O escritório tem recebido muitos casos de autuações em “área rural consolidada”. Entretanto, muitas vezes os clientes apenas alegam: “Mas Doutor, minha área é consolidada. Eu não poderia ser multado”. Será mesmo?
Bom, meu nome é Diovane Franco, especialista em Direito Ambiental e sócio do escritório Farenzena & Franco Advocacia Ambiental, e hoje irei destrinchar a questão das áreas consolidadas com você, nosso colega leitor, cliente e parceiro de profissão.
Índice
O que é a área consolidada?
Por “área rural consolidada” entende-se aquela propriedade rural que possuía ocupação antrópica (humana) anteriormente a 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris.
É dizer: é aquela área em que em 22.07.2008 já se encontrava em efetivo uso.
Neste último caso, o que seriam as atividades agrossilvipastoris? É a atividade de agricultura, pastoril (equinos, bovinos, suínos, ovinos e outros que se utilizam pasto.
Por sua vez, as atividades de silvicultura também se enquadram neste conceito, sendo estas consideradas todas as atividades relativas ao manejo das florestas e produção de seus derivados.
Assim, o manejo sustentável, por exemplo, é apto a caracterizar a Área Rural Consolidada.
Mas qual a razão de ser 22.07.2008, e não outra data?
Essa data é publicação do Decreto 6.514/2008. Por sua vez, a área rural consolidada foi prevista no Código Florestal de 2012 (Lei 12.651/2012).
A data de 22.07.2008 se deve ao fato de que antes dele não havia previsão legal de infrações administrativas ambientais, de modo que seriam considerados ilícitos tão somente os atos praticados contra o ambiente a partir da mencionada data (MILARÉ; Machado, 2012).
Em verdade, entendemos que houve desconsideração do Decreto anterior, qual seja o 3.179/99, com um precípuo objetivo de anistia àqueles que não tivessem Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente nos termos do novo Código, já que houve “restrição”.
À exemplo, em área amazônica, anteriormente o percentual de reserva legal era de 50%, passando a ser 20% com o novo Código. Por isso então a “anistia”. Mas veremos que não se trata de “anistia”, como muitos alegam.
O regime legal da área consolidada: sistemática e funcionamento
Conforme é cediço, o Código Florestal criou regras de transição para desmates ocorridos antes de 22/07/2008.
De acordo com o artigo 66 da lei de regência, “o proprietário ou possuidor de imóvel rural que detinha, em 22 de julho de 2008, área de Reserva Legal em extensão inferior ao estabelecido no art. 12, poderá regularizar sua situação, independentemente da adesão ao PRA, adotando as seguintes alternativas: […]”.
E aí passa o artigo a falar nas formas de regularização: recomposição, permissão de regeneração da vegetação ou compensação.
Além da instituição de formas gradativas de regularização das áreas em questão, o Código Florestal também estabeleceu critérios para a conversão das multas aplicadas em decorrência da supressão da vegetação nativa dessas áreas.
A esse respeito, o §4º do art. 59, da Lei n. 12.651/12, determina que, no período entre a publicação do Código Florestal e a implantação do PRA – programa de regularização ambiental –, em cada Estado, o proprietário ou possuidor do imóvel não poderá ser autuado por infrações ambientais ocorridas antes de 22 de julho de 2008, relativas à supressão irregular de vegetação.
É aqui que reside o grande ponto da questão. O dispositivo legal em comento prevê que, após a adesão do interessado ao PRA e enquanto estiver sendo cumprido o termo de compromisso, o proprietário ou possuidor não poderá ser autuado por infrações cometidas antes de 22 de julho de 2008, relativas à supressão irregular de vegetação em Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito.
