Os “terrenos de marinha” são uma categoria de imóveis públicos que geram diversas dúvidas e debates, principalmente após a Proposta de Emenda à Constituição – PEC 03/2022 ter sido noticiada equivocadamente como a “PEC das Praias” através da qual as praias seriam privatizadas.
Acontece que a PEC 03/2022 não privatiza as praias, prevendo apenas a transferência de domínio da faixa costeira aqueles que já são os ocupantes. Aliás, a PEC sequer menciona as praias. E há diferença entre “praias” e “terrenos de marinha”, estes sim objeto da PEC.
Por isso, neste artigo, vamos explorar o que são esses terrenos, onde estão previstos legalmente, como identificá-los, qual é sua finalidade histórica e atual, bem como outras questões acerca do tema e porque a confusão da “privatização das praias”.
Índice
O que são Terrenos de Marinha?
Os “terrenos de marinha” são áreas situadas ao longo da costa brasileira, originalmente destinadas à proteção e uso da coroa portuguesa, cuja demarcação foi definida nas Ordenações Filipinas com o objetivo de proteger as salinas reais, que eram de grande importância econômica e de segurança nacional na época.
Tratam-se de áreas litorâneas estabelecidas desde 1831, e são propriedades da União, conforme previsto no inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal de 1988 e artigo 2º do Decreto-Lei nº 9.760/1946.
Esses terrenos compreendem áreas localizadas na costa marítima, margens de rios e lagoas — até onde houver influência das marés —, manguezais, apicuns, além das que contornam ilhas costeiras e oceânicas.
De acordo com o art. 20 da Constituição Federal, os terrenos de marinha incluem-se entre os bens da União, bem como as ilhas oceânicas e costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios – exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal –, e as referidas no art. 26, inciso II, que são bens dos Estados.
Embora sejam chamados de “terrenos de marinha”, esses não pertencem à Marinha Mercante do Brasil, a qual, dada a confusão, publicou no dia 24 de maio uma Nota Pública para esclarecer que os “terrenos de marinha” são áreas litorâneas que não pertencem à Marinha do Brasil.
Os terrenos de marinha são de responsabilidade da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) responsável pela gestão do Patrimônio da União, incluindo os terrenos de marinha e as praias marítimas e fluviais.
Conceito e identificação dos terrenos de marinha
Legalmente, os terrenos de marinha estão previstos no Código Civil Brasileiro e em diversas normativas específicas, sendo administrados pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU).
O conceito de terreno de marinha é definido como a faixa de terra de 33 metros contados a partir da linha do preamar médio de 1831.
Esta linha é uma referência histórica e não considera alterações posteriores na linha da maré, o que gera certa controvérsia sobre a atual demarcação desses terrenos.
Identificar um terreno de marinha pode ser complexo devido à natureza histórica da linha do preamar médio de 1831.
Basicamente, se seu terreno está próximo ao litoral e existe uma dúvida sobre sua classificação, é recomendável consultar a SPU ou um especialista em direito imobiliário público e terrenos de marinha.
Embora a documentação antiga e mapas náuticos possam ajudar na identificação, a avaliação técnica e parecer da SPU é decisiva.
Finalidade histórica e atual dos terrenos de marinha
Como já mencionado, historicamente os terrenos de marinha serviram para garantir que a faixa costeira estivesse sob controle estatal na eventual necessidade de defesa do território nacional e na navegação.
Também eram necessários para a infraestrutura militar, ou seja, para facilitar a movimentação de tropas ao longo da costa, e ainda, para a proteção das salinas que durante a economia colonial, pois o sal era um produto valioso naquela época.
Uma curiosidade, é que o termo “salário” tem origem exatamente nas “salinas”, e deriva do latim “salarium” que significa “pagamento de sal” ou “pelo sal”, justamente porque naquela época o sal valia muito em razão de ser umas das poucas maneiras para preservar a carne..
Hoje, os terrenos de marinha servem apenas como fonte de receita para a União, através da cobrança de taxas de ocupação e foro, além de laudêmios nas transações onerosas.
