Situação comum que temos observado na nossa prática jurídica é inaplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes ambientais relacionados à pesca.
Claro que nos casos em que o acusado já tiver sido flagrado na mesma prática anteriormente pela fiscalização ambiental ou a conduta não pode ser considerada de ínfima lesividade, então correto afastar o princípio da insignificância.
Contudo, quando o acusado nunca foi apreendido em pesca ilegal anteriormente, é tecnicamente primário, não possui qualquer antecedente nem procedimento anterior, penal ou administrativo instalado contra ele, e a quantidade de pescado é pequena, defendemos que deve incidir o princípio da insignificância.
Desse modo, verificando-se a inexpressivas da conduta do cidadão flagrado em situação de pesca irregular ou ilegal e suas consequências, deve ser afastada a tipicidade, por manifesta ausência de ofensividade.
Índice
O que é o princípio da insignificância
O princípio da insignificância surgiu no Direito Romano. No entanto, restringia-se ao âmbito cível, com suporte no brocardo de minimis non curat praetor (o magistrado não deve se ocupar de assuntos irrelevantes). Na década de 1970, foi introduzido ao Direito Penal, a partir dos estudos de Claus Roxin.
Tem por finalidade limitar o campo de incidência do tipo penal, evitando-se a punição de comportamentos criminosos irrelevantes que resultem em lesão inexpressiva ao bem jurídico tutelado pela norma penal.
Sua aplicação afasta a tipicidade material da conduta — não obstante formalmente típica — quando, como dito, não demonstrada lesão substancial ao bem jurídico.
Percebe-se que Claus Roxin introduziu no sistema penal o princípio geral da insignificância para a determinação do injusto, o qual atua igualmente como auxiliar na interpretação da norma penal. Tal postulado permite que se exclua o crime quando se verificarem danos de pouca relevância (hipótese dos autos).
Francisco de Assis Toledo[1], na esteira dos ensinamentos de Roxin, propõe que o Direito Penal, tendo em vista a sua natureza fragmentária, adote o princípio da insignificância para delimitar até onde deve ir para a proteção do bem jurídico, a fim de que não se ocupe com bagatelas.
Segundo tal doutrinador, haveria uma gradação qualitativa e quantitativa do injusto, que permitiria que o fato penalmente insignificante fosse excluído da tipicidade penal, podendo receber tratamento adequado, como ilícito civil-administrativo.
A doutrina e o princípio da insignificância
Assis Toledo preleciona que “(…) segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção ao bem jurídico. Não deve se ocupar de bagatelas.”[2]
PALAZZO conceitua o princípio de lesividade do delito como sendo aquele por meio do qual um fato não pode constituir ilícito se não for ofensivo (lesivo ou perigoso) ao bem jurídico protegido.[3]
Trata-se o princípio de necessária ofensa, conforme FERRAJOLI, de “uma afiada navalha descriminalizadora, idônea para excluir, por injustificados, muitos tipos penais consolidados, ou para restringir sua extensão por meio de mudanças estruturais profundas”.
Na esteira das lições do referido doutrinador, é de se afirmar que o princípio da ofensividade opera como um “critério polivalente de minimização das proibições penais”.
Por meio do princípio da insignificância é de se concluir que – se mostrando idôneo o direito penal tão-somente a tutelar bens jurídicos, e diante a afetações realmente intoleráveis, em situações extremas – é forçoso determinar-se uma redução na intervenção penal ao mínimo necessário.
Equivalendo tal postulado a um “princípio de tolerância tendencial da desviação”, deve-se conferir ao direito penal tão-somente o exame de situações capitais ao convívio social, relegando-se o restante às esferas cível e administrativa, fortalecendo-se, assim, a intervenção punitiva e conferindo ao direito penal maior credibilidade e legitimidade.[4]
Critérios para aplicação do princípio da insignificância
No julgamento do HC 84.412/SP, ocorrido no ano de 2004, o STF definiu vetores para aplicação do princípio da insignificância ou da bagatela que, desde então, têm norteado a atuação dos Ministros do STF e demais tribunais, a saber:
- a mínima ofensividade da conduta do agente;
- nenhuma periculosidade social da ação;
- o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e,
- a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
A presença desses quatro vetores objetivos, que estão relacionados ao fato e não às características pessoais do cidadão acusado de praticar o crime ambiental, verifica-se nos casos em que não há a apreensão de nenhum peixe pelos agentes de fiscalização e nem de petrechos de pesca proibidos, por exemplo.
