A aquisição ou incorporação de uma empresa por outra gera a extinção da personalidade jurídica da pessoa jurídica incorporada e, consequentemente, à extinção da punibilidade de eventual crime ambiental por ela cometido em razão da vedação de transferência de responsabilidade penal à empresa incorporadora.
Isso porque, a pessoa jurídica que é incorporada a outra deixa de existir (encerramento e baixa da incorporada), situação que se equipara à morte do agente pessoa física.
Assim sendo, os Tribunais e a doutrina tem entendido pela aplicação analógica do artigo 107, inciso I, do Código Penal, que determina a extinção da punibilidade do agente que cometeu o ilício quando este vier a óbito no curso da persecução penal, uma vez que a extinção da pessoa jurídica se equipara a sua morte.
Embora a Lei 9.605/1998 seja omissa quanto à extinção da punibilidade do agente, o art. 79 da mesma lei prevê expressamente que, ausentes normativas específicas, aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal.
Logo, em caso de denúncia ou ação penal movida contra empresa incorporada, cabível a extinção da punibilidade com fundamento no artigo 107, inciso I, do Código Penal em razão da extinção da personalidade jurídica da empresa.
Índice
O que é incorporação
A incorporação é uma operação societária típica, regida tanto no Código Civil como na Lei 6.404/1976, por meio da qual uma sociedade empresária incorporadora assimila integralmente uma ou mais sociedades incorporadas, absorvendo totalmente seus patrimônios.
Ao final da operação, apenas a sociedade incorporadora continuará a existir, na qualidade de sucessora de todas as relações patrimoniais da incorporada, cuja personalidade jurídica é extinta com a incorporação.
É o que se extrai dos arts. 1.116 e 1.118 do Código Civil, bem como do art. 227 da Lei 6.404/1976, abaixo transcritos:
Art. 1.116. Na incorporação, uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma estabelecida para os respectivos tipos”.
Art. 1.118. Aprovados os atos da incorporação, a incorporadora declarará extinta a incorporada, e promoverá a respectiva averbação no registro próprio.
Art. 227. A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações. […]
§ 3º Aprovados pela assembléia-geral da incorporadora o laudo de avaliação e a incorporação, extingue-se a incorporada, competindo à primeira promover o arquivamento e a publicação dos atos da incorporação.
Veja-se que o conceito trazido pela lei é claro. A incorporação – operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra – enseja a extinção da personalidade jurídica da sociedade incorporada, equiparando-se, para efeitos legais, à morte da pessoa física ou natural.
Princípio da intranscendência da pena impede responsabilização de empresa incorporada
O princípio da intranscendência da pena, no processo penal, garante que a responsabilidade criminal recaia sobre o agente autor (ou partícipe) da conduta delitiva, trazendo óbice à transposição punitiva de terceiros estranhos à efetivação da conduta criminosa.
Sob o aspecto da extinção da pessoa jurídica, a empresa incorporada perde a sua capacidade de estar em Juízo como polo passível de punição, o que inviabilizaria o exercício de qualquer pretensão penal dirigida em desfavor daquela, obstando-se a punição da incorporadora em face do princípio da intranscendência da pena.
Se está extinta a pessoa jurídica, há um fim – uma baixa – e, com este fim, pode entender-se que, por analogia, ocorreu a “morte” do denunciado, ocorrendo a extinção da punibilidade nos termos do art. 107, inciso I, do CP.
Nesse sentido o ensinamento doutrinário de Gulherme De Souza Nucci[1]:
“Extinção da pessoa jurídica: se tal situação ocorrer, aplica-se, por analogia, o art. 107, I, do código penal (morte do agente), declarando-se extinta a punibilidade. Entretanto, se houver burla, dando-se por encerrada a atividade de determinada pessoa jurídica, ré em processo criminal, mas criando-se outra, com exatamente os mesmos sócios e finalidades, é possível, em nosso entendimento, manter ação penal.”
Note-se, contudo, que a extinção da punibilidade criminal da pessoa jurídica não alcança a seara cível, vez que a reparação de danos em matéria ambiental é tida propter remem e imprescritível.
