Herdeiros podem arcar com a multa por infração ambiental cometida pelo autuado falecido, se a morte do infrator ocorrer após o julgamento do processo administrativo ambiental, ao contrário, o auto de infração ambiental deve ser extinto.
A sanção decorrente de infração administrativa ambiental cometida não se configura com a simples lavratura do auto de infração.
Em obediência ao princípio do devido processo legal (art. 5º, LV, da CF/88), somente se pode considerar aplicada uma sanção decorrente de infração administrativa após a instauração e a instrução de um processo administrativo que visa apurar os fatos.
No curso do processo instaurado deve ser oportunizado o exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório e somente quando, e se afastadas as razões apresentadas pelo administrado, é que a sanção poderá ser efetivamente aplicada.
Nesse sentido, destaca Celso Antônio Bandeira de Mello[1], ao comentar a incidência do princípio do devido processo legal administrativo nas infrações e sanções administrativas:
Esta exigência da Lei Maior erige dificuldades práticas no caso de certas sanções, como por exemplo, na aplicação de multa de trânsito, e sugere – nisto, equivocadamente – que também haveria a mesma dificuldade relativamente a hipóteses como as de apreensão de equipamentos de caça ou pesca efetuada fora das exigências legais, ou de alimentos comercializados em más condições de higiene, ou a destruição, por este motivo, de xícaras ou copos rachados, encontrados pela Fiscalização em bares ou restaurantes populares.
Quanto às multas de trânsito, ter-se-á de entender que a lavratura do auto de infração por parte do agente de trânsito – e que, por razões óbvias, não tem como deixar de ser feita imediatamente e serem apurados rigorismos e formalismos – é apenas uma preliminar do lançamento da multa, o qual só se estratifica depois de ofertada a possibilidade de ampla defesa e se esta for desacolhida.
Quanto às outras hipóteses não procederia a dúvida, pois não seriam sanções administrativas, mas providências acautelatórias, e, por isto mesmo, em face da urgência, desobrigadas de obediência a um processo preliminar. (…)
Quase sempre tais providências precedem sanções administrativas, mas com elas não se confundem. Assim, e.g., a provisória apreensão de medicamentos ou alimentos presumivelmente impróprios para consumo da população, a expulsão de um aluno que esteja a se comportar inconvenientemente em sala de aula, a interdição de um estabelecimento perigosamente poluidor, quando a medida tenha que ser tomada sem delonga alguma, são medidas acautelatórias e só se converterão em sanções depois de oferecida oportunidade de defesa para os presumidos infratores.
Como se vê, em certos casos a compostura da providência acautelatória é prestante também para cumprir a função de sanção administrativa, mas só assumirá tal caráter, quando for o caso, após conclusão de um processo regular, conforme dito.
Logo, outra conclusão não existe senão a de que a aplicação efetiva de uma sanção administrativa demanda o devido processo administrativo para se tornar exigível.
Lado outro são as medidas acautelatórias, as quais não se confundem com penalidade e, portanto, independem de contraditório. A sanção pecuniária, todavia, jamais pode ser imposta sem que se dê oportunidade de defesa ao autuado.
Sendo assim, tem-se que apenas após a ciência do autuado acerca da decisão irrecorrível é que a sanção administrativa pode ser executável, passando a integrar o patrimônio passivo do infrator.
Por esta razão, podem ser adotados dois tipos de procedimentos a depender do momento em que se deu o óbito do autuado: 1) No curso do processo administrativo, e 2) Após o trânsito em julgado administrativo.
Índice
1. Óbito do infrator no curso do processo administrativo
A Constituição Federal relaciona direitos e garantias aos cidadãos. Dentre eles, destaca-se:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;
Sobre o tema, ensina José Afonso da Silva[2]:
(b) personalização da pena (inc. XLV), vale dizer: a pena não passará da pessoa do delinquente, no sentido de que não atingirá a ninguém de sua família, nem a terceiro, garantia, pois, de que ninguém pode sofrer sanção por fato alheio, salvo a possibilidade de extensão aos sucessores e contra eles executadas, nos termos da lei, da obrigação de reparar o dano e da decretação de perdimento de bens, até o limite do valor do patrimônio transferido.
