Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal
Processo Originário…
Impetrante…
Impetrado: Superior Tribunal de Justiça
Paciente…
Os advogados…, com endereço profissional na… Rua…, n…, Bairro…, Cidade/UF, CEP…, endereço eletrônico…, vêm, à presença de Vossa Excelência, com fundamento no artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal de 1988, e artigos 647 e 648, I, do Código de Processo Penal, impetrar Habeas Corpus para trancamento de ação penal com pedido de medida liminar em favor de Paciente, brasileiro (a), estado civil, profissão, inscrito (a) no RG sob o… e CPF…, residente e domiciliado (a) na Rua…, n…, Bairro…, Cidade/UF, CEP…, endereço eletrônico…, em razão do acórdão proferido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça que manteve a sentença condenatória, razão pela qual o trancamento da ação penal em epígrafe, conforme passa a expor, para, ao final, requerer a concessão de ordem.
Resumo Estruturado
Trata-se de habeas corpus, impetrado em favor paciente contra acórdão que acolheu embargos de declaração para negar provimento a agravo regimental interposto perante o Superior Tribunal de Justiça.
Consta dos autos que o Juízo de primeiro grau condenou o ora paciente à pena de 1 (um) ano de detenção, em regime aberto, substituída por 1 (uma) restritiva de direitos, como incurso no art. 34, caput, c/c o art. 36 da Lei 9.605/1998. Houve interposição do recurso de apelação pela defesa, o qual restou desprovido.
Em sede de Recurso Especial, alegou-se ofensa aos arts. 34 da Lei n. 9.605/1998 e 386, inciso III, do Código de Processo Penal, além de divergência jurisprudencial, ao argumento de ser materialmente atípica a conduta, pela aplicação do princípio da insignificância, tendo o STJ negado provimento ao recurso. Agravo regimental não conhecido. Embargos de declaração acolhidos para negar provimento a agravo regimental.
Portanto, no presente habeas corpus, reitera-se a atipicidade da conduta imputada ao paciente, ressaltando não ter sido encontrado no local com petrechos proibidos, bem como que o fato é atípico devendo ser reconhecida a atipicidade material da conduta em razão do princípio da insignificância, razão pela qual requer a concessão da ordem de Habeas Corpus, mesmo de ofício, para que incida o princípio da insignificância ao caso, absolvendo o paciente pois ínfima a conduta perpetrada, onde ausentes a apreensão de qualquer peixe ou apetrechos proibidos.
1. Dos fatos
Consigna-se da extração dos autos que o paciente fora condenado à pena de um ano de reclusão, em regime aberto, substituída por prestação pecuniária, fixada em R$ 5.000,00, por cometimento da prática delitiva inserta no art. 34 da Lei 9.605/98. Foi interposta apelação, a qual se negou provimento.
Frente a violação, interpôs-se o devido Recurso Especial pugnando pela insignificância em virtude da ínfima lesividade da conduta, considerando que não houve a apreensão de nenhum peixe pelos agentes de fiscalização e nem de petrechos de pesca proibidos.
Em decisão monocrática, o Ministro Relator entendeu que o acórdão recorrido estaria em consonância com a atual jurisprudência da Corte Superior de Justiça, a qual firmou-se no sentido de não ser aplicável o princípio da insignificância à conduta de realizar pesca em local de proteção ambiental com a utilização de petrechos proibidos, tendo em vista o risco que esta conduta representaria para todo o ecossistema aquático, independentemente da quantidade de espécimes efetivamente apreendidas ou não.
Interposto o devido Agravo Regimental, este não foi conhecido sob o fundamento de ausência de impugnação de toda decisão recorrida, qual seja, o fundamento de que havia sido utilizado petrechos proibidos na pesca, incidindo no óbice da Súmula 182 do STJ.
Contudo, em nenhum momento as decisões dos juízos de origem alegaram a existência de petrechos proibidos na apreensão. Por este motivo, foram opostos os Embargos de Declaração alegando erro no acórdão.
O Tribunal Superior, tendo reconhecido o equívoco, proveu os embargos para conhecer do Agravo Regimental interposto. Entretanto, negaram o recurso agora sob o novo fundamento de que as condutas do paciente seriam reiteradas, e que por este motivo seria incabível a aplicação da insignificância ao caso, conforme se extrai da ementa:
[colacionar ementa do acórdão recorrido]Apesar do respeitável acórdão, insurgissem os advogados com a impetração deste “writ” em virtude da patente ilegalidade demonstrada nas razões abaixo.
