No processo administrativo instaurado para apurar a prática de infração ambiental, a aplicação de sanção por analogia in malam partem ofende os princípios da legalidade e da tipicidade e torna nulo o auto de infração ambiental, conforme vamos explicar.
Recentemente o Escritório Farenzena & Franco Advocacia Ambiental foi contratado por um empreendedor para atuar em vários processos administrativos instaurados para apurar a prática de infração ambiental consistente na implantação de loteamentos.
As multas ambientais aplicadas ao empreendedor, somando todos os autos de infração ambiental, superam o valor de R$ 5 milhões, calculado com base em unidades fiscais (UFM), indexadora de todos os tributos municipais, tal como valores relativos a juros, multas e penalidades tributárias e administrativas.
O fundamento legal utilizado pela autoridade processante para lavrar os autos de infração e aplicar as penalidades foram normas municipais, as quais apenas dispõe sobre a criação de áreas de proteção ambiental e parcelamento do solo urbano, nada dispondo sobre o parcelamento do solo rural onde inserida tais áreas de proteção.
Ocorre que as normas citadas nos autos de infração ambiental não preveem a aplicação de multa ambiental para a conduta descrita, nem sobre o procedimento de lavratura dos autos de infração e valores das multas municipais.
Além do mais, no texto da lei referente ao parcelamento do solo, em nenhum momento é citada a zona rural, o que leva à conclusão de que o regramento legal não diz respeito ao zoneamento de áreas rurais.
Entretanto não é possível a analogia in malam partem no direito administrativo sancionador, porque tal acarretaria prejuízo ao sujeito acusado de praticar infração ambiental.
Com efeito, o direito administrativo sancionador está adstrito aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários das garantias constitucionais.
Índice
Impossibilidade de aplicar analogia in malam partem no Direito Administrativo Sancionador
Em se tratando de matéria de direito administrativo sancionador, o uso de analogia para impor sanções viola frontalmente o princípio da legalidade, na medida em que a autoridade administrativa, ao se deparar com lacuna legal, exporta de uma determinada lei, tipos e sanções para aplicar em relação a condutas e situações que não possuem prévia, específica e formal previsão legal.
Conforme ensina Rafael Munhoz de Mello[1], as normas administrativas sancionadoras não podem ser interpretadas em analogia em razão de sua natureza punitiva:
[…] não se pode admitir o recurso à analogia na aplicação das normas punitivas. A interpretação das normas que atribuem à Administração Pública competência punitiva deve ser estrita.
É dizer, a sanção administrativa só pode ser imposta se estiver devidamente configurada a exata situação de fato descrita na hipótese de incidência da norma. Não se pode ampliar o alcance dos conceitos utilizados pelo legislador na tipificação de uma conduta como infração administrativa.
Com efeito, o uso de analogia no direito administrativo viola frontalmente o princípio da legalidade, na medida em que a autoridade, ao se deparar com lacuna legal, exporta de uma determinada lei tipos e sanções para aplicar em relação a condutas e situações que não possuem prévia, específica e formal previsão legal.
Ou seja, admitir a aplicação de normas administrativas punitivas acaba por autorizar que a tipificação da conduta estará ao arbítrio subjetivo do administrador público, o que é impensável em termos de segurança jurídica.
Nesse contexto, somente a lei, em sentido formal e material, pode descrever infração e impor penalidades, sendo, portanto, nulas as sanções impostas por analogia pela Administração Pública, sob pena de violação ao princípio da legalidade.
Somente lei em sentido formal e material pode descrever infração e impor sanções
É sabido que o princípio da legalidade a que está sujeita a Administração Pública determina que a sua atuação esteja pautada em lei prévia, ou seja, só pode agir com autorização do legislador, estando proibida de atuar quando a lei nada dispõe.
Essa diretriz é expressão clara do Estado de Direito, pois é o triunfo da lei formal, instrumento manifestador da vontade da maioria, em detrimento da vontade discricionária do soberano.
A atividade punitiva da Administração Pública não está fora do âmbito de aplicação do princípio da legalidade. Novamente, recorre-se à lição de Rafael Munhoz de Mello[2], que muito didaticamente ensina que:
No campo do direito administrativo sancionador, o princípio da legalidade exige que o ilícito administrativo e a respectiva sanção sejam criados por lei formal. Apenas o legislador pode tipificar uma conduta como ilícito administrativo e imputar à sua prática uma sanção administrativa.
