A Desembargadora Federal Ana Carolina Roman, da 12ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região – TRF1, deu provimento ao recurso de apelação imposto pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA para reconhecer a validade do auto de infração ambiental aplicado contra um produtor rural acusado de desmatar 32 hectares de Floresta Amazônica.
Para o IBAMA e a Desembargadora, o simples fato de desmatar Floresta Amazônica configura a infração ambiental do artigo 50 do Decreto 6.514/08, que possui a seguinte redação:
Art. 50. Destruir ou danificar florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, objeto de especial preservação, sem autorização ou licença da autoridade ambiental competente: […]
Todavia, não houve até o momento a edição de norma específica para que a Floresta Amazônica seja considerada como área de proteção especial e consequentemente enquadrar eventual conduta de destruir ou danificar florestas ali localizadas como infração ambiental do artigo 50.
Somente configura a infração ambiental do artigo 50 se a conduta ilícita ocorrer em fauna objeto de especial proteção, ou seja, que possua lei própria de proteção.
Isso fica claro no § 2º do art. 50 do Decreto 6.514/2008, que há uma definição do que seja especial preservação, qual seja, regime jurídico próprio e especial definido em legislação, veja-se:
§ 2º Para os fins dispostos no art. 49 e no caput deste artigo, são consideradas de especial preservação as florestas e demais formas de vegetação nativa que tenham regime jurídico próprio e especial de conservação ou preservação definido pela legislação.
Por diversos vezes já argumentamos em lives, em mídias sociais e outros canais, inclusive aqui no site, que a Floresta Amazônica NÃO é objeto de especial proteção e eventual desmatamento nela ocorrido não configura a infração ambiental do artigo 50 do Decreto 6.514/08.
Entretanto, segundo a Desembargadora Federal, especialista em Direitos Humanos e Mestre em Direito Constitucional, e ex-membro do Ministério Público Federal que tomou posse no TRF-1 em junho de 2023 após ser nomeada pelo atual governo, a Floresta Amazônica seria de especial proteção, o que contraria a jurisprudência do próprio Tribunal e viola o princípio da legalidade.
Índice
Não. A Floresta Amazônica não é de especial proteção
Não se desconhece que a Constituição Federal prevê no § 4º do art. 225 “a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.”
Contudo, a simples leitura do dispositivo percebe-se que a utilização das referidas áreas será submetida à edição de lei específica regulamentadora, ou seja, a utilização da floresta amazônica deve ser regulada por lei, entendendo-se não ser possível infração ambiental (ou qualquer outra) sem norma anterior que a defina.
Com efeito, em nosso ordenamento jurídico há um conjunto de normas que regulamentam o preceito constitucional, a exemplo da Lei 11.428/06 (Lei da Mata Atlântica) e da Lei 12.651/12, que estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, de áreas de preservação permanente (APPs) e da Reserva legal.
Embora haja previsão constitucional, não houve até o momento a edição de qualquer norma específica para discipline a Floresta Amazônica como área de proteção especial – diferente, como visto acima, do bioma Mata Atlântica, das APPs e da Reserva Legal.
Portanto, dentro da Floresta Amazônica, somente são objeto de especial proteção as áreas de preservação permanente – APPs, as de Reserva legal, bem como as Unidades de Conservação criadas na forma da legislação, pois só essas têm regime jurídico próprio e especial.
Considerar a Amazônica como de especial proteção viola a legalidade
Basta uma simples leitura do artigo 50 do Decreto 6.514/08 e do seu § 2º para concluir que nem todo o território abrangido pela Floresta Amazônica é área de proteção especial, por falta de legislação específica.
Entendimento contrário viola o princípio da legalidade consagrado no art. 5º da Constituição Federal, ao determinar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Vale lembrar que a legalidade administrativa se traduz na possibilidade de atuação quando exista lei que determine (atuação vinculada) ou que autorize (atuação discricionária), devendo, portanto, obedecer estritamente à lei ou os termos, condições e limites autorizados na lei.
