto de tráfico de drogas, ou que o suspeito do tráfico ali se homiziou.
8. A ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativas à ocorrência de tráfico de drogas, pode fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à inviolabilidade domiciliar.
9. Tal compreensão não se traduz, obviamente, em transformar o domicílio em salvaguarda de criminosos, tampouco um espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso no domicílio alheio a situação fática emergencial consubstanciadora de flagrante delito, incompatível com o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial, legitimar a entrada na residência ou local de abrigo.
10. Se é verdade que o art. 5º, XI, da Constituição Federal, num primeiro momento, parece exigir a emergência da situação para autorizar o ingresso em domicílio alheio sem prévia autorização judicial – ao elencar hipóteses excepcionais como o flagrante delito, casos de desastre ou prestação de socorro -, também é certo que nem todo crime permanente denota essa emergência.
11. Na hipótese sob exame, o acusado estava em local supostamente conhecido como ponto de venda de drogas, quando, ao avistar a guarnição de policiais, refugiou-se dentro de sua casa, sendo certo que, após revista em seu domicílio, foram encontradas substâncias entorpecentes (18 pedras de crack). Havia, consoante se demonstrou, suspeitas vagas sobre eventual tráfico de drogas perpetrado pelo réu, em razão, única e exclusivamente, do local em que ele estava no momento em que policiais militares realizavam patrulhamento de rotina e em virtude de seu comportamento de correr para sua residência, conduta que pode explicar-se por diversos motivos, não necessariamente o de que o suspeito cometia, no momento, ação caracterizadora de mercancia ilícita de drogas.
12. A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o consentimento do morador – que deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial.
13. Ante a ausência de normatização que oriente e regule o ingresso em domicílio alheio, nas hipóteses excepcionais previstas no Texto Maior, há de se aceitar com muita reserva a usual afirmação – como ocorreu na espécie – de que o morador anuiu livremente ao ingresso dos policiais para a busca domiciliar, máxime quando a diligência não é acompanhada de qualquer preocupação em documentar e tornar imune a dúvidas a voluntariedade do consentimento.
14. Em que pese eventual boa-fé dos policiais militares, não havia elementos objetivos, seguros e racionais, que justificassem a invasão de domicílio. Assim, como decorrência da Doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada (ou venenosa, visto que decorre da fruits of the poisonous tree doctrine, de origem norte-americana), consagrada no art. 5º, LVI, da nossa Constituição da República, é nula a prova derivada de conduta ilícita – no caso, a apreensão, após invasão desautorizada do domicílio do recorrido, de 18 pedras de crack -, pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de drogas.
15. Recurso especial não provido, para manter a absolvição do recorrido. (REsp 1574681/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/04/2017, DJe 30/05/2017).
Conforme extrai-se dos precedentes das duas Cortes Superiores, é ilegal violar o domicílio para após o ingresso, constatar situação de flagrante delito que justifique a medida, como é o caso dos autos, pois nítido é, apesar de ignorado pelo Juiz prolator da sentença, que os policiais militares penetraram na residência, para então encontrar as armas e criar o flagrante, inexistente até o momento.
Indispensável é o comentário do Ministro Rogerio Schietti Cruz:
Ora, se o próprio juiz (um “terceiro neutro e desinteressado”) só pode determinar a busca e apreensão durante o dia, e mesmo assim mediante decisão devidamente fundamentada, após prévia análise dos requisitos autorizadores da medida, não seria razoável conferir a um servidor da segurança pública total discricionariedade para, a partir de mera capacidade intuitiva, entrar de maneira forçada na residência de alguém e, então, verificar se nela há ou não alguma substância entorpecente (REsp 1574681).
Em julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o então Desembargador Geraldo Prado assim vociferou:
O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de evitar que esse crime se consume. Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas casas alheias, de forma aleatória, até encontrar substrato fático, consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal. Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade, “encontrasse” à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado. (TJRJ- Apelação Criminal 2009.050.07372, Rel. Des. Geraldo Prado, julgado em 17/12/2009).