Trata-se da aplicação, no direito administrativo, do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege, previsto no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal.
Como se vê, o emprego da analogia ainda ofende o princípio da tipicidade, que está fundado na segurança jurídica. A matriz desse postulado orienta a Administração Pública para que descreva com clareza o comportamento proibido, bem como que a sanção também seja prevista em termos claros.
E mais. Nos ensinamentos do doutrinador Fábio Medina Osório[3]:
Os tipos devem ser claros, suficientemente densos, dotados de um mínimo de previsibilidade quanto ao seu conteúdo. […] A previsibilidade básica das condutas proibidas é uma das finalidades que hão de ser perseguidas pelos tipos sancionadores.
Se tal finalidade não vier a ser atendida, é provável que o intérprete esteja perante uma figura ofensiva à legalidade e à tipicidade, princípios constitucionais imanentes ao devido processo legal punitivo. […] Não se trata de função de importância secundária, porque, ao contrário, ocupa o centro das garantias constitucionais outorgadas aos acusados em geral.
O que diz a jurisprudência sobre aplicação de analogia in malam partem no direito administrativo
O Superior Tribunal de Justiça – STJ possui julgados com a mesma linha de entendimento acima defendida, isto é, de que em se tratando de direito administrativo sancionador, impossível a aplicação de sanções por analogia, senão vejamos:
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CARACTERIZAÇÃO. CARGO OCUPADO SEM REMUNERAÇÃO. BASE DE CÁLCULO PARA FIXAÇÃO DA MULTA. SALÁRIO MÍNIMO. CABIMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. ANALOGIA IN MALAM PARTEM. IMPOSSIBILIDADE.
[…] No mérito, tem-se que o recorrido foi condenado, em sentença, pelo cometimento de ato ímprobo, tendo-lhe sido imputada, dentre outras coisas, a pena de multa com base na última remuneração percebida. Após acolhimento dos embargos de declaração opostos, alterou-se o valor da multa.
Já em grau de apelação, o recorrido esclareceu que permanecia equivocada a sentença, pois o cargo que ocupava é honorífico, ou seja, sem percepção de remuneração. O Tribunal de origem reformou a sentença para estabelecer como base de cálculo da pena de multa, o salário mínimo. É sobre a fixação desta base de cálculo – o salário mínimo – que o Ministério Público Federal, ora recorrente, insurge-se.
No entanto, não há como prosperar as razões expendidas pelo recorrente. De fato, a pena de multa prevista no art. 12, inc. III, da Lei de improbidade não se baseia no salário mínimo. Conforme pode-se depreender de simples leitura, a apuração da multa é feita com base na última remuneração percebida pelo agente ímprobo.
Ocorre que o recorrido já esclareceu, e isto é incontroverso nos autos, que ocupava cargo não remunerado. A pretensão do recorrente é de estabelecer como base da pena de multa o vencimento básico mais elevado dos cargos de nível superior da estrutura remuneratória da Anvisa.
Como se trata de aplicação de penalidades, é se utilizar de um princípio geral de direito, que cuida da vedação da analogia em desfavor do sancionado. No Direito Penal, ramo em que esta norma foi melhor trabalhada, distinguem-se dois subtipos de analogia: a analogia in malan partem e a analogia in bonan partem.
A primeira agrava a pena em pressupostas hipóteses não abrangidas pela lei. Já a segunda utiliza-se de situações semelhantes para solucionar o caso sem agravar a pena.
Ora, diante da lacuna da Lei de Improbidade Administrativa frente ao caso apresentado, pode-se utilizar da analogia para a determinação da base da pena de multa. No entanto, a analogia não pode ser aplicada in malam partem, porque no âmbito do Direito Administrativo sancionador.
O acórdão, de forma coerente com os princípios regentes do direito, estabeleceu como base da pena de multa a menor remuneração do país, o que se coaduna com a função honorífica realizada pelo recorrido.
Neste raciocínio, não há como prosperar a alegação do recorrente segundo a qual deve ser aplicada multa com base no vencimento mais elevado dos cargos de nível superior da estrutura remuneratória de autarquia, pois estar-se-ia operando analogia desabonadora.
Recurso especial não provido. (STJ – REsp: 1216190 RS 2010/0189647-2, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 02/12/2010, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/12/2010).