Isso significa que a punição deve ser imposta dentro dos princípios basilares de nosso ordenamento, primando-se pela legalidade do ato, afastando-se atos eivados de ilegalidade.
Assim sendo, considerar a Floresta Amazônica como de especial proteção viola o princípio da legalidade, de modo que a fundamentação utilizada para embasar a punição e dar provimento ao recurso de apelação do IBAMA é inidônea e equivocada diante da ausência de norma específica.
Fundamentos da Desembargadora para considerar a floresta como de especial proteção
O voto da Desembargadora Federal Ana Carolina Roman, da 12ª Turma do TRF-1, que deu provimento ao recurso de apelação imposto pelo IBAMA para reconhecer a validade do auto de infração ambiental aplicado contra um produtor rural acusado de desmatar 32 hectares de Floresta Amazônica, embora extenso e bastante fundamentado, baseou-se em vários argumentos jurídicos e legislativos que, ao nosso ver, são incapazes de atribuir ao bioma um regime jurídico especial de proteção.
Segundo o voto que deu provimento ao recurso do IBAMA, a Constituição Federal de 1988 atribui à Floresta Amazônica o status de patrimônio nacional, cuja utilização deve assegurar a preservação do meio ambiente, incluindo o uso dos recursos naturais (art. 225 §4º).
Com base nisso, colhe-se da leitura do voto a menção a leis e decretos anteriores à Constituição Federal que enfatizavam a necessidade de preservação da Floresta Amazônica, como o revogado Código Florestal de 1965 (Lei 4.771/65) e o também revogado Decreto 96.944/1988, que estabeleceu o Programa de Defesa do Complexo de Ecossistemas da Amazônia Legal.
Em normas atuais, o voto cita o Código Florestal de 2012 (Lei 12.651/2012) que reforçaria a necessidade de preservação especial das florestas e da vegetação nativa, bem como os Decretos 1.282/1994 e o 6.321/2007 que forneceriam diretrizes específicas para o manejo sustentável e a prevenção do desmatamento na Amazônia.
A Desembargadora também invocou a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei 12.187/2009) que instituiu políticas de prevenção e controle do desmatamento dos biomas, incluindo a Amazônia, para defender o seu regime especial de proteção.
Outros fundamentos da decisão
Além das normas acima referidas também foram mencionados no voto, a fim de justificar um “regime especial de proteção” da Floresta Amazônica para fins de caracterização do artigo 50 do Decreto 6.514/08, os seguintes instrumentos:
- Os compromissos internacionais que o Brasil assumiu, dentre eles o de proteção às florestas, incluindo a Amazônia, em tratados como o Tratado de Cooperação Amazônica e o Acordo Internacional de Madeiras Tropicais;
- As Convenções sobre Diversidade Biológica de 1992 e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima que refletem o compromisso com a preservação ambiental assumido pelo Brasil;
- As iniciativas como o Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil e o Programa Nacional de Florestas que focam na preservação da biodiversidade e no combate ao desmatamento ilegal;
- Os tratados internacionais firmados pelo Brasil que integram a ordem jurídica interna, e reforçariam o regime jurídico especial de proteção ambiental;
- Os enunciados aprovados em eventos jurídicos, como a Primeira Jornada de Direito do Patrimônio Cultural e Natural, que reforçariam a interpretação de que as convenções internacionais sobre patrimônio natural têm aplicabilidade direta no Brasil;
- A interpretação jurídica atual que reconhece que a Floresta Amazônica deve ser considerada área de especial preservação, com base no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado;
- O Supremo Tribunal Federal já manifestou entendimento favorável à proteção e conservação da Floresta Amazônica, mesmo afastando interpretações literais de dispositivos legais.