2. Do mérito
Inicialmente cabe destacar que o Habeas Corpus constitui o instrumento, por excelência, de proteção à liberdade de locomoção. Ora, sob a ótica constitucional, a exegese a prevalecer deverá ser aquela que potencialize o direito constitucional à liberdade, de modo que lhe seja conferida a máxima eficácia possível.
E a máxima eficácia possível apenas será atingida se o instrumento que protege a liberdade de locomoção – o Habeas Corpus – for admitido em perspectiva ampla, de modo a abarcar, inclusive, a possibilidade de servir como substitutivo de recursos próprios.
E ainda, cabe ressaltar que a questão aqui trazida não enseja reanálise profunda dos fatos, mas, quando muito, a sua interpretação de acordo com a legislação aplicável ao tema, ou seja, a discussão da conclusão à qual chegou o v. Acórdão a partir dos fatos traçados na decisão.
Seja como for, está ainda caracterizada a hipótese de concessão da ordem de ofício, diante da patente ilegalidade.
Pois bem, o presente habeas corpus tem como foco de insurgência o acórdão do Superior Tribunal de Justiça que deixou de aplicar a insignificância da conduta do paciente por entender que este, já tendo sido flagrado na mesma prática anteriormente pela fiscalização ambiental, não faria jus ao acolhimento da ínfima lesividade da conduta.
Contudo, o paciente nunca foi apreendido em pesca ilegal anteriormente. Além de tecnicamente primário, este não possui qualquer antecedente nem procedimento anterior, penal ou administrativo, instalado contra ele.
Conforme se vê, a reiteração delitiva não acomete o paciente deste “writ”. E para finalizar, reafirmando a ausência de qualquer alegação de reiteração pelo paciente, basta uma visão da folha de antecedentes dos envolvidos para consolidar que inexiste conduta reiterada do paciente.
Neste sentido, no caso dos autos, verificaram-se inexpressivas a conduta do paciente e suas consequências, devendo ser afastada a tipicidade desta, por manifesta ausência de ofensividade.
O princípio da insignificância surgiu no Direito Romano. No entanto, restringia-se ao âmbito cível, com suporte no brocardo de minimis non curat praetor (o magistrado não deve se ocupar de assuntos irrelevantes). Na década de 1970, foi introduzido ao Direito Penal, a partir dos estudos de Claus Roxin.
Tem por finalidade limitar o campo de incidência do tipo penal, evitando-se a punição de comportamentos criminosos irrelevantes que resultem em lesão inexpressiva ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Sua aplicação afasta a tipicidade material da conduta — não obstante formalmente típica — quando, como dito, não demonstrada lesão substancial ao bem jurídico.
Percebe-se que Claus Roxin introduziu no sistema penal o princípio geral da insignificância para a determinação do injusto, o qual atua igualmente como auxiliar na interpretação da norma penal. Tal postulado permite que se exclua o crime quando se verificarem danos de pouca relevância (hipótese dos autos).
Francisco de Assis Toledo[1], na esteira dos ensinamentos de Roxin, propõe que o Direito Penal, tendo em vista a sua natureza fragmentária, adote o princípio da insignificância para delimitar até onde deve ir para a proteção do bem jurídico, a fim de que não se ocupe com bagatelas.
Segundo tal doutrinador, haveria uma gradação qualitativa e quantitativa do injusto, que permitiria que o fato penalmente insignificante fosse excluído da tipicidade penal, podendo receber tratamento adequado, como ilícito civil-administrativo.
Assis Toledo ainda preleciona que “(…) segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção ao bem jurídico. Não deve se ocupar de bagatelas.”[2]
PALAZZO conceitua o princípio de lesividade do delito como sendo aquele por meio do qual um fato não pode constituir ilícito se não for ofensivo (lesivo ou perigoso) ao bem jurídico protegido.[3]
Trata-se o princípio de necessária ofensa, conforme FERRAJOLI, de “uma afiada navalha descriminalizadora, idônea para excluir, por injustificados, muitos tipos penais consolidados, ou para restringir sua extensão por meio de mudanças estruturais profundas”.