Somente as obrigações civis podem ser transferidas na incorporação
No âmbito civil já é pacífico que a obrigação de reparar o dano ambiental é objetiva e propter rem, aliás, editada a Súmula 623, do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual:
“Súmula 623: As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor”.
Por outro lado, no nosso ordenamento jurídico não se cogita de uma responsabilização administrativa e sobretudo criminal porque essa responsabilidade é subjetiva e exclusiva do infrator que praticou o ilícito.
Sendo assim, para efeitos civis, as obrigações assumidas pela incorporada são sucedidas a incorporadora. Porém, essa sucessão é impossível no direito penal, por expressa vedação do princípio da intranscedência das penas insculpido na Constituição Federal:
“Art. 5º […] XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado […]”.
Como bem pontua Cezar Roberto Bitencourt[2], “essa causa é uma decorrência natural do princípio da personalidade da pena, hoje preceito constitucional (art. 5º, XLV, da CF), segundo o qual a pena criminal não pode passar da pessoa do criminoso: mors omnia solvit”.
Responsabilidade penal ambiental é diferente da civil
Repudiando a violação ao princípio intranscendência das penas, para exemplificar, do repertório jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, relembra-se o seguinte julgado (REsp 1251697/PR):
“Em resumo: a aplicação e a execução das penas limitam-se aos transgressores; a reparação ambiental, de cunho civil, a seu turno, pode abranger todos os poluidores, a quem a própria legislação define como “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental” (art. 3º, inc. V, do mesmo diploma normativo).
Note-se que nem seria necessária toda a construção doutrinária e jurisprudencial no sentido de que a obrigação civil de reparar o dano ambiental é do tipo propter rem, porque, na verdade, a própria lei já define como poluidor todo aquele que seja responsável pela degradação ambiental – e aquele que, adquirindo a propriedade, não reverte o dano ambiental, ainda que não causado por ele, já seria um responsável indireto por degradação ambiental (poluidor, pois).
Mas fato é que o uso do vocábulo “transgressores” no caput do art. 14, comparado à utilização da palavra “poluidor” no § 1º do mesmo dispositivo, deixa a entender aquilo que já se podia inferir da vigência do princípio da intranscendência das penas: a responsabilidade civil por dano ambiental é subjetivamente mais abrangente do que as responsabilidades administrativa e penal, não admitindo estas últimas que terceiros respondam a título objetivo por ofensa ambientais praticadas por outrem.”
A conclusão não pode ser outra, senão a extinção da punibilidade da empresa que antes ou durante a ação penal é incorporada e deixa de existir (“morre”), aplicando-se analogicamente o art. 107, I, do Código Penal.
Não se pode querer transcender a pena a qualquer argumento, quando o nosso ordenamento jurídico, de forma inconteste e expressamente impõe sistemática diversa, principalmente quando não se verifica má-fé ou burla na venda e incorporação de pessoa jurídica por outra com fins de afastar a sua responsabilização criminal.
O que diz a doutrina sobre a extinção da pessoa jurídica por incorporação
É entendimento majoritário na doutrina e nos tribunais brasileiros, em casos envolvendo a extinção de pessoa jurídica, a aplicação analógica do artigo 107, inciso I, do Código Penal , que determina a extinção da punibilidade do agente que cometeu o ilício quando este vier a óbito no curso da persecução penal, uma vez que a extinção da pessoa jurídica se equipara a sua morte.
Nesse sentido, pontifica o Juiz de Direito Jorge Cruz de Carvalho[3]:
“O Código Penal Brasileiro, no artigo 107, inciso I, prevê como causa de extinção da punibilidade a “morte do agente”. O efêmero ciclo da vida humana é conhecido por todos. O indivíduo nasce, cresce, envelhece e, finalmente, morre.
Fazendo-se um paralelo com a pessoa jurídica, podemos dizer que esta tem um início e pode vir a ter um fim, que poderá ser predeterminado (no caso de sociedades temporárias) ou não.
Indaga-se, aqui, sobre a possibilidade de aplicação da aludida causa de extinção da punibilidade à pessoa jurídica a que se imputa responsabilidade penal ambiental.
