Quando existirem lacunas probatórias no processo administrativo ambiental que não são devidamente preenchidas pelos esforços do ônus acusatório do Estado durante o exercício do poder de polícia, cabível a “teoria da perda de uma chance probatória”.
Isso porque, sem as informações necessárias para esclarecer os fatos descritos por um agente de fiscalização no auto de infração ambiental, o qual deveria buscar favorecer a construção de elementos probatórios mais robustos para a tomada de decisões da autoridade julgadora, notadamente ante a função primordial da instituição de averiguação da verdade, constata-se falha grave, já que as provas necessárias poderiam ter sido produzidas à época e não foram.
A aplicação da Teoria da Perda da Chance Probatória surgiu no Direito Civil, sendo adaptada ao Processo Penal, notadamente quanto à necessidade do Estado, via acusação, produzir todas as provas para apuração e comprovação da conduta imputada.
Por essa Teoria, se a acusação não produz todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, está caracterizada a perda da chance probatória e, consequentemente, a condenação se mostra inviável.
A teoria da perda de uma chance probatória, com maior aplicação no Direito Civil, também é aplicada no Direito Penal e, ao nosso ver, deve ser estendida ao Direito Administrativo Sancionador, uma vez que nesta seara são emprestados, por analogia do Direito Penal, diversos princípios e conceitos no tocante à punibilidade das infrações ambientais.
À propósito, a aplicação dos princípios e conceitos do direito penal ao direito administrativo sancionador é defendido em diversos casos e artigos escritos pelos advogados Cláudio Farenzena e Diovane Franco.
Índice
O que diz a teoria da perda de uma chance probatória
Originada no Direito Civil no âmbito de discussões sobre responsabilidade civil, a” perda de uma chance” refere-se a casos em que se frustrou a oportunidade de se obter uma vantagem futura esperada ou de se evitar um dano que acabou ocorrendo.
Diversos autores e professores de direito processual penal argumentam que essa teoria pode ser utilizada também nessa outra seara, em referência a casos em que o Estado poderia produzir provas a respeito da autoria de um delito, mas não o fez.
Segundo a doutrina[1] processualista penal, a teoria da perda de uma chance probatória dispõe que “o Estado não pode perder a oportunidade de produzir provas contra o acusado, tirando-lhe a chance de um resultado pautado na (in)certeza. Todas as provas possíveis se constituem como preceitos do devido processo substancial, já que a vida e a liberdade do sujeito estão em jogo”.
Omissão na produção de provas
Com efeito, a teoria da perda de uma chance, utilizada atualmente pelo nosso ordenamento jurídico, principalmente em casos cíveis, baseia-se no resultado favorável que alguém alcançaria em razão do desencadeamento normal de eventos, contudo, esse processo de acontecimentos foi interrompido e a vantagem esperada não veio a ocorrer.
Nesse mesmo sentido, compete observar REsp 1291247/RJ, em que foi relator o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, estabelece que:
“A teoria da perda de uma chance aplica-se quando o evento danoso acarreta para alguém a frustração da chance de obter um proveito determinado ou de evitar uma perda. Não se exige comprovação da existência do dano final, bastando prova da certeza da chance perdida, pois esta é o objeto da reparação.”
A probabilidade se baseia no benefício que poderia ter advindo e não adveio, ou seja, na probabilidade que existia da vantagem se concretizar no sentido de demonstrar que, caso o agente de fiscalização tivesse produzido as provas necessárias e adequadas a demonstrar que o administrado não praticou a conduta ou que ela inexiste, o auto de infração ambiental não teria sido lavrado.
Desta forma, em caso de fiscalização ambiental que constate, em tese, algum ilícito administrativo, se não houver a produção de provas robustas e aptas a demonstrarem a autoria e materialidade, chegando-se a um mero juízo de probabilidade, e não de certeza, não haverá outra conclusão senão a de que o processo é demasiado frágil, notadamente pela impossibilidade de se determinar o substancial conteúdo da conduta à luz da acusação formulada no auto de infração ambiental.
Aplicação da teoria da perda de uma chance probatória
Ao deixar de produzir as provas que seriam úteis ao processo, a Administração Pública incorre em omissão que pode causar prejuízo inestimável ao autuado, uma vez que tais provas poderiam comprovar que a infração não ocorreu ou não teria sido praticada pelo administrado.
Segundo Alexandre de Moraes Rosa e Fernanda Mambrini[2], o Estado, no âmbito do processo penal, não pode prescindir da realização de qualquer prova que esteja ao seu alcance e que possa albergar a tese da acusação ou da defesa.