Apesar de algumas alegações de que esses terrenos protegem o meio ambiente, a legislação ambiental específica cumpre essa função de maneira mais direta, ou seja, terrenos de marinha não sinônimos de preservação ambiental.
Diferença entre Foro, Laudêmio e Enfiteuse
Foro, laudêmio e enfiteuse são conceitos importantes relacionados a terrenos de marinha que toda pessoa que possui uma área litorânea abrangida por terrenos de marinha precisa conhecer.
O “foro” é uma taxa anual paga por quem ocupa terrenos de marinha, geralmente fixada em 0,6% do valor do terreno. Esta taxa é uma obrigação contínua e é calculada como uma porcentagem do valor do terreno.
O “laudêmio” é uma taxa cobrada pela União na transferência onerosa do terreno (vendas), correspondente a 5% do valor da transação. Esta taxa é uma porcentagem do valor da transação e é devida sempre que há uma mudança de titularidade envolvendo remuneração.
A “enfiteuse” é um instituto jurídico que concede à pessoa física ou jurídica o direito de uso privativo e posse permanente de um imóvel pertencente à União, mediante o pagamento de taxas anuais e de um laudêmio nas transferências onerosas.
Embora o enfiteuta tem o direito de usar e aproveitar o terreno de marinha como se fosse proprietário, deve cumprir com obrigações específicas estabelecidas pela União.
Em resumo:
- Enfiteuse: refere-se ao direito de uso privativo e posse permanente do terreno pelo particular mediante o pagamento de taxas de foro e laudêmio.
- Foro: É a taxa anual paga pelo direito de uso contínuo do terreno. O seu pagamento mantém o direito de uso do terreno de marinha.
- Laudêmio: É a taxa paga nas transferências onerosas do direito de uso do terreno.
Entender a diferença entre foro, laudêmio e enfiteuse é essencial para aqueles que possuem ou estão interessados em adquirir terrenos de marinha, os quais são obrigados a cumprir determinadas regras para manter a legalidade e a regularidade do uso dos terrenos de marinha.
A polêmica atual: privatização de praias
Um tema que tem gerado bastante debate é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/22, que, segundo críticos, poderia levar à privatização das praias.
No entanto, é importante esclarecer que a PEC não trata da privatização de praias, mas sim da transferência dos terrenos de marinha para particulares, extinguindo da Constituição Federal tais áreas como “bens da União”, conforme dispõe:
Art. 1º As áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos passam a ter sua propriedade assim estabelecida: […]
III – passam ao domínio pleno dos foreiros e dos ocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação desta Emenda Constitucional;
IV – passam ao domínio dos ocupantes não inscritos, desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos 5 (cinco) anos antes da data de publicação desta Emenda Constitucional e seja formalmente comprovada a boa-fé; […]
§ 1º A transferência das áreas de que trata este artigo será realizada de forma:
I – gratuita, no caso das áreas ocupadas por habitação de interesse social e das áreas de que trata o inciso II do caput deste artigo;
II – onerosa, nos demais casos, conforme procedimento adotado pela União nos termos do art. 3º desta Emenda Constitucional.
As praias são bens de uso comum do povo e não podem ser privatizadas, nem serão privatizadas como equivocadamente tem sido divulgado em alguns canais da mídia e por influenciadores.
Embora a PEC 3/2022 propõe mudanças significativas na gestão e propriedade dos terrenos de marinha, a principal alteração é a transferência da propriedade desses terrenos, atualmente administrados pela União, para os estados, municípios e, eventualmente, para particulares.
A polêmica em torno da PEC 3/2022 gira em grande parte em torno do medo de que ela possa levar à privatização das praias. No entanto, há diferença entre os terrenos de marinha e praias propriamente ditas.
Em resumo, a PEC 3/2022 não propõe a privatização das praias ou da faixa de areia. As praias são consideradas bens de uso comum do povo e são protegidas por legislação específica que garante o acesso público.
A “privatização das praias” não está em pauta na PEC. A proposta se refere apenas aos terrenos de marinha, que são áreas próximas ao litoral, mas não incluem a faixa de areia que compõe as praias.