A teoria geral do crime nos permite iluminar o entendimento acerca dos prismas formal e material da tipicidade. O formal reside no juízo de adequação entre o comportamento e o fato descrito na norma penal; enquanto o material é representado pela dimensão valorativa da lesividade ao bem jurídico tutelado.
Desse modo, embora se afigure a tipicidade formal em casos envolvendo pesca irregular ou ilegal, é de se reconhecer que não há tipicidade material.
Ora. Não se pode considerar que a conduta e o resultado típicos tenham degradado ou colocado em risco de degradação o equilíbrio ecológico das espécies e dos ecossistemas, se ausente a apreensão de qualquer ser protegido ou material proibido.
Ausência de risco real e significativo ou mesmo potencial
Nos casos em que não houve risco real e significativo ou mesmo potencial ao bem jurídico tutelado, deve-se aplicar o princípio da consunção, porque mera conduta, embora se adeque à tipicidade material, não justifica a incidência do Direito Penal.
Assim, verificada a presença dos quatro vetores (a mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e, a inexpressividade da lesão jurídica provocada), deve incidir o princípio da insignificância.
E sua incidência afastará, no plano material, a própria tipicidade da conduta diante da ausência de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. Se a análise dos fatos conduz ao reconhecimento da existência de fato insignificante, não há porque atrair o Direito Penal.
Frise-se que ainda que haja uma adequação formal típica em casos de pesca irregular ou ilegal, não há como dizer-se tenha o agente, por meio de seu agir, atacado, de modo intolerável, o bem jurídico que o tipo penal in casu objetiva tutelar (o meio ambiente).
Assim, se não foi constatada a pesca de um animal sequer, ou seja, nenhum peixe ou apetrecho proibido foi apreendido com o agente, o qual também não possui qualquer antecedente nem procedimento anterior, penal ou administrativo, instalado contra ele, afasta-se a tipicidade material.
O que diz a jurisprudência sobre a insignificância
O Supremo Tribunal Federal – STF firmou entendimento no sentido da aplicabilidade do princípio da insignificância no sistema penal brasileiro, desde que preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos muito bem explicados por Nilo Batista[5] e pela própria jurisprudência destea Suprema Corte quando do julgamento do HC 84.412, de relatoria do Ministro Celso de Mello:
“Seu postulado decorre da interpretação dos seguintes princípios basilares do Direito Penal, que se inter-relacionam: “(i) da intervenção mínima (o direito penal só deve ser utilizado como ultima ratio (ii) da fragmentariedade (o direito penal é um “sistema descontínuo de ilicitudes”, que somente se destina a proteger determinadas ofensas a certos bens jurídicos, sendo vedada a analogia para preencher lacunas sob o pretexto de resguardá-los); (iii) da subsidiariedade (só se deve lançar mão do direito penal caso outros ramos do direito não sejam capazes de oferecer uma resposta satisfatória); e (iv) da lesividade (não há crime sem lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico pertencente a outrem).”