Já o § 5º do artigo 59, da Lei n. 12.651/2012, estabelece que:
“a partir da assinatura do termo de compromisso, serão suspensas as sanções decorrentes das infrações mencionadas no § 4º deste artigo e, cumpridas as obrigações estabelecidas no PRA ou no termo de compromisso para a regularização ambiental das exigências desta Lei, nos prazos e condições neles estabelecidos, as multas referidas neste artigo serão consideradas como convertidas em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente, regularizando o uso de áreas rurais consolidadas conforme definido no PRA.”
Nota-se que o Código Florestal trata de forma distinta as infrações ambientais de supressão de vegetação nativa ocorridas antes de 22 de julho de 2008, inclusive no âmbito sancionador, apartando expressamente a aplicação de medidas de caráter punitivo para solução do caso e dando espaço a medidas que visem à regularização gradativa dos passivos ambientais, ao prever a possibilidade de afastamento da multa condicionada à recuperação do dano ambiental praticado antes de 22 de julho de 2008, por meio da adesão ao programa de regularização ambiental, assinatura do termo de compromisso e cumprimento das condições impostas no curso do programa em destaque.
Portanto, as conclusões que chegamos são as seguintes:
- Desmates anteriores a 22.07.2008: o proprietário não poderá ser autuado por infrações ambientais ocorridas entre a publicação do Código Florestal e a implantação do sistema PRA;
- Desmates anteriores a 22.07.2008 com adesão ao PRA: em caso de infrações cometidas anteriormente a esta data e havendo adesão ao PRA, com a assinatura do termo de compromisso ambiental, serão suspensas as sanções.
- Desmates posteriores a 22.07.2008: será autuado normalmente. A área deverá ficar embargada até que haja a regeneração, retornando ao status quo ante.
Percebe-se, facilmente, portanto, os requisitos: desmate anterior a 22.07.2008 + CAR + adesão ao PRA + assinatura do termo de compromisso.
Ocorre que muitos estados, à exemplo do Mato Grosso, não está como sistema do PRA definitivamente implantado.
Nesses casos, a justiça tem decidido que o registro da propriedade no CAR, acrescido da adesão ao PRA, é suficiente para que haja a suspensão da sanção, não sendo impossível prejudicar o administrado por ineficiência da máquina pública.
E as propriedades cuja área sejam inferiores a quatro módulos fiscais?
Neste caso, o Código Florestal tratou de modo ainda mais especial a situação das propriedades com área inferior a quatro módulos fiscais.
Com efeito, a Lei n. 12.651/2012, em seu art. 67, é clara ao dispor que “nos imóveis rurais que detinham, em 22 de julho de 2008, área de até 4 (quatro) módulos fiscais e que possuam remanescente de vegetação nativa em percentuais inferiores ao previsto no art. 12, a Reserva Legal será constituída com a área ocupada com a vegetação nativa existente em 22 de julho de 2008, vedadas novas conversões para uso alternativo do solo.”
Portanto, não houve a imposição de regularização do passivo ambiental das propriedades que se enquadrem no conceito de pequena propriedade rural, não houve a exigência de solução, ainda que gradativa, do dano ambiental, diversamente do que ocorreu em relação a propriedades maiores que quatro módulos fiscais que possuíam, em 22/07/2008, percentual de reserva legal inferior ao previsto em lei.
Conclui-se, diante da leitura do artigo 67, que a intenção do legislador foi conceder uma espécie de “anistia” em relação à supressão de vegetação nativa ocorrida antes de 22/07/2008 em área inferior a quatro módulos, anistia essa que alcançou não só o dever de reparar o dano, mas também as sanções administrativas correlatas.
Isso porque, no caso das propriedades rurais em que há mais de quatro módulos fiscais, o Código Florestal previu o afastamento da multa, considerando-se satisfeita tal sanção tão só com a regularização do dano ambiental em propriedades em que é exigida a recuperação do dano ambiental anterior a 22/07/2008.
O legislador contentou-se no caso das propriedades rurais acima de quatro módulos fiscais, portanto, com a recuperação do passivo ambiental, deixando de lado a cobrança da sanção pecuniária.
