É comum que o Ministério Público ofereça denúncia contra o agente que constrói em local proibido sob alegação de ter ocorrido a destruição ou danos em floresta considerada de preservação permanente, e que a construção e manutenção da edificação impediria ou dificultaria a regeneração natural de vegetação, crimes ambientais esses previstos no art. 38 e art. 48 da Lei 9.605/98.
Além desses dois tipos penais, o Ministério Público comumente também entende cabível em casos tais, a aplicação do crime ambiental previsto no art. 64 da Lei 9.605/98, sob a alegação de que o agente construiu em solo não edificável, o que se mostra correto, se a finalidade da ação promovida pelo infrator for exclusivamente a construção da residência no local.
Os referidos crimes ambientais estão assim redigidos:
Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:
Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade.
Art. 48. Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação:
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Art. 64. Promover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida.
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Neste tipo de caso, a construção em solo não edificável (ou seja, em área de preservação permanente), sem autorização da autoridade competente, ainda que tenha ocorrido a destruição ou danos em vegetação, adiante-se, somente se amolda ao crime ambiental previsto no art. 64 da Lei 9.605/98, por força do princípio da consunção.
Desse modo, os crimes ambientais previstos nos artigos 38 e 48 da Lei 9.605/98 são absorvidos pelo crime ambiental do art. 64 da Lei 9.605/98, por estarem integrados no iter criminis desse último, não se constituindo em condutas autônomas.
A propósito, preconiza o Superior Tribunal de Justiça – STJ[1] que “se reconhece o princípio da consunção quando uma norma penal incriminadora constitui meio necessário ou uma normal fase de preparação ou de execução de outro crime, caracterizando-se entre as condutas a dependência ou subordinação, ainda que os crimes em voga envolvam a tutela de bens jurídicos diversos e a infração mais grave seja absorvida pela de menor gravidade”.
Índice
O que diz a doutrina sobre o princípio da consunção
É certo que o critério do crime instrumental ou crime meio não é um critério absoluto e suficiente para resolver esses casos de construção em local proibido quando há destruição ou danos em vegetação e suposto impedimento de regeneração.
Contudo, não se pode olvidar, conforme ensina Jorge de Figueiredo Dias[2], que “a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos de ilícitos autonomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio”.
Ocorre que a consunção, prossegue o penalista[3] português:
“Não acarreta um problema lógico de relacionamento de normas, mas um problema axiológico e teleológico de relacionamento de sentidos e de conteúdos do ilícito. Nesta medida, e em segundo lugar, os casos de consumpção constituem hipóteses de pluralidade de normas concretamente aplicáveis e suscitam, por isso, um problema de concurso de crimes.
Só que, na verdade, a questão que esta categoria suscita é bem fundada – mesmo quando ela é assumida no seu sentido mais amplo – na parte em que chama a atenção para os casos da vida em que os sentidos e os conteúdos singulares dos ilícitos se interceptam e se cobrem mutuamente, de tal modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição da dupla valoração.”
Figueiredo Dias[4], ao criticar parte da doutrina que deposita na unidade ou pluralidade de bens jurídicos violados o critério decisivo da unidade ou pluralidade de crimes, reconhece que “situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou subjetiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, e hoc sensu autónomo”. E prossegue:
“A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos ponto de vistas: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade do desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente, espácio-temporal; intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global.
Não se trata aqui de critérios que permitam uma compartimentação estanque e rigorosa das hipóteses – dos casos da vida – que dão conteúdo e justificação à inteira categoria do concurso aparente; sobretudo porque eles já por si mesmos se interpenetram ou parcialmente coincidem, enquanto por outro lado, no mesmo caso podem convergir mais que um dos critérios sugeridos ou, pelo contrário, podem eles dever ser complementados ou, inversamente, limitados por outros pontos de vista relevantes para a caracterização do sentido social do ilícito global”.