O Supremo Tribunal Federal já aplicou o dito princípio à espécie delitiva ambiental em casos que não houve qualquer apreensão de peixes ou equipamentos:
INQUÉRITO. DENÚNCIA CONTRA DEPUTADO FEDERAL. CRIME AMBIENTAL. PESCA EM LUGAR INTERDITADO POR ÓRGÃO COMPETENTE. ART. 34 DA LEI N. 9.605/1998. AFASTAMENTO DA PRELIMINAR DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. ALEGADA FALTA DE JUSTA CAUSA PARA O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL. ACOLHIMENTO. 1.Inviável a rejeição da denúncia, por alegada inépcia, quando a peça processual atende ao disposto no art. 41 do Código de Processo Penal e descreve, com o cuidado necessário, a conduta criminosa imputada a cada qual dos denunciados, explicitando, minuciosamente, os fundamentos da acusação. 2. Hipótese excepcional a revelar a ausência do requisito da justa causa para a abertura da ação penal, especialmente pela mínima ofensividade da conduta do agente, pelo reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e pela inexpressividade da lesão jurídica provocada. (STF, Inq 3788, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 01/03/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-122 DIVULG 13-06-2016 PUBLIC 14-06-2016)
AÇÃO PENAL. Crime ambiental. Pescador flagrado com doze camarões e rede de pesca, em desacordo com a Portaria 84/02, do IBAMA. Art. 34, parágrafo único, II, da Lei nº 9.605/98. Rei furtivae de valor insignificante. Periculosidade não considerável do agente. Crime de bagatela. Caracterização. Aplicação do princípio da insignificância. Atipicidade reconhecida. Absolvição decretada. HC concedido para esse fim. Voto vencido. Verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, à luz das suas circunstâncias, deve o réu, em recurso ou habeas corpus, ser absolvido por atipicidade do comportamento. (HC 112563, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 21/08/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-241 DIVULG 07-12-2012 PUBLIC 10-12-2012)
O Ministro Relator Ricardo Lewandowski, ao relatar o HC 181.235/SC, aplicou o Princípio da Insignificância em caso de pesca absolvendo o acusado:
No presente caso, o paciente sequer estava praticando a pesca e não trazia consigo nenhum peixe ou crustáceo de qualquer espécie, quanto mais aquelas que se encontravam protegidas pelo período de defeso.
Dessa forma, os fatos narrados nestes autos mais se assemelham com o entendimento proferido pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal na análise do Inq 3.788/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, onde o colegiado aplicou o princípio da insignificância em favor do então Deputado Federal e atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, verbis: […]
Seria de extrema injustiça aplicar o princípio da insignificância em favor de um parlamentar, hoje Presidente da República, cuja função é zelar e elaborar as leis de nosso país e negar tal benefício a um cidadão hipossuficiente, assistido pela Defensoria Pública da União.
Isso posto, considerando que este caso revela “hipótese excepcional a revelar a ausência do requisito da justa causa para a abertura da ação penal, especialmente pela mínima ofensividade da conduta do agente, pelo reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e pela inexpressividade da lesão jurídica provocada” (Inq 3788/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia), concedo a ordem de habeas corpus para absolver o paciente, em razão da aplicação do princípio da insignificância.
Como se vê dos julgados acima, a incidência do princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade, na sua vertente material, ou seja, resulta no reconhecimento da conduta incapaz de causar lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.
E o entendimento de que não se aplica o princípio da insignificância aos crimes ambientais?
No tocante a eventual alegação sobre não incidência do princípio da insignificância em delito ambiental, defendemos que tal premissa não merece respaldo. O citado princípio trata-se de postulado universal, não encontrando restrição em tal ou qual espécie delitiva.
Não afrontado o bem jurídico que a norma busca tutelar, é imposição a incidência de tal princípio, desimportando seja descaminho, contrabando, furto, estelionato ou crime ambiental.
E isso principalmente em casos de pesca em que o agente não pescou nenhum peixe ou ainda que tenha apanhado algumas poucas espécies, forçoso concluir que o bem jurídico o qual a norma penal objetiva tutelar, não foi, nem em mínima medida, arranhado, razão por que não há falar em obstaculização à aplicação da orientação que pugna pela declaração da irrelevância penal.
Assim, reconhecida a ínfima lesividade do presente fato, com apoio no princípio da ofensividade, em respeito, ademais, aos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da fragmentariedade, da intervenção mínima, da exclusiva proteção de bens jurídicos e da insignificância penal, preceitos indissociáveis do Estado Democrático de Direito, entendemos cabível o princípio da insignificância em casos de pesca ilegal ou irregular.
[1] Princípios Básicos. Saraiva, 1991.
[2] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, 5ª ed. Saraiva, 2002. p. 133.
[3] PALAZZO, Francesco C.. Valores Constitucionais e Direito Penal. Um estudo comparado. Trad. Gérson Pereira dos Santos, Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 1989, p. 78.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica et al. 2ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p. 438 e seguintes.
[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro 2011, p. 82- 94.