A denúncia genérica, eivada do vício da inépcia por não descrever a imputação dos fatos delituosos com as suas devidas circunstâncias, viola a garantia do contraditório e da ampla defesa conferida pelo art. 5º, LV, da Constituição Federal, autorizando o trancamento da ação penal instaurada para apurar crime ambiental.
Esta é a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a extinção da ação penal, somente se dá em hipóteses excepcionais, nas quais seja patente a atipicidade da conduta; quando não há indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas; ou na presença de alguma causa extintiva da punibilidade.
Muito bem. A denúncia, segundo a clássica doutrina do Ministro João Mendes de Almeida Júnior[1], é
[…] uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo (quando). (Segundo enumeração de Aristóteles, na Ética a Nincomac, 1. III, as circunstâncias são resumidas pelas palavras quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando, assim referidas por Cícero (De Invent. I)). Demonstrativa, porque deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear as testemunha e informantes.
O Código de Processo Penal estabelece, em seu art. 41, os requisitos obrigatórios da peça acusatória, in verbis:
A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.
Salta aos olhos que o objetivo dessa norma é viabilizar ao acusado o emprego dos meios possíveis ao exercício da sua ampla defesa, de tal modo que ele possa conhecer da acusação, bem como qual a medida de sua participação na conduta delituosa.
Pois bem, nos chamados crimes ambientais praticados por pessoa jurídica contra o meio ambiente, é comum a alegação de inépcia da denúncia, sob o fundamento de acusação genérica, porque não individualiza as condutas de cada um dos sócios acusados.
Daí a importância de se diferenciar, no ponto, os conceitos de acusação genérica e de acusação geral, estabelecidas tanto na doutrina especializada quanto na jurisprudência desta Suprema Corte.
Sobre o tema, a lição de Eugênio Pacelli de Oliveira[2] ensina:
É preciso, porém, distinguir o que vem a ser acusação genérica e acusação geral.
Como já visto, a correta delimitação das condutas, além de permitir a mais adequada classificação (tipificação) do fato, no que a exigência neste sentido estaria tutelando a própria efetividade do processo, presta-se também a ampliar o campo em que se exercerá a atividade da defesa, inserindo-se, portanto, como regra atinente ao princípio da ampla defesa.
Ocorre, entretanto, que quando o órgão da acusação imputa a todos, indistintamente, o mesmo fato delituoso, independentemente das funções exercidas por eles na empresa ou sociedade (e, assim, do poder de gerenciamento ou de decisão sobre a matéria), a hipótese não será nunca de inépcia da inicial, desde que seja certo e induvidoso o fato a eles atribuído.
A questão relativa à efetiva comprovação de eles terem agido da mesma maneira é, como logo se percebe, matéria de prova, e não pressuposto de desenvolvimento válido e regular do processo.
Com efeito, quando se diz que todos os sócios da determinada sociedade, no exercício da sua gerência e administração, com poderes de mando e decisão, em data certa, teriam deixado de recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros […] (atual art. 168-A, CP), está perfeitamente delimitado o objeto da questão penal, bem como a respectiva autoria. Não há, em tais situações, qualquer dificuldade para o exercício da defesa ou para a correta capitulação do fato imputado aos agentes.
A hipótese não seria de acusação genérica, mas geral. Acaso seja provado que um ou outro jamais teriam exercido qualquer função de gerência ou administração na sociedade, ou que cumpriam função sem qualquer poder decisório, a solução será de absolvição, mas nunca de inépcia. É nesse sentido a decisão da Suprema Corte, no julgamento do HC nº 85.579/MA, Rel. Min. Gilmar Mendes, 24.5.2005 (Informativo STF nº 389, 1.6.2005).
Questão diversa poderá ocorrer quando a acusação, depois de narrar a existência de vários fatos típicos, ou mesmo várias condutas que contribuem ou estão abrangidas pelo núcleo de um único tipo penal, imputá-las, genericamente, a todos os integrantes da sociedade, sem que se possa saber, efetivamente, quem teria agido de tal ou qual maneira.
Nesse caso, e porque na própria peça acusatória estaria declinada a existência de várias condutas diferentes na realização do crime (ou crimes), praticadas por vários agentes, sem especificação da correspondência concreta entre uma (conduta) e outro (agente), seria possível constatar a dificuldade tanto para o exercício amplo da defesa quanto para a individualização das penas. A hipótese seria de inépcia da inicial, por ausência de especificação da medida da autoria ou participação, por incerteza quanto à realização dos fatos.
O que deve ser observado, pois e insistimos nisso é o preenchimento, pela peça acusatória, das exigências relativas à tutela da efetividade do processo (correta classificação do fato, pelo juiz) e da ampla defesa.
Somente sob tal perspectiva explica-se a orientação jurisprudencial no sentido de que, tratando-se de crimes de autoria coletiva, é admitida uma imputação geral aos acusados, reservando-se à fase instrutória a delimitação precisa de cada uma delas (HC nº 22.265/BA STF DJ, I, 17.2.2003).
Importante citar, também, trecho do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, Relator do HC 127.415/SP, em 13/9/2016:
O Supremo Tribunal vinha mitigando a exigência quanto a uma denúncia precisa nos crimes societários, com a indicação pormenorizada dos fatos em relação a cada um dos denunciados, com fundamento de que tal exigência talvez pudesse dar ensejo a um quadro de impunidade.
Daí, afirmar-se suficiente a indicação de que os acusados fossem de algum modo responsáveis pela condução da sociedade comercial utilizada como suposto vetor para prática dos delitos (RHC 65.369, rel. min. Moreira Alves, DJ de 27.10.1987; HC 73.903, rel. min. Francisco Rezek, DJ de 25.4.1997; HC 74.791, rel. min. Ilmar Galvão, DJ de 9.5.1997; HC 74.813, rel. min. Sydney Sanches, DJ de 29.8.1997; e HC 75.263, rel. min. Néri da Silveira, DJ de 25.2.2000).
Tal entendimento, entretanto, tem sido aceito com reservas. Algumas decisões vêm acatando a ideia de que, também nos crimes societários, as condutas deveriam ser descritas individualmente, de forma a permitir a efetiva defesa dos acusados.
Nesses casos, não se pode atribuir o dolo solidariamente a todos os sócios, uma vez que o ordenamento jurídico penal está impregnado da ideia de que a responsabilização penal se dá, em regra, pela aferição da responsabilidade subjetiva. […]
Assim, mesmo que nesses casos sejam de difícil descrição os pormenores das atividades e da responsabilidade de cada um dos denunciados, é fundamental que o mínimo descritivo dos atos ilícitos praticados esteja contido na denúncia para permitir o recebimento.
Deve-se ter em mente, portanto, que, em matéria de crimes societários, a denúncia deve expor, de modo suficiente e adequado, a conduta atribuível a cada um dos agentes, de modo que seja possível identificar o papel desempenhado pelos denunciados na estrutura jurídico-administrativa da empresa.
Portanto, se a única acusação por crime ambiental feita contra o acusado deriva unicamente dos cargos por eles ocupados na direção ou representação de empresa, e se não houver a mínima descrição dos atos ilícitos supostamente por eles praticados, a denúncia é inepta, pelo fato de se amparar em mera conjectura, o que inviabiliza a compreensão da acusação e, por conseguinte, o exercício da ampla defesa.
Dessa forma, a medida a ser buscada é o trancamento da ação penal.
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Tese de defesa muito interessante para crimes ambientais. parabéns ao escritório.