A proteção assegurada pela Constituição Federal ganha especial relevância no caso em apreço porquanto constitui princípio que alcança não apenas as sanções de caráter criminal, mas também o Direito Administrativo sancionador.
Tendo em conta que as multas aplicadas em reprimenda às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, com base no Decreto 6.514/2008, são sanções administrativas, não ultrapassam a pessoa do agente infrator em razão do princípio constitucional da personalização da pena.
Assim, o falecimento do autuado antes da decisão administrativa irrecorrível, desde que devidamente comprovado nos autos mediante juntada da certidão de óbito, extingue o ius puniendi do Estado. Em tal hipótese, põe-se fim ao processo ante a extinção da punibilidade.
Os efeitos do arquivamento do processo por falecimento do autuado se estendem aos termos de apreensão/embargo que acompanham o auto de infração, salvo aos acautelatórios, que decorrem do exercício do poder de polícia na tutela do bem ambiental (art. 101, Decreto 6.514/2008).
Para Curt Trennepohl[3], a lavratura do auto de infração:
[…] representa a imputação de um ilícito, facultando ao autuado que se defenda para, só então, ser julgado e eventualmente penalizado. Já no caso do embargo ou interdição, a medida coercitiva pode ser aplicada sumariamente, o que os torna institutos excepcionais que, embora definidos pela norma como sanções, perdem esta característica na medida em que são aplicados como medidas de precaução, sem que ao administrado seja oferecido o contraditório e a ampla defesa.
Caso o órgão ambiental embargue uma obra por falta de licenciamento ambiental, a emissão de licença em momento posterior não basta para suspender embargo, havendo necessidade de decisão fundamentada da autoridade competente.
Do mesmo modo, a extinção da punibilidade em decorrência do óbito não implica em revogação automática da restrição imposta, devendo a autoridade julgadora se manifestar expressamente sobre a manutenção ou não dos termos, bem como quanto à destinação de bens apreendidos, se for o caso.
Portanto, em se tratando de medida que objetiva impedir que a continuidade da ação resulte em maiores danos ao meio ambiente, o embargo ou interdição é mantido, cabendo à autoridade julgadora elaborar despacho saneador, determinando, se for caso, a lavratura de novo termo de embargo/interdição em face do espólio/herdeiros do falecido.
No caso de obras ilegais ou irregulares, sem licença ou em desacordo com a mesma, justifica-se a manutenção do embargo porque as atividades devem ser paralisadas independentemente de quem seja o responsável.
E mais, até que haja manifestação da autoridade competente, o descumprimento do embargo por qualquer pessoa enseja a aplicação da multa prevista no art. 79 do Decreto 6514/2008, que varia de dez mil a um milhão de reais, sem prejuízo da ação criminal por desobediência.
No caso das infrações continuadas, uma vez comprovado o falecimento do autuado, será extinto e arquivado o auto de infração lavrado em face do de cujus.
No entanto, deve ser feita uma vistoria para averiguar a perpetuação da infração e, em caso positivo, deve-se apurar e autuar o novo infrator. O processo arquivado deverá ser apensado ao então instaurado.
Caso a conduta do autuado falecido tiver causado danos efetivos ao meio ambiente, deve-se apurar se houve a pronta reparação do dano ocorrido, pois, caso contrário, deverá ser ajuizada ação cível para reparação de danos ambientais contra os herdeiros ou o espólio.
É que a obrigação de recuperar o dano ambiental não é personalíssima, possuindo caráter compensatório em prol da coletividade, e não meramente sancionador, conforme esclarece o art. 5°, inc. XLV, da Constituição Federal/1988.
Ou seja, subsiste para os herdeiros o dever de restabelecer o status quo ante, nos termos do art. 225, §3° da CF/88 a esse despeito, Álvaro Luiz Valery Mirra[4]:
No tocante ao dano causado ao meio ambiente, acreditamos que o princípio da reparação integral deva ser retomado em toda a sua amplitude. A reparação, como se viu, naquela idéia de compensação do prejuízo, deve conduzir o meio ambiente e a sociedade a uma situação na medida do possível equivalente à de que seriam beneficiários se o dano não tivesse sido causado.