Ainda que os policiais militares tenham dito na Central de Polícia que se fizeram acompanhar pela esposa do revisionando até a sacada onde encontravam-se os outros dois pássaros, evidente que a violação ao interior da casa se deu de forma ilegal, pois os próprios depoimentos dão conta que as buscas iniciaram no interior do imóvel sem qualquer justa causa, localizando-se as armas de fogo, para somente então, constar situação de flagrância, enquanto nos depoimentos durante a instrução e julgamento, nada mencionam sobre o consentimento para vistoriar a casa.
Sabe-se que em casos como esse, os policiais costumam dizer que foram “acompanhados” a entrar na casa. Evidentemente que ninguém vai convidar a polícia a penetrar em sua casa para que ela seja vasculhada.
Alexandre Morais da Rosa, critica as justificativas de policiais quando de invasões de domicílios em Mantra do crime permanente entoado para legitimar ilegalidades nos flagrantes[4], reportando-se a julgados do Tribunal Supremo da Espanha, nos quais se assentou que a proteção constitucional ao domicílio concretiza a proteção à inviolabilidade enquanto âmbito de privacidade, pela qual o sujeito é isento e imune a qualquer tipo de invasão a seu espaço domiciliar por outras pessoas ou autoridades públicas.
Anota o magistrado sobre o específico tema do consentimento do interessado, que o Tribunal Supremo espanhol decidiu, por mais de uma vez, sobre a necessidade do preenchimento de requisitos, tais como prova oral ou por escrito, porém sempre documentada, para que a manifestação da vontade seja considerada válida, desprovida de pressão psicológica que impeça de exercer seus direitos constitucionais.
Nesse ponto Excelência, imagine um casal tranquilo de aposentados em sua propriedade rural (os quais nunca tiveram nenhum tipo de problema com a justiça), e de repente, recebem a visita da polícia com armas na cintura, os acusando de crime ambiental, e depois de revistar ilegalmente a residência, os acusam de posse ilegal de arma de fogo.
Alexandre Morais da Rosa, com escopo em sua obra Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, conclui que:
Por tais razões, diante das condições em que a materialidade continua sendo apreendida neste país, em franca violação dos direitos fundamentais, a prova deve ser declarada ilícita, especialmente nos casos de ilegal denúncia anônima, bem assim quando a atuação dos agentes do Estado acontece sem mandado judicial, salvo no caso de fragrante posto, implicando, pois, na ilegalidade da apreensão e, por via de consequência, da ausência de materialidade na maioria dos casos em que se tiver coragem. Também é ilegal, após a prisão em flagrante, conduzir-se o sujeito até sua residência, sem manifestação do defensor, dada a intimidação ambiental e constrangimento que a prisão proporciona. Não se pode acovardar em nome do resultado, uma das faces do populismo penal e do mantra do crime permanente. A função do Judiciário é de garantia das regras do jogo, saindo do transe que o mantra proporciona.
O Ministro Gilmar Mendes, também registrou em seu voto no RE 603.616/RO que:
Outra questão não apreciada é a validade do consentimento do morador. As hipóteses concretas podem revelar desdobramentos complexos, seja quanto à prova do consentimento, seja quanto a sua validade e suficiência. A Suprema Corte dos Estados Unidos vê com desconfiança o consentimento do morador obtido pelo agente estatal “sob autoridade governamental” (under government authority) ou “sob as cores do uniforme” (under color of office) – respectivamente, casos Amos v. United States, 255 U.S. 313 (1921) e caso Johnson v. United States 333 U.S. 10 (1948). Já houve algum debate sobre o assunto no HC 79.512, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 16.12.1999. O tema em julgamento, no entanto, não se presta a resolver a questão.
Ora, se o uso de algemas exige justificação formal, por que então um policial pode violar o domicilio a fim de encontrar uma situação de flagrância, e a posteriori, justificar de qualquer maneira a fim de legitimar sua ação?