Análise da PEC 3/2022 – “PEC das Praias”
A PEC 3, de 2022, está estruturada em quatro artigos na sua parte normativa (arts. 1º ao 4º) e mais a cláusula de vigência (art. 5º) que prevê o seu início na data da publicação da Emenda Constitucional que dela decorrer.
Nos termos de seu o artigo 1º, os terrenos de marinha e seus acrescidos passam a ter sua propriedade assim estabelecida:
a) serão mantidos sob o domínio da União (inciso I): as áreas afetadas ao serviço público federal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos; as unidades ambientais federais; e, as áreas não ocupadas;
b) passam ao domínio pleno dos Estados e Municípios, as áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos (inciso II);
c) passam ao domínio pleno dos foreiros e ocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação da Emenda Constitucional decorrente da PEC (inciso III);
d) passam ao domínio dos ocupantes não inscritos, desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos 5 (cinco) anos antes da data de publicação desta Emenda Constitucional decorrente da PEC e seja formalmente comprovada a boa-fé (inciso IV);
e) passam aos cessionários as áreas que lhes foram cedidas pela União (inciso V);
f) a transferência da propriedade será realizada de forma (§ 1º): gratuita: quando ocupada por habitação de interesse social ou transferida para Estados e Municípios na áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal (inciso I do § 1º); onerosa: nos demais casos, de acordo com as providências da União (inciso II do § 1º);
g) as áreas que permanecerem com a União que não estejam ocupadas quando requeridas para o fim de expansão do perímetro urbano serão transferidas ao Município, observada a legislação sobre ocupação do solo urbano (§ 2º).
O artigo 2º proíbe a cobrança de foro, taxa de ocupação e laudêmio atinentes às áreas definidas como terrenos de marinha e acrescidos antes da vigência da Emenda Constitucional decorrente da PEC.
O terceiro artigo estabelece o prazo de até 2 (dois) anos para que a União efetive as transferências previstas na Emenda Constitucional decorrente da PEC (caput).
A PEC, em seu art. 4º, promove a revogação do inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
O inciso VII do caput do art. 20 dispõe serem bens da União os terrenos de marinha e seus acrescidos e o § 3º do art. 49 do ADCT trata da enfiteuse aplicada sobre os terrenos de marinha e seus acrescidos na faixa de segurança.
O objetivo da revogação desses dispositivos é afastar o instituto da enfiteuse sobre os terrenos de marinha e de transferir para a PEC as regras sobre o domínio público de terrenos de marinha e seus acrescidos.
Conclusão
A definição legal de terreno de marinha foi dada pela redação do art. 2º do Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, que dispõe sobre os bens imóveis da União e dá outras providências.
Segundo esse dispositivo, os terrenos de marinha correspondem às áreas localizadas a 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831, situados no continente, na costa marítima nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés ou que contornem as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.
Como se vê, a legislação utiliza como parâmetro a linha de preamar-médio que ocorreu em 1831, o que gera enorme insegurança jurídica quanto à propriedade de terrenos localizados em áreas que sofrem influxos das marés.
A União, até hoje, não demarcou a totalidade dos terrenos de marinha e muitas casas têm propriedade particular registrada em cartório, mas foram objeto de demarcação pela União, surpreendendo os proprietários que, mesmo com toda a diligência, passaram, de uma hora outra, a não mais serem proprietários de seus imóveis.
Em sua origem histórica, a importância dos terrenos da marinha esteve vinculada à ideia de defesa do território, principalmente ao objetivo da segurança da costa brasileira contra invasões estrangeiras.
Todavia, atualmente, essas razões não estão mais presentes, notadamente diante dos avanços tecnológicos dos armamentos que mudaram os conceitos de defesa territorial.
O fato é que o instituto terreno de marinha, da forma que atualmente é disciplinado pelo nosso ordenamento, causa inúmeras inseguranças jurídicas quanto à propriedade de edificações.
Portanto, a PEC 3/2022 soluciona esse grave problema e traz regramento adequado e equilibrado para os terrenos de marinha, e não para as praias, isto é, as praias não serão privatizadas como equivocadamente divulgado por algumas pessoas que sequer tiverem o trabalho de ler e interpretar a PEC.