Vale destacar ainda, julgados no Superior Tribunal de Justiça que corroboram a tese aqui defendida:
- no AgInt no REsp 1.423.452/SP o STJ entendeu que “as normas que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva”;
- no REsp 1123876/DF o STJ estendeu a aplicação do estado de necessidade como excludente de ilicitude (antijuridicidade) do direito penal para o direito administrativo sancionador;
- no REsp 1216190/RS o STJ vedou o uso da aplicação da analogia in malam partem no direito administrativo sancionador;
- no AgInt no AREsp 80.466/SP o STJ decidiu que o direito administrativo sancionador “recolhe do Direito Penal os postulados da taxatividade e da fragmentariedade”.
Logo, em matéria ambiental punitiva não é possível a analogia in malam partem, isto é, empregar a analogia em prejuízo do sujeito acusado da prática de infração ambiental
Sanção administrativa prevista em lei de forma genérica
Nos casos em que a conduta infracional esteja descrita em uma lei, porém, a previsão de penalidade está disposta e outra, de forma genérica e sem se relacionar especificamente com as condutas que pretende punir, também não se pode aplicar eventual penalidade, porque não é possível se presumir a sanção por simples associação de uma de uma lei à outra.
O princípio da legalidade previsto no art.5º, inciso II, da Constituição Federal se aplica à Administração Pública de forma mais rigorosa e especial, pois o administrador público somente poderá fazer o que estiver expressamente previsto em lei, inexistindo, pois, incidência de sua vontade subjetiva.
Nesse sentido, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ, “a sanção prevista em determinado ordenamento é inaplicável a outra hipótese de incidência”:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO POPULAR. ATO DE IMPROBIDADE. APLICAÇÃO DAS SANÇÕES IMPOSTAS PELA LEI N.º 8.429/92. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E TIPICIDADE.
O direito administrativo sancionador está adstrito aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários das garantias constitucionais (Fábio Medina Osório in Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000).
À luz dos referidos cânones, ressalvadas as hipóteses de aplicação subsidiária textual de leis, a sanção prevista em determinado ordenamento é inaplicável a outra hipótese de incidência, por isso que inacumuláveis as sanções da ação popular com as da ação por ato de improbidade administrativa, mercê da distinção entre a legitimidade ad causam para ambas e o procedimento, fato que inviabiliza, inclusive, a cumulação de pedidos. Precedente da Corte: REsp 704570/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Rel. p/ Acórdão Ministro Luiz Fux, DJ 04.06.2007.
A analogia na seara sancionatória encerra integração da lei in malam partem, além de promiscuir a coexistência das leis especiais, com seus respectivos tipos e sanções
Recurso especial desprovido (STJ – REsp: 879360 SP 2006/0186710-2, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Julgamento: 17/06/2008, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/09/2008)
Vale destacar que, para o direito penal não existe analogia de norma penal incriminadora in malam partem. Por outro lado, utiliza-se a analogia apenas para beneficiar o acusado, in bonam partem.
Desta forma, por simetria, não há que se falar em analogia no direito administrativo sancionador, o que impede acrescer condutas proibitivas não previstas expressamente na norma legal.
A diferença entre Direito Penal e Administrativo é em relação a autoridade que impõe a pena
Com efeito, a analogia é técnica intimamente ligada à manutenção da completude do ordenamento jurídico. Ocorre quando o operador, em face de uma situação à qual o direito positivo não imputa qualquer consequência, aplica uma norma criada para situação diversa.
Entretanto, há relação de simetria do direito administrativo sancionador e o direito penal, a qual pode ser vislumbrada nos ensinamentos de Nelson Hungria[4], que esclarece a inexistência de distinção ontológica entre o ilícito administrativo e o ilícito penal:
A ilicitude é uma só, do mesmo modo que um só, na essência, é o dever jurídico. Dizia BENTHAM que as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: todas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas ‘sobre um mesmo plano, sobre um só mapa-mundi’.
Assim, não há como falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal. A separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço.
Conforme acentua BELING a única diferença que pode ser reconhecida entre as duas espécies de ilicitude é de quantidade ou de grau, está na maior ou menor gravidade ou imoralidade de uma em cotejo com a outra.
