O Ministério Público Federal – MPF ajuizou uma ação penal contra um produtor rural, imputando-lhe a prática do crime ambiental de desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente, crime esse previsto no Art. 50-A da Lei 9.605/98.
Contudo, o juiz rejeitou a denúncia com fundamento na ausência de justa causa, conforme previsto no art. 395, III, do Código de Processo Penal, porque não havia indícios razoáveis de materialidade e autoria aptos a instaurar a presente ação penal, uma vez que a denúncia se baseou exclusivamente em auto de infração emitido por agente de fiscalização do IBAMA.
Contra essa decisão, o MPF, inconformado, interpôs Recurso em Sentido Estrito[1] (recurso cabível nos termos do art. 581 do CPP, quando o juiz não receber a denúncia ou a queixa).
Até aqui parece uma ação penal por crime ambiental normal. Mas o ponto central desse artigo cinge-se a analisar as razões do recurso do MPF, segundo o qual a denúncia deveria ser recebida por força do “princípio in dubio pro societate”.
Contudo, o intitulado “princípio in dubio pro societate” não é princípio. Não possui amparo legal, nem decorre da lógica do sistema processual penal brasileiro por não se compatibilizar com o Estado Democrático de Direito por conflitar diretamente com o princípio da presunção da inocência. É isso que vamos analisar no artigo de hoje.
Antes de prosseguirmos, quero informar que essa ação penal por crime ambiental nos foi enviada pelo queridíssimo colega Eslen para fins de elaboração de um Estudo de Caso para a Comunidade Ambiental. Se você ainda não conhece nossos Estudos de Caso, clique aqui.
Índice
Ausência de justa causa
Para compreender a inaplicabilidade do princípio in dubio pro societate, abrimos um parênteses para explicar porque o juiz rejeitou a denúncia por crime ambiental, o que nos ajudará a compreender que não existe dúvida em favor da sociedade quando se o objetivo é apurar crimes ambientais.
É certo que o ato administrativo tem presunção de legitimidade, mas essa presunção se coaduna com o direito administrativo, onde há prevalência do interesse público para com o privado, e não com o direito penal ambiental.
Isso porque, na seara criminal, quando da análise preliminar da ação penal para recebe-la ou não, deve o juiz valorar as provas ali apresentadas com cautela, evitando o processamento de ações genéricas e consequentemente de cidadãos de forma indevida.
No caso analisado, corretíssima a decisão que rejeitou a denúncia por ausência de justa causa, porque não havia testemunhas e nem oitiva do denunciado na fase investigatória.
Aliás, não havia nenhuma diligência complementar no sentido de evidenciar o dano ambiental e o nexo causal deste com ato do denunciado pelo crime ambiental.
Embora não se exija prova cabal na fase do recebimento da denúncia, o único documento anexado à denúncia era o processo administrativo do auto de infração ambiental, que sequer demonstrava de indícios de materialidade e autoria do autuado, ora denunciado.
Assim, o suposto desmatamento poderia ter ocorrido por causas naturais, atos de terceiros, ou até mesmo por ato próprio do denunciado, mas esse não foi sequer ouvido, seja pelo IBAMA, seja pela autoridade policial ou MPF. E para complementar, a denúncia não trazia fundamento suficiente acerca da imputação do crime ao denunciado.
Assim, considerando que a presunção de legitimidade do ato administrativo é relativa e atributo afeto ao direito administrativo, para recebimento da denúncia exige-se haver prova ou indício corroborando esta legitimidade, até porque, essa legitimidade não se encerra com a lavratura do auto de infração ambiental, sendo que, até em âmbito administrativo é cabível recurso, revisão e até anulação do ato administrativo.
A justa causa, condição para a ação penal, é prevista expressa no CPP, e, consubstancia-se no lastro probatório mínimo e firme indicativo da autoria e materialidade da infração penal.
Se a denúncia se basear exclusivamente em auto de infração emitido por agente do IBAMA, evidente que lhe falta justa causa e, portanto, não poderá ser recebida, sob pena de o Poder o Judiciário condenar alguém criminalmente com base única e exclusivamente em auto de infração.
In dubio pro societate
Como anunciado no início, contra a decisão que rejeitou a denúncia, o MPF interpôs recurso em sentido estrito alegando que a denúncia deveria ser recebida por força do princípio in dubio pro societate.
Contudo, não se pode pretender que a denúncia seja recebida com fundamento no suposto in dubio pro societate, que aliás, sequer pode ser considerado um princípio.
Isso porque, nosso ordenamento jurídico contempla, expressamente, o princípio in dubio pro reo no inciso LXIII do art. 5º, da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Não obstante, a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 8º, nº 2, primeira parte, dispõe que “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.”
Justamente por isso decorre da lógica que não existe “princípio in dubio pro societate” em razão da incompatibilidade com a ordem democrática e o sistema processual acusatório.
O princípio in dubio pro societate nada mais que é um aforismo, uma máxima do Direito que carece de amparo legal e não possui nenhuma lógica, até porque conflita diretamente com o princípio da presunção de inocência, esse sim previsto no ordenamento jurídico.
Inclusive, o Superior Tribunal de Justiça – STJ[2] já assentou que “Em um Estado de Direito que se pretende Democrático não há espaço para a máxima in dubio pro societate. Pelo contrário, para a sujeição do indivíduo aos rigores do processo penal é indispensável que a Polícia amealhe elementos informativos suficientes e iluminados pela coerência – sob pena de se iniciar uma ação penal iníqua e inócua, carente, pois, de justa causa.”
Dessa forma, na fase de recebimento da denúncia, o juiz deve verificar se há prova da existência do crime e se há indícios suficientes de que o denunciado seja o seu autor.