Vale dizer, as autoridades públicas, no exercício da pretensão acusatória, não podem interromper a atividade investigatória/instrutória apenas porque julgam suficientes os elementos à sua disposição, uma vez que a produção de outros elementos de prova pode subsidiar tese favorável ao administrado, implicando em desfavor deste a perda de uma chance probatória:
“Nas hipóteses em que o Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance, julgando suficientes aqueles elementos produção (desistência, não requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.) -, de que a sua inocência seja afastada (ou não) de boa-fé. Ou seja, sua expectativa foi destruída. […]
Dito de outra forma: o Estado não pode perder a oportunidade de produzir provas contra o acusado, tirando-lhe a chance de um resultado pautado na (in) certeza. […]
Para a condenação, exige-se a certeza, e não deve haver elemento algum que faça presumir a culpa de alguém. A culpa deve ser devidamente comprovada. Nos casos em que a prova estava ao alcance do Estado e não foi produzida, não se pode substituí-la por outros elementos , sob alegação da ausência de probabilidade de que aquela prova faltante fosse absolver o acusado.
O Estado é garante dos direitos fundamentais e deve assegurar que os preceitos legais, constitucionais e convencionais sejam devidamente respeitados. Não pode, pois, eximir-se de sua responsabilidade, quando o ônus de afastar a inocência presumida lhe incumbe integralmente”
Ora, ao agente de fiscalização cabe apurar os fatos que sejam interessantes para a instrução processual, independente dos resultados favoráveis ou não que possam vir a ocorrer.
Deve, portanto, colher todas as provas necessárias para o esclarecimento dos fatos, cuja ausência autoriza a aplicação da teoria da perda de uma chance probatória, porque a Administração Pública perdeu a chance de produzir provas e condenar o administrado.
Veracidade e legitimidade do ato administrativo
O jurista e doutrinador Aury Lopes Júnior, referindo-se ao Direito Penal, muito bem pontua que “o sistema probatório fundado a partir da presunção constitucional de inocência não admite nenhuma exceção procedimental, inversão de ônus probatório ou frágeis construções inquisitoriais do estilo in dubio pro societate“.
Não há razão para que na aplicação de penas em processos administrativos ambientais a Administração Pública adote suposições e “achismos” de que um administrado praticou uma conduta e que ela foi responsável por um dano ambiental.
Isso significa que a presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos não se sobrepõe ao princípio da presunção de inocência, muito menos autoriza a inversão do ônus probatório, sob pena de configurar a responsabilidade administrativa objetiva.
Logo, quando a Administração Pública que faz a acusação e instaura o processo administrativo não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, capazes de, em tese, levar à declaração de inocência do administrado ou confirmar a descrição dos fatos caso produzidas, a nulidade do auto de infração ambiental é de rigor, não podendo a autoridade julgadora aplicar sanção com fundamento em presunções ou “achismos”.
Conclusão
Não se desconhece que os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e veracidade. Contudo, tratando-se de atos administrativos sancionatórios, como é o processo ordenador, o ônus da prova incumbe à Administração Pública que instaura o processo administrativo.
Isso significa que não se pode inverter a posição entre acusação (Administração) e acusado (administrado), porque não cabe a esse demonstrar a sua inocência, mas sim, à Administração provar sua culpa ou dolo, além do nexo causal e o dano.
Desse modo, se as provas produzidas pelo agente de fiscalização e durante a instrução processual não conduzirem para a demonstração cabal de autoria e materialidade, a solução será a decretação de nulidade do auto de infração ambiental, aplicando-se a teoria da perda de uma chance probatória.
Ora. Não cabe ao administrado provar qualquer fato, porque esse ônus é da Administração Pública e sua omissão conduz à aplicação da teoria da perda de uma chance probatória, uma vez que poderia ter provado a autoria e materialidade da infração ambiental a autorizar o apenamento do administrado mas não o fez.
Portanto, diante da fragilidade probatória de um processo administrativo ambiental sancionador, e estando ausente a demonstração segura da autoria e materialidade, o mais prudente é a declaração de nulidade do auto de infração ambiental.
O ideal, na verdade, é que esse auto de infração nunca tivesse sido lavrado. Mas enfim, no Brasil, principalmente tratando-se de fiscalização ambiental, primeiro o Estado acusa, muitas vezes de forma leviana e sem produzir as provas necessárias, para depois verificar a inocência do administrado.
[1] ROSA, Alexandre Morais da. RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. In Revista Brasileira de Direito. v. 13, n. 3, dez. 2017, p. 464.
[2] DA ROSA, Alexandre Morais; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito, v. 13, n. 3, p. 455-471, 2017.