Essa foi a questão trazida a lume pelo Ministro Ricardo Lewandowski durante o julgamento do RE 603.616/RO:
Eu queria fazer apenas uma observação, eminente Relator. Quando nós elaboramos a Súmula Vinculante 11, que tem a seguinte dicção, nós tomamos o cuidado de que as situações excepcionais que justificassem o uso das algemas fossem veiculadas por escrito, “sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. […] A minha preocupação é que, se não colocarmos alguma limitação ou alguma responsabilização, sabemos como as coisas acontecem na vida real. A Polícia invade, arrebenta, sobretudo, com casas mais humildes, e depois dá uma justificação qualquer, a posteriori, de forma oral, na delegacia de polícia. Eu penso que seja necessário que nós estabeleçamos, desde logo, como fizemos na Súmula 11, alguma formalidade para que essa razão excepcional seja justificada por escrito, sob pena das sanções cabíveis.
Assim sendo, nas hipóteses em que a Constituição Federal dispensa o controle judicial prévio, resta o controle a posteriori, exigindo dos policiais a demonstração de que a medida foi adotada mediante justa causa, mas o MM Juiz que proferiu a sentença não exigiu referida demonstração, muito menos o órgão acusador.
Ou seja, o MM Juiz deveria ter se certificado e fundamentado na sentença que haviam elementos para caracterizar a suspeita que autorizasse o ingresso forçado em domicílio. Mas não o fez, porque inexistem no caso do revisionando. Logo, evidente que os policiais penetraram no imóvel sem qualquer autorização e somente quando em seu interior, é que localizaram objetos para justificar a prisão em flagrante.
Ora. É da jurisprudência que a validade da busca é testada com base no que se sabia antes de sua realização, e não depois. (RE 603.616/RO).
Nesse contexto, é que se indaga, definitivamente: o que é necessário para que se conclua pela legitimidade da atuação do policial que, independentemente de autorização judicial ou de autorização do proprietário, obviamente, realiza busca domiciliar a partir do que acredita se tratar de situação de flagrância quanto à mercancia de drogas?
Respondendo a esta pergunta, o magistrado André Nicolitt[5] muito bem explica que:
Não se pode confundir o fato de estar cometendo um crime com situação de flagrante. O flagrante significa visibilidade material do delito. Não existe flagrante quando não há um mínimo de aparência perceptível aos sentidos relativamente à existência de um crime, nos termos do art. 302 do CPP. Quando se ingressa em uma residência sem o mínimo de visibilidade do delito, há violação do domicílio e a superveniente apreensão da droga passa a ser ilícita por força dos incisos XI e LVI do art. 5º da Constituição e do art. 157 do CPP. O que autoriza o ingresso no domicílio é a percepção do cometimento do crime (flagrante) e não o simples cometimento sem que ninguém perceba pelos sentidos.
Como alerta Leonardo Martins, em comentários ao inciso XI da CF/88[6]:
[…] o conceito de flagrante delito deve ser interpretado o mais restritivamente possível porque a Constituição brasileira é uma Constituição de liberdade e das liberdades. A consequência é que desprotegido estará o domicílio, no contexto desta primeira hipótese [flagrante delito], somente no caso de certeza pelo agente policial da prática imediata, que esteja ocorrendo dentro do domicílio.
Ou seja, para poder entrar em determinado domicílio e prender alguém em flagrante pelo crime de posse de armas, é necessário existir a visibilidade material da prática de um desses delitos. Sem a visibilidade material do delito, não há flagrante e por consequência o ingresso é ilegal e tudo que se apurar em razão disto também será ilegal, logo, inadmissível (art. 5º, LVI, da CF).
Como já mencionado, o conhecimento do flagrante delito deve ser prévio, e não posterior à invasão do domicílio. Daí que o Juízo que proferiu a sentença, deveria ter julgado a denúncia improcedente, reconhecendo-se a ilegalidade das provas colhidas mediante violação do domicilio do revisionando, ainda que de ofício, por tratar-se de questão de ordem pública.