A existência desse binômio é necessária para que possa haver uma justa probabilidade de que o denunciado será condenado. Sem esse suporte probatório mínimo o juiz não deve receber a denúncia, e, assim, submeter o denunciado a um processo penal inútil.
Se houver dúvidas, é o réu que será favorecido, e não a sociedade
Além de não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua a lógica do sistema processual e o sistema de valoração de provas.
Ora. Se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII, CF), convencionais (art. 8.2, CADH) e legais (art. 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro.
Por isso, advogamos que o in dubio pro societate não é um princípio. Na definição conceitual de princípio existe a difusão da ideia de mandamento nuclear de um sistema (ou microssistema).
O conceito de princípio proposto por Celso Antônio Bandeira de Mello[3] é mais amplo:
“Princípio é por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.”
Assim, em matéria processual penal, a dúvida não pode conduzir a condenação, ao contrário, conduz a absolvição, não sendo, sob esse prisma constitucional a regra do in dubio pro societate, nem tão pouco considerado um mandamento nuclear.
A ideia que exprime lógica e racionalidade a interpretação sistemática do processual penal, a partir da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência é que na dúvida, deve ser aplicado o princípio do in dubio pro reo.
Tal ordem de ideias advém do princípio da presunção de inocência a partir da admissão de suas múltiplas dimensões como destacado Paulo Saint Pastous Caleffi[4]:
- presunção de inocência como norma de tratamento;
- presunção de inocência como norma probatória; e,
- presunção de inocência como norma de juízo – notório que em nenhuma das múltiplas dimensões do princípio da presunção de inocência se encontra a regra do in dubio pro societate.
Portanto, não havendo prova vigorosa e potente sobre a existência da autoria e materialidade imputada, automaticamente haverá dúvida razoável sobre o fato objeto da acusação ou de uma causa justificante ou inculpante, o que atrai o princípio do in dubio pro reo, e não o in dubio pro sociedade.
Mas então, de onde vem o princípio in dubio pro societate?
De forma direta, o in dubio pro societate é mera construção doutrinária que justifica a conveniência com a própria conveniência e, portanto, ganhou força na prática judiciária, sob o argumento justificante da soberania dos veredictos.
Paulo Rangel[5] ensina que o in dubio pro societate não é um princípio, sendo, portanto, regra incompatível com o Estado Democrático de Direito:
“O chamado princípio do in dubio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma condenação, colocando a pessoa no banco dos réus.
(…) O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal.
(…) Se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção.
(…) A desculpa que os jurados são soberanos não pode autorizar uma condenação com base na dúvida.”
É verdade que o in dubio pro societate é frequentemente usado como mecanismo eficiente para encaminhar alguém ao Tribunal do Júri, enquanto no direito penal ambiental sua aplicação vem ganhando força nos últimos anos por causa da politização do direito ambiental.
Contudo, mesmo no Tribunal de Júri, o entendimento que prevalente é de que o arcabouço probatório deve ser consistente no sentido da hipótese acusatória, pois havendo uma equivalência de provas entre defesa e acusação, a decisão de impronúncia é a que deve prevalecer.
Dito de outra forma, em caso de dúvida, prevalece o in dubio pro reo e não o in dubio pro societate, mesmo tratando-se de Tribunal de Júri. E, com mais razão ainda, deve ser no direito penal ambiental.
Embora parte majoritária da doutrina e juízes considerem que não é possível absolver sumariamente o denunciado, a não ser que haja prova cabal, inconcussa e inquestionável de sua inocência, a boa notícia é que a jurisprudência, assim como deve ser, vem sendo atualizada ano a ano, permitindo cada vez um número maior de magistrados e doutrinadores discordarem desse pensamento.
Conclusão
É fato que o “princípio” do in dubio pro societate tornou-se comum a prática de pronunciar o réu mesmo diante da mais completa ausência de provas de sua culpabilidade, pela simples inexistência de prova cabal de sua inocência, mesma lógica que vem sendo utilizada em ações penais por crime ambiental.
O in dubio pro societate, na verdade, não constitui princípio algum, tratando-se de critério que se mostra compatível com regimes de perfil autocrático que absurdamente preconizam o primado da ideia de que todos são culpados até prova em contrário, em absoluta desconformidade com a presunção de inocência.[6]
Agora, a solução para conter os mais diversos excessos e ilegalidades no campo do direito penal ambiental, será necessário aos Tribunais e aos doutrinadores impedir denúncias baseadas exclusivamente nos elementos informativos do inquérito ou em processos administrativos ambientais.
A invocação do in dubio pro societate, como solução jurídica plausível para recebimento da denúncia é algo absolutamente insuficiente quando ausentes elementos probatórios mínimos que demonstrem ser o agente o real autor do fato censurável.
Assim, deve o magistrado optar pela rejeição da denúncia sempre que surgirem dúvidas, afinal, a presunção da legitimidade e veracidade dos atos administrativos se restringe ao campo do direito administrativo, enquanto no direito penal ambiental, a dúvida nunca pode ser um elemento norteador capaz de artificialmente conduzir alguém ao polo passivo de uma ação penal ambiental.
[1] Art. 581. Caberá recurso, no sentido estrito, da decisão, despacho ou sentença: I – que não receber a denúncia ou a queixa; […]
[2] STJ, HC 147105/SP, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, julgado em 23/02/2010, DJe 15/03/2010.
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 817-818.
[4] CALEFFI, Paulo Saint Pastous. Presunção de Inocência e Execução Provisória da Pena no Brasil: análise crítica e impactos da oscilação jurisprudencial. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 24/50.
[5] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 6. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 79.
[6] Voto do Ministro Celso de Mello no ARE n. 1.067.392/AC, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 2/7/2020.