EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO…
AUTORA, vem, à presença de Vossa Excelência, por seus advogados, propor AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA INCIDENTE contra ÓRGÃO AMBIENTAL, pelas razões de fato e direito adiante deduzidas.
1. DOS FATOS QUE ENSEJARAM O AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL
A autora é uma empresa do setor de transporte de cargas. Para o exercício dessa atividade, mantém um terminal de armazenagem e transbordo ferroviário, o qual foi atingido por um incêndio, que demandou dias para ser inteiramente controlado.
Uma vez acionados os órgãos competentes, as decisões acerca do sinistro passaram a ser discutidas e tomadas conjuntamente considerando-se as áreas de atuação específicas de cada órgão.
O Corpo de Bombeiros, que coordenou o grupo de trabalho, fazendo uso da autoridade e preparo técnico que tem para a condução das ações de combate a incêndios, executou os procedimentos que entendeu pertinentes para apagar o fogo, contando com o apoio logístico, operacional e financeiro da autora, que providenciou todos os equipamentos e recursos necessários ao gerenciamento do sinistro.
Nesse sentido, a autora de forma diligente e proativa, realizou todas as medidas que lhe foram ordenadas, o que foi reconhecido pelo próprio Corpo de Bombeiros.
Também o órgão ambiental e a Polícia Ambiental determinaram à Autora a adoção de medidas adicionais para se evitarem impactos ao meio ambiente, as quais igualmente foram devidamente executadas. Feito o monitoramento, registrou-se a redução do oxigênio dissolvido nas águas superficiais e o perecimento de peixes.
Por outro lado, seguindo as diretrizes estabelecidas pelo próprio órgão ambiental, priorizou-se a adoção de medidas de salvamento da ictiofauna dos corpos d’água, as quais resultaram no salvamento efetivo de toneladas de peixes que foram soltos em locais determinados pela Agência Ambiental.
Apesar das condutas refletirem absoluta colaboração em atender às demandas das autoridades competentes, bem como a prática de todas as ações que se encontravam a seu alcance para mitigar os potenciais danos ambientais que o incêndio que a vitimou poderia causar, ainda assim foi injustamente autuada administrativamente pelo órgão ambiental, ora Réu.
1.1. O AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL IMPUGNADO E O PROCESSO ADMINISTRATIVO
Diante do ocorrido, foi lavrado o Auto de Infração Ambiental com Imposição de Penalidade de Multa contra a Autora, com fundamento no art. 3º, II, combinado com o art. 4º, I, II e III, ambos do Decreto Federal 6.514/2008, a penalidade de multa no vultoso valor por suposta violação ao art. 61, combinado com o art. 62, I e VIII, do Decreto Federal 6.514/2008.
Por considerar descabida sua penalização na esfera administrativa, a Autora apresentou Defesa Administrativa, a qual, no entanto, não foi acolhida pela Ré.
Não conformada com a decisão proferida, a Autora interpôs Recurso Hierárquico, apresentou proposta de acordo para a conversão da multa em serviços de melhoria e preservação ambiental, como autoriza o art. 139 do Decreto Federal 6.514/2008[1], bem como projeto de construção de um sistema de afastamento e tratamento de esgoto gerado no distrito.
Sem nem mesmo avaliar a proposta de acordo ofertada, a Ré, com base na Informação Técnica e no Parecer, indeferiu o Recurso Hierárquico interposto, mantendo a autuação por seus próprios fundamentos.
Por não se conformar, de maneira alguma, com o entendimento preconizado pelo órgão ambiental, a autora interpôs Recurso Especial dirigido ao Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA).
Após intenso debate no âmbito da Comissão Técnica Processante e de Normatização, foi dado provimento em parte do recurso especial, apenas para reduzir a multa final imposta.
Em virtude desse cenário, não restou alternativa à autora a não ser a propositura da presente demanda, para ver declarada a nulidade do Auto de Infração Ambiental questionado, com o seu consequente cancelamento, tendo em vista que não pode produzir efeitos em virtude dos inúmeros vícios que inquinam a sua validade. É o que será demonstrado a seguir.
2. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS
2.1. VÍCIO DE FORMA: INCONSISTÊNCIA NA ESPECIFICAÇÃO DA DATA E HORA DA SUPOSTA INFRAÇÃO
O agente fiscalizador, ao preencher o Auto de Infração Ambiental, apontou data e hora da infração. Ocorre, porém, que essa foi a data da inspeção realizada nas instalações da autora pelo referido fiscal, o que não permite o exercício do direito à ampla defesa.
Logo, a data e hora da infração apontadas pelo agente fiscalizador não conferem com os elementos que o mesmo agente descreveu como caracterizadores da suposta infração, tornando o Auto de Infração Ambiental incoerente e, portanto, inconsistente.