Do contrário, admitir a adoção como praxe de condutas como essas, em que policiais adentram sem permissão em casas alheias, sem que haja situação de flagrante, é dar aos policiais salvo-conduto para violarem um direito constitucionalmente assegurado, pois como dito, ninguém vai convidar a polícia a penetrar em sua casa para que ela seja vasculhada.
4. DESCLASSIFICAÇÃO DO ART. 16 PARA O ART. 12 DA LEI 10.826/03
Subsidiariamente, caso este Grupo não entenda pela declaração de nulidade de todo processo, reconhecendo que as provas colhidas pelos policiais militares no interior da casa são ilegais, pois evidente que os policiais que as colheram violaram domicílio constitucionalmente protegido, requer-se a desclassificação do tipo penal, nos termos expostos.
É que o revisionando foi condenado pela prática do crime previsto no art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/2003, previsto no capítulo “Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito” conforme extrai-se da denúncia e da sentença:
Denúncia:
Tendo assim procedido, incidiu o denunciado nas sanções penais do artigo 16, caput, da Lei 10.826/2003.
Sentença:
Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE a pretensão punitiva para CONDENAR o réu pela prática do crime previsto no art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/2003, ao cumprimento da pena privativa de liberdade de 3 (três) anos de reclusão, em regime inicialmente aberto, e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, cada qual fixado em 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época dos fatos, devidamente atualizado.
O revisionando reconhece que fabricou o artefato, mas para servir como alarme, em razão dos inúmeros furtos e roubos ocorridos na região, o que foi confirmado pela testemunha de defesa e pelos próprios policiais militares quando da audiência de instrução e julgamento.
Entretanto, não é possível verificar elementos de conduta relativos a portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, cuja fabricação seja artesanal, pois não há como suprimir ou alterar a numeração que inexiste.
Definitivamente, tratam-se de armas, com a exceção daquela de calibre .12 com registro vencido, de fabricação caseira que era utilizada para emitir alerta no ambiente rural em que vivia, mas sem qualquer lesividade, posto que as munições eram carregadas com arroz, fato também confirmado pelos policiais.
Se o legislador não previu especificamente o delito de posse de arma de fogo de fabricação artesanal, deve este ser abarcado pelo artigo 12 do Estatuto do Desarmamento, referente à posse de arma de fogo de uso permitido, conforme precedentes.
De mais a mais, já decidiu a Corte Catarinense, que “na hipótese em que a arma de fogo apreendida na residência do acusado é de fabricação caseira, deve ele responder pela prática do delito descrito no art. 12 da Lei n. 10.826/03, uma vez que não se poderia exigir tivesse ela número de série” (Apelação Criminal n. 2013.049651-7, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco). ”
Nesse particular, sobreleva a brilhante interpretação firmada pelo eminente Desembargador Torres Marques no corpo do acórdão Recurso Criminal n. 2009.067998-1:
No entanto, os presentes autos revelam situação peculiar, qual seja, a apreensão de arma de fogo de uso permitido na posse do réu, sem numeração, pelo fato de se tratar de arma de fabricação caseira.
Assim, não se pode falar na configuração do crime do art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei n. 10.826/2003, pois para tanto seria necessário atribuir ao réu alguma das seguintes condutas: raspar; suprimir ou adulterar. Em outras palavras, o tipo penal em foco exige do réu a perpetração de uma conduta comissiva, e, por consectário, ante o silêncio eloquente da Lei, não se pune conduta omissiva.
Nessa ordem de ideias, em razão do armamento em questão seguramente nunca ter tido numeração alguma, incriminar o réu pelo simples fato de possuir arma de uso permitido sem numeração ultrapassa os lindes do tipo penal e acarreta a criação de figura típica por analogia àquelas constantes nos verbos do art. 16, parágrafo único, inciso IV do Estatuto do Desarmamento, o que é vedado a teor do princípio da legalidade, conforme dispõe do artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1998 e o art. 2º do Código Penal.