Na esteira das lições do referido doutrinador, é de se afirmar que o princípio da ofensividade opera como um “critério polivalente de minimização das proibições penais”. Por meio deste princípio, é de se concluir que – se mostrando idôneo o direito penal tão-somente a tutelar bens jurídicos, e diante a afetações realmente intoleráveis, em situações extremas – é forçoso determinar-se uma redução na intervenção penal ao mínimo necessário.
Equivalendo tal postulado a um “princípio de tolerância tendencial da desviação”, deve-se conferir ao direito penal tão- somente o exame de situações capitais ao convívio social, relegando-se o restante às esferas cível e administrativa, fortalecendo-se, assim, a intervenção punitiva e conferindo ao direito penal maior credibilidade e legitimidade.[4]
Como se sabe, esta Corte firmou entendimento no sentido da aplicabilidade do princípio da insignificância no sistema penal brasileiro, desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos muito bem explicados por Nilo Batista[5] e pela própria jurisprudência destea Suprema Corte quando do julgamento do HC 84.412, de relatoria do Ministro Celso de Mello:
Seu postulado decorre da interpretação dos seguintes princípios basilares do Direito Penal, que se inter-relacionam: “(i) da intervenção mínima (o direito penal só deve ser utilizado como ultima ratio (ii) da fragmentariedade (o direito penal é um “sistema descontínuo de ilicitudes”, que somente se destina a proteger determinadas ofensas a certos bens jurídicos, sendo vedada a analogia para preencher lacunas sob o pretexto de resguardá-los); (iii) da subsidiariedade (só se deve lançar mão do direito penal caso outros ramos do direito não sejam capazes de oferecer uma resposta satisfatória); e (iv) da lesividade (não há crime sem lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico pertencente a outrem).”
A teoria geral do crime nos permite, inicialmente, iluminar o entendimento acerca dos prismas formal e material da tipicidade. O formal reside no juízo de adequação entre o comportamento e o fato descrito na norma penal; enquanto o material é representado pela dimensão valorativa da lesividade ao bem jurídico tutelado. A incidência do princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade, na sua vertente material, ou seja, resulta no reconhecimento da conduta incapaz de causar lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.
No julgamento do HC 84.412/SP (Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. em 19/10/2004, p. 19/11/2004), o Pretório Excelso definiu vetores para aplicação do princípio da bagatela, a saber: “(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.” Essas diretrizes, desde então, têm norteado a atuação dos Ministros desta Corte.
Em decisão nestes autos, o e. Ministro Nunes Marques reconheceu a “presença desses quatro vetores objetivos, que estão relacionados ao fato e não às características pessoais do autor”, concluindo pela “existência de fato insignificante”, haja vista que “’não houve a apreensão de nenhum peixe pelos agentes de fiscalização e nem de petrechos de pesca proibidos’, nos exatos termos da jurisprudência firmada pela Segunda Turma desta Suprema Corte”.
Desse modo, no caso concreto, embora se afigure a tipicidade formal, não há tipicidade material. Não se pode considerar que a conduta e o resultado típicos tenham degradado ou colocado em risco de degradação o equilíbrio ecológico das espécies e dos ecossistemas, haja vista ausência de apreensão de qualquer ser protegido ou material proibido.
Na situação sub judice não houve “risco real e significativo ou mesmo potencial” ao bem jurídico tutelado apto a justificar a incidência do Direito Penal. Assim, havendo os quatro vetores acima destacados, o princípio da insignificância incidirá para afastar, no plano material, a própria tipicidade da conduta diante da ausência de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. Na espécie, a análise dos fatos conduz ao reconhecimento da existência de fato insignificante.
Pois bem, no presente caso é de se notar que, a despeito de haver uma adequação formal típica, qual seja, a teórica subsunção da conduta do agente ao dispositivo legal supramencionado, com base no princípio constitucional da ofensividade (nullum crimen sine iniuria), não há como dizer-se tenha o…
[1] Princípios Básicos. Saraiva, 1991.
[2] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, 5ª ed. Saraiva, 2002. p. 133.
[3] PALAZZO, Francesco C.. Valores Constitucionais e Direito Penal. Um estudo comparado. Trad. Gérson Pereira dos Santos, Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 1989, p. 78.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica et al. 2ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p. 438 e seguintes.
[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro 2011, p. 82- 94.