Como ato administrativo formal que é, a lavratura de um Auto de Infração Ambiental deve observar com rigor a coerência dos dados e informações nele contidos, sob pena de tornar o ato nulo, uma vez que tal vício prejudica o pleno exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório daquele que foi autuado, em afronta direta ao preceito contido no art. 5º, LV, da Constituição Federal, abaixo transcrito:
Art. 5º. LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
Trata-se, portanto, de requisito imprescindível para a prática do ato, cuja inconsistência, verificada na hipótese dos autos, leva à nulidade da autuação.
2.2. VÍCIO DE MOTIVAÇÃO DO AUTO DE INFRAÇÃO: O SEU INDEVIDO EMBASAMENTO NA LEGISLAÇÃO FEDERAL
No exercício da função administrativa e, principalmente, do poder de polícia a ela inerente, a Administração Pública possui o dever legal de motivar adequadamente os atos por ela praticados, isto é, justificar os seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes.
Aliás, a Administração Pública deve atuar em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público e motivação dos atos administrativos.
Hely Lopes MEIRELLES esclarece que “pela motivação o administrador público justifica sua ação administrativa, indicando os fatos (pressupostos de fato) que ensejam o ato e os preceitos jurídicos (pressupostos de direito) que autorizam sua prática.”[2]
É nesse contexto que se observa uma evidente discrepância na fundamentação jurídica do AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL ora combatido, o que enseja a sua mais absoluta nulidade. Vejamos.
O referido AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL foi lavrado pelo órgão ambiental, que é a agência responsável pelo controle, fiscalização, monitoramento e licenciamento de atividades geradoras de poluição, com a preocupação fundamental de preservar e recuperar a qualidade das águas, do ar e do solo. Referida agência, portanto, exerce o poder de polícia administrativa no Estado, devendo, assim, observar a legislação vigente no âmbito de sua competência.
Com efeito, a legislação de regência do controle da poluição e definição de infrações, bem como imposição de sanções pelo seu descumprimento, legitima o exercício do poder de polícia pelas entidades competentes para tanto, dentre as quais, o órgão ambiental.
Nos dizeres de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a “competência particularizante” que lhe foi atribuída pela Constituição Federal de 1988, no art. 24, incisos VI e VII:
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: […] – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;”
Visto isso, importa observar que eventual recurso às normas de cunho federal que regem o tema, em se tratando de competência concorrente, como na hipótese, somente pode se dar em caso de inexistência ou lacuna na norma estadual que rege o mesmo assunto.
Nesse sentido, o entendimento de Nicolao Dino et ali:
Assim, as disposições de caráter geral constantes da Lei 9.605/98 e sua respectiva regulamentação, no que tange às infrações administrativas, serão plena e diretamente aplicáveis no âmbito dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios, em relação aos ilícitos administrativos ambientais que se encartarem em suas respectivas competências, se e enquanto cada um desses entes políticos não houver exercitado sua competência particularizante.[3]
Não é o que ocorre no caso em exame, pois não há que se falar em inexistência de regulamentação própria ou de lacuna. A esse respeito, o Departamento Jurídico do órgão ambiental expressamente reconheceu que “na esfera estadual existem diplomas legais que tratam tanto do processo administrativo quanto da prevenção e do controle da poluição do meio ambiente”.
2.2.1. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL
Em que pese ter assim reconhecido, o órgão ambiental, violando as regras constitucionais de competência, estabelecidas exatamente para garantir ao administrado a segurança jurídica necessária ao conhecimento do arcabouço legal ao qual se vincula, fundamentou a autuação ora combatida no Decreto Federal que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal (Decreto Federal 6.514/2008).
Isso porque, segundo o órgão ambiental, não era possível a aplicação da legislação estadual ao caso, pois a legislação existente não atende às especificidades do caso, havendo, portanto, uma lacuna na legislação estadual sobre o tema tratado.
Com todo o respeito, porém, não é plausível e muito menos aceitável a alegação de que há “lacuna” na legislação ambiental estadual que inviabilize a aplicação de sanções na ocorrência de infrações administrativas ambientais.
Há, sim, na legislação federal, a previsão de uma sanção pecuniária muito mais gravosa. Evidente a discrepância entre os valores, o que revela o necessário cuidado da Administração Pública na adoção de critérios isonômicos para a definição do arcabouço legislativo aplicável.
Visto isso, abaixo demonstraremos, passo a passo, a mais absoluta inexistência de lacuna capaz de autorizar o Estado a simplesmente desconsiderar a sua própria legislação para utilizar aquela aplicável à esfera federativa diversa, com o claro objetivo de aplicar sanção pecuniária mais gravosa.
Dito isso, devemos lembrar que, na visão do próprio órgão ambiental, a autora teria supostamente causado “poluição com a emissão de águas residuárias, provocando a remoção de moradores, e para o corpo de água adjacente, provocando a perda de oxigênio dissolvido das águas superficiais dos rios, com o perecimento de aproximadamente de peixe”.
Ora, Excelência, isso é o mesmo que dizer que a autora supostamente teria violado a proibição de lançamento de poluentes na água, já que poluente é definido como toda e qualquer forma de matéria, com intensidade ou em quantidade inconveniente ao bem estar público, danosos aos materiais e à fauna e prejudiciais à segurança, ao uso e gozo da propriedade e às atividades normais da comunidade.