Colhe-se da jurisprudência:
POSSE DE ARMA DE FOGO. ARMA DE FABRICAÇÃO ARTESANAL. APLICAÇÃO DO ABOLITIO CRIMINIS TEMPORALIS. RECURSO DA ACUSAÇÃO. SENTENÇA QUE DESCLASSIFICOU A CONDUTA DESCRITA NA DENÚNCIA COMO INCURSA NO ART. 16 PARA O ART. 12 DA LEI N. 10.826/2003. ESPINGARDA DE FABRICAÇÃO CASEIRA COM CANO FORJADO A PARTIR DE PEÇA DE MOTOCICLETA. NÃO IDENTIFICAÇÃO DE ALGUMA DAS CONDUTAS DESCRITAS NO TIPO PENAL DE POSSE DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO OU EQUIPARADO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL SOBRE A CONDUTA PERPETRADA. VEDAÇÃO À ANALOGIA IN MALAM PARTEM. DELITO DE POSSE DE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO CARACTERIZADO. ATIPICIDADE TEMPORÁRIA RECONHECIDA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJSC, Apelação Criminal n. 2011.006702-8, de São Joaquim, rel. Des. Jorge Schaefer Martins, Quarta Câmara Criminal, j. 13-10-2011).
Portanto, plenamente cabível a desclassificação do tipo penal do art. 16 para o art. 12 da Lei 10.826/03, pois evidente que as armas estavam dentro daquilo que se considera como arma de fogo de uso permitido, e não restrito, mesmo porque, a sentença sequer fundamentou as razões da restrição.
5. ARMA CALIBRE .12 DE USO PERMITIDO – MERA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA
Colhe-se da sentença, que o revisionando foi condenado por infringir o disposto no art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/2003, em razão de possuir em sua casa uma arma de fabricação artesanal calibre 12, sem marca e numeração (laudo pericial à fl. 64), uma espingarda sem vestígios e numeração aparentes (laudo pericial à fl. 68) e uma espingarda calibre 12 (laudo pericial à fl. 66) com registro vencido.
Ocorre que, a condenação em razão da espingarda calibre .12 é impossível, porque além de não ser de uso restrito como entendeu o MM Juiz que proferiu a sentença, possuir arma com registro vencido não é crime, é apenas infração administrativa, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no HC 294.078/SP:
HABEAS CORPUS […]. 2. ART. 12 DA LEI N. 10.826/2003. POSSE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM O REGISTRO VENCIDO. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL. PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA QUE SE MOSTRA SUFICIENTE. 3. ORDEM NÃO CONHECIDA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO. 1. […]. Na espécie, o paciente foi denunciado pela suposta prática da conduta descrita no art. 12 da Lei n. 10.826/2003, por possuir irregularmente um revólver marca Taurus, calibre 38, número QK 591720, além de dezoito cartuchos de munição do mesmo calibre. 3. Todavia, no caso, a questão não pode extrapolar a esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindível tipicidade material, pois, constatado que o paciente detinha o devido registro da arma de fogo de uso permitido encontrada em sua residência – de forma que o Poder Público tinha completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo rastreá-lo se necessário –, inexiste ofensividade na conduta. A mera inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode conduzir à estigmatizadora e automática incriminação penal. Cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição administrativa pertinente, não estando em consonância com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal para a imposição de pena tão somente porque o indivíduo – devidamente autorizado a possuir a arma pelo Poder Público, diga-se de passagem – deixou de ir de tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato. Portanto, até mesmo por questões de política criminal, não há como submeter o paciente às agruras de uma condenação penal por uma conduta que não apresentou nenhuma lesividade relevante aos bens jurídicos tutelados pela Lei n. 10.826/2003, não incrementou o risco e pode ser resolvida na via administrativa. 4. Ordem não conhecida. Habeas corpus concedido, de ofício, para extinguir a Ação Penal n. 0008206-42.2013.8.26.0068 movida em desfavor do paciente, ante a evidente falta de justa causa. Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 26/08/2014. HABEAS CORPUS Nº 294.078 – SP.