De acordo com a decisão, o conjunto de legislações já existentes e tratados formam um regime jurídico especial que caracteriza a Floresta Amazônica como área de especial preservação, sendo desnecessário um regime jurídico próprio para tal.
Argumentos que contrariam a decisão da Desembargadora
Nosso objetivo aqui não é incentivar o desmatamento. Muito pelo contrário, corroboramos do entendimento de que a Floresta Amazônica deve sim ser protegida e preservada. Contudo, dentro dos limites da legalidade e da segurança jurídica.
Por isso, como Advogado de defesa e, acima de tudo, legalistas, continuaremos defendendo que que a Floresta Amazônica não é, por si só, “área de especial proteção” e não é qualquer desmatamento nela realizado que configura a infração ambiental do artigo 50 do Decreto 6.514/08.
Primeiramente, porque o artigo 50, § 2º do Decreto 6.514/08 é claro ao dispor que são consideradas de especial preservação as florestas e formas de vegetação nativa que possuem um “regime jurídico próprio e especial de conservação ou preservação definido pela legislação”, ou seja, uma lei específica que a declarasse como tal, e não um emaranhado de normas, acordos e compromissos.
Em segundo lugar não se pode desprezar o princípio da legalidade, basilador de todo o nosso ordenamento, segundo o qual a Administração Pública somente pode fazer o que está previsto na Lei, não lhe sendo autorizado aplicar sanções por analogia ou mera interpretação de normas genéricas.
Com efeito, a aplicação de multas por desmatamento na Floresta Amazônica, com base na sua categorização como “área de especial preservação” sem amparo em lei específica, violaria este princípio fundamental.
Maxima venia, as legislações e normas citadas pela desembargadora no voto em análise são de caráter geral e não estabelecem expressamente a Floresta Amazônica como área de especial proteção, ou seja, são insuficientes para cumprir os requisitos do artigo 50, § 2º do Decreto 6.514/08.
Inclusive, há decisões de outras turmas do TRF-1 que já debruçados sobre a matéria concluíram que a Floresta Amazônica não se configura automaticamente como área de especial preservação para fins da infração administrativa ambiental do artigo 50 do Decreto 6.514/08, lançando argumentos sólidos que somente podem ser derruídos se violado o princípio da legalidade.
A ausência de regulamentação específica que caracterize a Floresta da Amazônia como área de especial proteção não pode servir como fundamento para que se utilizem normas genéricas na tentativa de se atribuir a tal bioma um regime jurídico próprio.
Por fim, vale lembrar que ao Poder Judiciário não lhe é dado o poder de substituir-se ao Poder Legislativo nem interpretar as normas de forma contrária ao desejo do legislador, sob pena de violar o princípio da legalidade e aplicação de sanções com base em interpretações extensivas e analogias, contrariando a segurança jurídica.
Conclusão
Ao nosso ver, embora bastante fundamentada, é equivocada a decisão da Desembargadora Federal do TRF-1 ao reconhecer a validade da incidência art. 50 do Decreto 6.514/08 e reputar válido o auto de infração ambiental, classificando a área desmatada localizada na Floresta Amazônica como de objeto de especial preservação a partir de um emaranhado de normas.
A decisão analisada utiliza-se de legislações, decretos, políticas nacionais e compromissos internacionais que, em conjunto, estabeleceriam um suposto regime jurídico especial para a proteção da Floresta Amazônica.
Ou seja, para a Desembargadora relatora do recurso de apelação do IBAMA que reestabeleceu a validade do auto de infração ambiental, mesmo sem uma lei específica a Floresta Amazônica seria área de especial preservação.
Ora. Não tem cabimento a interpretação lançada no voto de qualquer área da Amazônia seja objeto de especial proteção com base em um emaranhado de normas que apenas mencionam tal bioma.
Por falta de norma que regulamente a Amazônia como sendo de especial proteção, serão protegidos de forma específica só os espaços assim designados em lei, como no caso da Reserva legal, da área de preservação permanente ou unidades de conservação.