O ilícito administrativo é um minus em relação ao ilícito penal. Pretender justificar um discrime pela diversidade qualitativa ou essencial entre ambos, será persistir no que KUKULA justamente chama de ‘estéril especulação’, idêntica à demonstração da quadratura do círculo.
O termo sanção, utilizado no seu sentido lato sensu para identificar as consequências jurídicas decorrentes do descumprimento da norma, é eminentemente punitiva, com viés pedagógico e intimidador para inibir a reiteração da conduta ilícita, compondo assim, o ius puniendi do Estado.
Tanto as ações penais como as administrativas estão sujeitas, entre outros, aos princípios da legalidade, da tipicidade e da individualização da pena, de modo que as sanções aplicáveis em âmbito penal e administrativo se diferenciam tão somente aos efeitos, sendo aquela uma condenação criminal e esta uma condenação não-criminal, produzindo, pois, as consequências da perda da primariedade, que, no futuro, podem resultar no agravamento da pena, conforme ensinou o saudoso Ministro Teori Albino Zavaski, em sua obra Processo coletivo, 3ª ed., SP, RT, 2008, p. 115-116:
Ora, é justamente essa identidade substancial das penas que dá suporte à doutrina da unidade da pretensão punitiva (ius puniendi) do Estado, cuja principal consequência ‘é a aplicação de princípios comuns ao direito penal e ao direito administrativo sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais’.
Realmente, não parece lógico, do ponto de vista dos direitos fundamentais e dos postulados da dignidade da pessoa humana, que se invista o acusado das mais amplas garantias até mesmo quando deva responder por infração penal que produz simples pena de multa pecuniária e se lhe neguem garantias semelhantes quando a infração, conquanto administrativa, pode resultar em pena muito mais severa, como a perda de função pública ou a suspensão de direitos políticos.
Por isso, embora não se possa traçar uma absoluta unidade de regime jurídico, não há dúvida de que alguns princípios são comuns a qualquer sistema sancionatório, seja nos ilícitos penais, seja nos administrativos, entre eles o da legalidade, o da tipicidade, o da responsabilidade subjetiva, o do non bis in idem, o da presunção de inocência e o da individualização da pena […].
Logo, as sanções administrativas diferenciam-se das penais tão somente em relação à autoridade que as impõe, não havendo razão para interpretação analógica das normas administrativas in malam partem.
Conclusão
Do que foi visto, fica claro que a imposição de sanções administrativas não pode ficar sujeita ao arbítrio subjetivo da autoridade processante de estender determinadas previsões legais a situações aí não abarcadas.
Quando a Administração Pública aplica penalidade por analogia, está se imiscuindo na esfera de bens e direitos individuais dos administrados sem que haja permissão veiculada em lei formal, estrita e prévia.
Portanto, revela-se insubsistente e totalmente nula eventual sanção administrativa ambiental baseados em analogia in malam partem.
Referências
[1] Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: As sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988, Ed. Malheiros, 2007, p. 149.
[2] Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: As sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988, Ed. Malheiros, 2007, p. 120.
[3] Direito Administrativo Sancionador, Ed. RT, 2011, 4ª ed. rev. e atual, p. 221.
[4] HUNGRIA, Nelson. Ilícito Administrativo e Ilícito Penal. In: Seleção Histórica da RDA (Matérias Doutrinárias Publicadas em Números Antigos de 1 a 150), Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 15, 1945-1995.
2 Comentários. Deixe novo
Boa noite!
Sou um assíduo leitor dos belos e incentivadores trabalhos do senhor Professor Cláudio.
Eu sou Bacharel em Direito, mas, não me despertou interesse em fazer o exame da ordem, pois, em toda a minha vida como contador optei pela área tributária, porém, apenas na esfera administrativa.
Sou de Porto Velho, Rondônia
Gostaria muito de entrar na seara ambiental, a qual tenho possibilidade de conseguir algumas multas ambientais aplicadas pela Sedam através da Policia Ambiental.
Quem sabe, poderíamos juntos fazermos essas defesas administrativas. Lógico, se for de interesse do senhor.
Atenciosamente
Carlos Magno.
Bom dia Carlos Magno! Fico muito honrado por suas palavras, e feliz por saber que nosso conteúdo é relevante para você!!! Podemos fazer uma parceria sim! Eu vou lhe enviar um e-mail, e qualquer dúvida também pode me chamar no WhatsApp Business (48) 3211-8486., Sigo à disposição.