Ademais, referido entendimento vem sendo aplicado pela Corte Catarinense, senão vejamos:
POSSE DE MUNIÇÕES E ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. ARTIGO 12 DA LEI 10.826/2003. SENTENÇA QUE ABSOLVEU SUMARIAMENTE O ACUSADO EM FACE DO RECONHECIMENTO DA ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PLEITO CONDENATÓRIO. INVIABILIDADE. ACUSADO QUE DETINHA A DOCUMENTAÇÃO DO REGISTRO FEDERAL DO ARTEFATO BÉLICO. CERTIFICADO FORA DO PRAZO DE VALIDADE. MERA IRREGULARIDADE ADMINISTRATIVA. NOVEL ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. “[…] a questão não pode extrapolar a esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindível tipicidade material, pois, constatado que o paciente detinha o devido registro da arma de fogo de uso permitido encontrada em sua residência – de forma que o Poder Público tinha completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo rastreá-lo se necessário – inexiste ofensividade na conduta. A mera inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode conduzir à estigmatizadora e automática incriminação penal. Cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição administrativa pertinente, não estando em consonância com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal para a imposição de pena tão somente porque o indivíduo – devidamente autorizado a possuir a arma pelo Poder Público, diga-se de passagem – deixou de ir de tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato. Portanto, até mesmo por questões de política criminal, não há como submeter o paciente às agruras de uma condenação penal por uma conduta que não apresentou nenhuma lesividade relevante aos bens jurídicos tutelados pela Lei n. 10.826/2003, não incrementou o risco e pode ser resolvida na via administrativa”. (STJ. HC 294.078/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, julgado em 26/08/2014) RECURSO DESPROVIDO. (TJSC, Apelação Criminal n. 0007957-33.2015.8.24.0018, de Chapecó, rel. Des. Jorge Schaefer Martins, Quarta Câmara Criminal, j. 14-04-2016).
Assim, tendo em vista que o entendimento do Tribunal de Justiça de Santa Catarina está alinhado com o do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que a posse de arma de fogo com documentação atrasada consiste em mera irregularidade administrativa, requer seja anulada a condenação do revisionando no que se refere a espingarda calibre .12 com registro vencido.
6. NECESSIDADE DE DEFERIMENTO DA LIMINAR
A concessão da liminar requerida no presente caso é medida que se impõe, pois presentes estão os requisitos necessários para sua concessão, conforme passa a expor.
No caso, o fumus boni iuris se destaca, essencialmente, pelo que dispõe o próprio artigo 621, inciso I, do Código de Processo Penal, no sentido de que, se a sentença for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidencia dos autos, caberá a revisão criminal, ou ainda circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena. Notório que conforme precedentes, inclusive anteriores à condenação, autorizam a anulação do processo por provas colhidas de forma ilegal, ou ao menos, a desclassificação do tipo penal do art. 16 para o art. 12 da Lei n. 10.826/03.
Assim, no mesmo sentido leciona Eugênio Pacelli:
A ação de revisão criminal tem precisamente este destino: permitir que a decisão condenatória passada em julgado possa ser novamente questionada, seja a partir de novas provas, seja a partir da atualização da interpretação do direito pelos tribunais, seja por fim, pela possibilidade de não ter sido prestado, no julgamento anterior, a melhor jurisdição. (PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2013. 959).
Esta é exatamente a situação ocorrida no caso em apreço. A prova da inocência do revisionando ─ violação ilegal do domicílio ─ sempre esteve presente nos autos, porém não lhe foi dada a melhor jurisdição, ou talvez este seja o momento de dar-lhe nova argumentação e interpretação à luz da Constituição Federal e precedentes.
E o periculum in mora está consubstanciado nos prejuízos materiais e emocionais que o revisionando (um senhor aposentado de 63 anos, que passou grande parte da sua vida trabalhando como agricultor e possui graves problemas de saúde conforme documentos acostos) irá sofrer, os quais serão irreparáveis e poderão se tornar ainda mais ao longo dos anos, caso a liminar não seja deferida, residindo aí o perigo da demora, mesmo porque, a intimação do revisionando para cumprimento da pena já foi determinada nos autos da Execução da Pena n… Daí a necessidade de concessão da liminar.