Portanto, morto o Autuado antes de tornada irrecorrível a multa apontada no auto de infração ambiental, extinta estará a punibilidade no que tange à conduta descrita no auto.
2. Óbito do autuado depois do trânsito julgado administrativo
Prima facie, cumpre esclarecer o conceito de “trânsito em julgado administrativo”. Em suma, significa que a situação do infrator frente à Administração restou consolidada, ou seja, que na via administrativa tornou-se inalterável a última decisão prolatada nos autos, excetuada a hipótese de revisão dos atos administrativos pela própria Administração (autotutela). Ocorre com a ciência do autuado acerca da decisão irrecorrível ou quando deixa transcorrer o prazo sem interpor recurso.
Pois bem. Após a notificação do autuado acerca da prolação da decisão irrecorrível, está encerrado o processo administrativo e formalmente aplicada a sanção, restando apenas a sua execução. Falecido o infrator, seu patrimônio passa a responder pela dívida, que poderá ser cobrada dos herdeiros ou do espólio.
O art. 1.997 do Código Civil regulamenta a questão estabelecendo que os herdeiros do falecido paguem a dívida deixada, mas fazendo uso da herança que lhe fora destinada. Desse modo, se a dívida ultrapassar o valor da herança, os herdeiros não precisarão pagar o excedente.
Em regra o pagamento deverá ser feito antes da divisão dos bens, porém, caso a partilha já tenha sido consumada, a quantia devida poderá ser adimplida por todos ou apenas um herdeiro, que resguarda o direito de exigir dos demais o que exceder a sua cota.
Art. 1.997. A herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube.
Também a obrigação de prestação de serviço consignada em Termo de Compromisso celebrado entre o órgão ambiental e o autuado é transmissível (no caso de conversão de multa em prestação de serviços).
Se o autuado ou seus herdeiros não cumprirem a obrigação de reparar o dano ambiental, a multa será cobrada em Juízo. Então, os herdeiros podem optar por cumprir as obrigações constantes do Termo de Compromisso ou pagar a multa correspondente.
Vale destacar, pois, que a cobrança da multa ambiental dos herdeiros ou do espólio somente é possível se o falecimento do autuado ocorrer após a sua citação nos autos da execução fiscal.
Neste caso, será possível o redirecionamento da execução contra os herdeiros ou o espólio, que respondem pela dívida do falecido até o limite da herança, conforme entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ no AREsp 1.304.152.
O pagamento da multa, por outro lado, não tem o condão de remir a obrigação de reparar os danos. Antes de concluirmos, cabem algumas considerações relativas à firma individual.
3. Conclusão
Como estudado, no caso de falecimento do autuado, há dois tipos de procedimentos a serem adotados a depender do estado em que se encontra o procedimento, se com ou sem o trânsito em julgado administrativo;
Ocorrendo a morte do autuado antes do trânsito em julgado da decisão administrativa, deve o procedimento apuratório ser extinto e arquivado, sem que a obrigação de pagar a multa seja transmitida aos herdeiros.
Neste caso, o falecimento do autuado antes da coisa julgada administrativa, fato a ser devidamente comprovado nos autos, afasta o ius puniendi do Estado.
Por outro lado, se o óbito ocorrer depois de formada a coisa julgada, estará constituído o crédito do órgão ambiental, podendo a dívida ser cobrada dos herdeiros ou do espólio.
Neste caso, porém, somente será possível realizar a cobrança da multa ambiental dos herdeiros ou espólio, se realizada a citação do infrator nos autos da execução fiscal antes do seu falecimento.
Em qualquer dos casos, podem ser adotadas medidas objetivando a reparação do dano ambiental, tendo em vista que a responsabilidade civil é diferente da administrativa, e pode ser cobrada de qualquer um, independente do dolo ou culpa.
No caso de embargo/interdição, a extinção da punibilidade em decorrência do óbito não implica em revogação automática da restrição imposta pela autoridade ambiental, mormente em se tratando de medida acautelatória. Cabe à autoridade julgadora decidir pela manutenção ou não dos termos.