Portanto, se, por hipótese, fosse admitida como válida a acusação atribuída à autora, o que se admite apenas para argumentar, o caso concreto se subsume perfeitamente nos dispositivos legais acima transcritos, já que o escoamento decorrente do combate ao incêndio que atingiu as instalações fez com que, temporariamente, alguns poucos moradores das adjacências tivessem que sair de suas casas, assim como teria contribuído para a redução do oxigênio dissolvido dos corpos d’água atingidos, o que teria provocado prejuízos à ictiofauna.
2.2.2. LEGISLAÇÃO ESTADUAL
Assim, não há qualquer lacuna na legislação estadual, não sendo dado, pois, o órgão ambiental, no caso, recorrer à legislação federal para o efetivo exercício do seu poder de polícia.
Ora, a legislação estadual ambiental é tão específica quanto à legislação federal no que toca à penalização de infrações ambientais decorrentes de episódios de poluição e, portanto, deve perfeitamente ser aplicada no presente caso, até mesmo para legitimar o exercício do poder de polícia do órgão ambiental.
Repita-se: não pode a administração pública estadual ignorar – pura e simplesmente – as leis que regem sua atuação no Estado, fundamentando-se em diplomas alheios à sua esfera de competência, sob pena de grave violação às regras de competência estabelecidas na Constituição Federal de 1988.
E mais: não é dado ao órgão ambiental o poder de optar pela legislação aplicável no exercício do seu poder de polícia, de forma arbitrária e descompassada, como vem ocorrendo frequentemente no Estado.
Ainda, o órgão ambiental, mantendo sua conduta arbitrária, continuou aplicando multas com base na legislação estadual em casos absolutamente parecidos, isto é, que envolveram incêndios com lançamento de efluentes líquidos decorrentes do combate, como demonstra o Auto de Infração Ambiental.
Tal postura revela, de forma evidente, que o caso da autora não se tratou de uma mudança de paradigma na atuação do órgão ambiental, mas, ao contrário, demonstra que houve nítida intenção de penalizar a empresa de forma desigual, desproporcional e desarrazoada, sem qualquer motivação/justificativa fática ou jurídica para tanto.
Ora, o simples cotejo da descrição das infrações imputadas à autora, deixa clara e indene de dúvida a inexistência de critérios objetivos para o exercício do poder de polícia por parte da Ré no âmbito do Estado, assim como o uso de “dois pesos e duas medidas” para impor sanções em hipóteses semelhantes de forma arbitrária e injustificada, em evidente violação aos princípios da igualdade/isonomia dos administrados em face da Administração e da segurança jurídica.
Tal comportamento fere ainda a Constituição do Estado, que é clara ao estabelecer que nos procedimentos administrativos, qualquer que seja o objeto, observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados e o devido processo legal, especialmente quanto à exigência da publicidade, do contraditório, da ampla defesa e do despacho ou decisão motivados.
Decorre da necessária observância do princípio da igualdade/isonomia a regra de que a Administração “não pode desenvolver qualquer espécie de favoritismo ou desvalia em proveito ou detrimento de alguém. Há de agir com obediência ao princípio da impessoalidade”[4]
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2.2.3. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
E mais, “Não sendo o interesse público algo sobre que a Administração dispõe a seu talante, mas, pelo contrário, bem de todos e de cada um, já assim consagrado pelos mandamentos legais que o erigiram à categoria de interesse desta classe, impõe-se, como consequência, o tratamento impessoal, igualitário e isonômico que deve o Poder Público dispensar a todos os administrados”.
Já o princípio da segurança jurídica, no contexto ora em estudo, demanda o efetivo conhecimento pelo administrado da ordem jurídica que rege a vida em sociedade e, desta forma, molda os comportamentos perante a Administração.
“Ora bem, é sabido e ressabido que a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou não podem fazer, tendo em vista as ulteriores consequências imputáveis a seus atos.”
Sobre o tema em exame, vale lançar mão dos lúcidos argumentos deduzidos pelo Prof. Paulo de Bessa Antunes, em artigo publicado no site Conjur, abaixo transcritos:
O fato é que, quando ocorrem incidentes de poluição industrial, sem qualquer base legal, o órgão ambiental tem aplicado a Lei Federal 9.605/1998 e o seu regulamento administrativo estabelecido pelo Decreto Federal 6.514/2008.
Alega o órgão ambiental que a lei estadual está defasada no tempo e que a lei federal é mais condizente com a realidade atual. Entretanto, vale o registro de que a infração administrativa de poluição no decreto federal é punida com multa variável..
Curiosamente, em atividades de menor impacto ambiental e de menor capacidade econômica do “agente infrator”, o órgão ambiental permanece fiel à lei paulista. Não se quer insinuar que a escolha da aplicação das normas federais para os “grandes” tenha qualquer relação com o valor das multas federais comparadas às estaduais.