Faz parte dos rudimentos do direito penal o princípio da legalidade estrita, do qual decorre a impossibilidade de se conferir interpretação extensiva a normas que consubstanciam preceito incriminador, sendo, ao contrário, passível a utilização da analogia e da interpretação extensiva em favor do réu, quanto a normas ditas permissivas.
Penso que a questão proposta pode ser solucionada através da singela utilização desses vetustos conceitos do direito penal. É que a regra do artigo 3º da Lei dos Crimes Ambientais, por traçar a imputação penal do ente moral, deve ser compreendida como preceito incriminador, já que define a pessoa jurídica como ente passível de responsabilização penal.
Assim sendo, diante da impossibilidade de se conferir interpretação extensiva à norma aludida, forçoso é concluir que a extinção da pessoa jurídica faz cessar sua responsabilidade penal, embora persista a responsabilidade das pessoas físicas.
Por outro lado, em reforço do raciocínio ora desenvolvido, a norma que versa extinção da punibilidade em caso de morte do agente (artigo107, I, CPB), por ser norma benéfica (favor rei), pode ser objeto de analogia para regular situação não prevista expressamente na sua hipótese.
A extinção da pessoa jurídica, portanto, é situação análoga à morte física do indivíduo, fazendo incidir, por analogia, a regra do Código Penal.”
Nesse sentido, José Rodolfo Bertolino[4] defende que:
“(…) Em se tratando de Direito Penal, deve-se observar o princípio da estrita legalidade, o qual obsta a utilização de analogia jurídica para criação de tipos penais incriminadores e/ou em malefício ao réu/acusado.
Em outras palavras, se não existe dispositivo legal que permita a transferência de responsabilidade penal em casos de operações societárias (o que não existe em nosso ordenamento jurídico), tal hipótese jamais deve ocorrer. (…)
Não se pode olvidar também que, além da garantia constitucional que veda a transferência de responsabilidade, em se tratando de matéria penal, não se permite a incidência de obrigação propter rem, uma vez que, para fins de responsabilização e aplicação de eventual sanção, o elemento subjetivo da conduta ilícita praticada deveria ser demonstrado de maneira clara, e não presumido em razão de uma aquisição societária”.
Para efeitos civis, as obrigações assumidas pela incorporada são sucedidas a incorporadora. Porém, essa sucessão é impossível no direito penal, por expressa vedação da Constituição Federal: “Art. 5º […] LV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado”.
Jurisprudência sobre a extinção da punibilidade de empresa incorporada
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que a incorporação – operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra – enseja a extinção da personalidade jurídica da sociedade incorporada, equiparando-se, para efeitos legais, à morte da pessoa física ou natural.
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE POLUIÇÃO (ART. 54, § 2º, V, DA LEI 9.605/1998). CONDUTA PRATICADA POR SOCIEDADE EMPRESÁRIA POSTERIORMENTE INCORPORADA POR OUTRA. EXTINÇÃO DA INCORPORADA. ART. 1.118 DO CC. PRETENSÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA INCORPORADORA. DESCABIMENTO. PRINCÍPIO DA INTRANSCENDÊNCIA DA PENA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 107, I, DO CP. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE MANTIDA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
- A conduta descrita na denúncia foi supostamente praticada pela sociedade empresária AGRÍCOLA JANDELLE S.A., posteriormente incorporada por SEARA ALIMENTOS LTDA.
- A incorporação gera a extinção da sociedade incorporada, transmitindo-se à incorporadora os direitos e obrigações que cabiam à primeira. Inteligência dos arts. 1.116 e 1.118 do CC, bem como do art. 227 da Lei 6.404/1976.
- A pretensão punitiva estatal não se enquadra no conceito jurídico-dogmático de obrigação patrimonial transmissível, tampouco se confunde com o direito à reparação civil dos danos causados ao meio ambiente. Logo, não há norma que autorize a transferência da responsabilidade penal à incorporadora.
- O princípio da intranscendência da pena, previsto no art. 5º, XLV, da CR/1988, tem aplicação às pessoas jurídicas. Afinal, se o direito penal brasileiro optou por permitir a responsabilização criminal dos entes coletivos, mesmo com suas peculiaridades decorrentes da ausência de um corpo biológico, não pode negar-lhes a aplicação de garantias fundamentais utilizando-se dessas mesmas peculiaridades como argumento.