Ora, se na situação de maior relevância, que são as propriedades maiores do que quatro módulos fiscais, em que o Código Florestal impôs a recuperação do passivo ambiental, previu-se a possibilidade de “perdão” da sanção pecuniária, não faz sentido cobrar a multa daquele cujo dano ambiental foi “anistiado” pelo legislador, com relação ao qual não houve interesse em cobrar-lhe a adesão ao PRA, assinatura de termo de compromisso, ou qualquer outra medida tendente à regularização do dano ambiental.
Considerações finais e benefícios
Conforme mencionado, o Código Florestal tratou de forma diversa as situações anteriores a 22/07/2008, afastando expressamente medidas de caráter punitivo, para dar lugar a medidas gradativas de regularização das áreas degradadas antes do marco temporal em discussão.
Analisando-se sob essa ótica, a manutenção da sanção pecuniária nos casos de supressão de vegetação, que o legislador sequer revelou interesse em buscar a recuperação, inverte a lógica estabelecida pelo referido diploma legal.
Portanto, a pequena propriedade rural, considerada aquela inferior a quatro módulos fiscais, que possuía em 22.07.2008 remanescente de vegetação nativa em percentuais inferiores ao previsto no art. 12 do Código Florestal, está “anistiada”, não devendo recuperar o passivo ambiental e, muito menos, pagar qualquer multa.
Conclui-se, portanto, que a área rural consolidada traz diversos benefícios aos proprietários de áreas rurais, já que a regra é a suspensão das sanções para as infrações anteriores a 22.07.2008 e, em se tratando de pequena propriedade rural, uma verdadeira anistia.
22 Comentários. Deixe novo
Deixa perguntar?
Estou comprando uma área de 750 hectares que tem 576 hectares de abertura (aberto antes de 2008) no estado do Pará.
Nesse caso eu tenho que adquirir mais mato porque ela está mais de 50% aberta?
Ou o fato dela ter sido aberta antes de 2008 não teria que recompor essa diferença dos 50%?
De fato, áreas abertas antes de 2008 têm peculiaridades específicas, por isso é essencial realizar uma análise detalhada de toda a documentação da propriedade e análise de imagens históricas para garantir que sua aquisição esteja em conformidade com todas as exigências legais, evitando possíveis passivos ambientais. Para esclarecer todas as suas dúvidas e oferecer uma orientação precisa, recomendo que agendemos uma reunião para analisar a área que você está comprando. Nosso escritório pode ajudar a verificar todos esses aspectos, assegurando que a compra se torne segura.
Bastante esclarecedor e útil o artigo. Interessante essa determinação da data de 22/07/2008 com relação a áreas de uso antrópico consolidado e à questão do limite de quatro módulos fiscais. (mais interessante na visão do pequeno produtor). A interpretação do Código Florestal, e normas afins, exige esse exercício de compreensão teleológica um tanto quanto complexa. O artigo cumpre papel louvável de esmiuçar detalhes e apresentar temas de modo linear de fácil entendimento.
Dura Lex sed Lex. No caso em comento, o decreto 6.514 de 22/7/2008 e novo código florestal trouxeram regras objetivas e oportunas, pois deu soluções plausíveis para situações de difícil solução, mormente para o pequeno produtor rural e áreas inferiores a 4 módulos fiscais. Ótimo conteúdo, muito útil. Exposto de maneira muito didática.
Ótimas ponderações, especialmente relativas a pequena propriedade rural. Tenho uma questão a ser resolvida, uma ação civil pública – ACP, e com o conteúdo desta publicação e análise de caso, vejo no horizonte jurídico ampla possibilidade de resolução da lide. Um abraço, e muito obrigado por compartilhar conhecimento.
Como regularizar área desmatada após 2008? Essa área que foi aberta está fora de app e reserva legal.
Depende, tem que analisar caso a caso, em especial, se há excedente de vegetação, pequena propriedade rural, atividade de subsistência…