- Extinta legalmente a pessoa jurídica ré – sem nenhum indício de fraude, como expressamente afirmou o acórdão recorrido -, aplica-se analogicamente o art. 107, I, do CP, com a consequente extinção de sua punibilidade.
- Este julgamento tratou de situação em que a ação penal foi extinta pouco após o recebimento da denúncia, muito antes da prolação da sentença. Ocorrendo fraude na incorporação (ou, mesmo sem fraude, a realização da incorporação como forma de escapar ao cumprimento de uma pena aplicada em sentença definitiva), haverá evidente distinção em face do precedente ora firmado, com a aplicação de consequência jurídica diversa. É possível pensar, em tais casos, na desconsideração ou ineficácia da incorporação em face do Poder Público, a fim de garantir o cumprimento da pena.
- Diversamente, a responsabilidade civil pelos danos causados ao meio ambiente ou a terceiros, bem como os efeitos extrapenais de uma sentença condenatória eventualmente já proferida quando realizada a incorporação, são transmissíveis à incorporadora. 8. Recurso especial desprovido. (REsp n. 1.977.172/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em 24/8/2022, DJe de 20/9/2022)
Esse entendimento está de acordo com o princípio constitucional da pessoalidade da pena, também chamado de intranscendência, previsto no art. 5º, inciso XLV, da Constituição Federal a revelar acertada a extinção da punibilidade da pessoa jurídica quando incorporada ou adquirida por outra, aplicando-se analogicamente o art. 107, inciso I, do Código Penal.
Conclusão: crime ambiental é extinto com a incorporação de empresa
A incorporação é a absorção integral de uma sociedade por outra, com a perda da personalidade jurídica daquela, conforme disciplinado pelo Código Civil e pela Lei 6.404, de 15.12.1976 (Lei das Sociedades por Ações).
São múltiplas as consequências jurídicas derivadas da incorporação, que potencialmente produz efeitos sobre diversos interessados. Especificamente para a pessoa jurídica incorporada, a incorporação marca o fim de sua existência jurídica; fossem as pessoas jurídicas capazes de vida biológica, a incorporação seria uma forma de morte.
A operação não precisa, é claro, extirpar toda a estrutura econômica construída pela incorporada, sendo possível – e, na verdade, o mais comum – que a incorporadora aproveite em alguma medida o aparato criado pela outra sociedade. Já a personalidade jurídica da incorporada, ao revés, é finalizada com a incorporação.
Assim, conforme visto, evidente que a garantia constitucional da instranscedência para fins de responsabilização criminal se aplica à pessoa jurídica, não se admitindo, nesse cenário, estender a responsabilidade penal da pessoa jurídica incorporada, já extinta e que seria a suposta autora da infração penal, à pessoa jurídica incorporadora.
Aliás, seria inadmissível sujeitar a pessoa jurídica incorporadora, totalmente alheia aos fatos em tese delituosos, às penas criminais previstas no art. 21 da Lei 9.605/98 (multa, restritiva de direitos e prestação de serviços à comunidade), principalmente penas severas com grande potencial de impactar negativamente suas atividades.
Portanto, ausente norma penal que disponha de um regramento específico sobre a responsabilidade das pessoas jurídicas incorporadas e, considerando a plena aplicabilidade do princípio da intranscendência da pena às pessoas jurídicas, a incidência analógica do art. 107, I, do CP é a medida que resolve o conflito de maneira mais técnica e impede a responsabilização penal objetiva da recorrida por fatos de terceiros.
[1] Gulherme De Souza Nucci. Leis penais e processuais penais comentadas. 8.ed. Rio de janeiro: Forense, 2014, p. 555/56.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 978.
[3] CARVALHO, Jorge Cruz de. Revista Direito e Liberdade (Mossoró): Aspectos Polêmicos da Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, v. 4, n. 3, p. 211/228, jul/dez 2006, p. 220/221.
[4] BERTOLINO, José Rodolfo. A extinção da punibilidade da pessoa jurídica em razão da morte do agente, publicado na Revista Eletrônica CONJUR, acessado em 18/05/2024: https://www.conjur.com.br/2020-dez-10/bertolino-extincao-punibilidade-pessoa-juridica/.