Na hipótese, se a destruição ou danificação da vegetação nativa foi apenas etapa inicial à concretização da conduta pretendida, ocorre a absorção do crime-meio do art. 38 da Lei 9.605/98 pelo crime-fim de edificação proibida.
Por outro lado, o impedimento da regeneração natural da vegetação configura mero exaurimento, na medida em que se trata do consequente e natural aproveitamento da própria construção, razão pela qual o crime do art. 48 da Lei 9.605/98 constitui pós-fato impunível do crime-fim de edificação proibida.
O que diz a jurisprudência
Quando se fala em crime ambiental de construção em local proibido em que o Ministério Público acusa o agente dos tipos penais dos artigos 38, 48 e 64, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido pela aplicação do princípio da consunção:
PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME AMBIENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. ARTS. 48 E 64 DA LEI N. 9.605/98. CONSUNÇÃO. ABSORVIDO O CRIME MEIO DE DESTRUIR FLORESTA E O PÓS-FATO IMPUNÍVEL DE IMPEDIR SUA REGENERAÇÃO. CRIME ÚNICO DE CONSTRUIR EM LOCAL NÃO EDIFICÁVEL. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. Ocorre o conflito aparente de normas quando há a incidência de mais de uma norma repressiva numa única conduta delituosa, sendo que tais normas possuem entre si relação de hierarquia ou dependência, de forma que somente uma é aplicável. 2. O crime de destruir floresta nativa e vegetação protetora de mangues dá-se como meio necessário da realização do único intento de construir casa ou outra edificação em solo não edificável, em razão do que incide a absorção do crime-meio de destruição de vegetação pelo crime-fim de edificação proibida. 3. Dá-se tipo penal único de incidência final (art. 64 da Lei n. 9.605/98), já em tese crime uno, diferenciando-se do concurso formal, onde o crime em tese é duplo, mas ocasionalmente praticado por ação e desígnio únicos. 4. Recurso especial improvido. (REsp 1639723/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 07/02/2017, DJe 16/02/2017) (grifei)
No julgamento do Recurso Especial referido, o relator Ministro Nefi Cordeiro destacou que:
“diversamente do posicionamento fixado em alguns precedentes do STJ (AgRg no REsp 1.214.052-SC, Sexta Turma, DJe 12/3/2013 e REsp 1.125.374-SC, Quinta Turma, DJe 17/8/2011), a Sexta Turma passa a adotar nova orientação, no sentido de que a suposta destruição da vegetação nativa é mera etapa inicial do único crime pretendido e realizado de construir em local não edificável (área de preservação permanente). Com efeito o crime de destruir floresta nativa dá-se como meio da realização do único intento de construir em local não edificável, em razão do que incide a absorção do crime-meio de destruição de vegetação pelo crime-fim de edificação proibida. Na mesma linha, o delito de impedir a regeneração natural da flora dá-se como mero gozo da construção, em evidente pós-fato impunível. Aquele que constrói uma edificação, claramente não poderá permitir que dentro daquela venha a nascer uma floresta. É mero exaurimento do crime de construção indevida, pelo aproveitamento natural da coisa construída. Saliente-se que o conflito aparente de normas ocorre quando há a incidência de mais de uma norma repressiva numa única conduta delituosa, sendo que tais normas possuem entre si relação de hierarquia ou dependência, de forma que somente uma é aplicável. Na hipótese, não há ação autônoma de destruir floresta ou de impedir sua regeneração, mas tão somente o ato de construir em local proibido, que tem na destruição condição necessária para a obra e no impedimento à regeneração mero gozo da edificação. Outra diferenciação importante dá-se entre o conflito aparente de normas, em que o crime já é em tese uno, e o concurso formal, onde o crime em tese é duplo, mas ocasionalmente praticado por ação e desígnio únicos. Aquele que constrói casa ou outra edificação em local onde havia floresta ou mangue jamais praticará crime dúplice (caso de concurso aparente de normas), diferentemente daquele que acerta seu inimigo com um tiro de fuzil e vê o projétil transpassar atingindo outra pessoa, pois neste caso houve o crime duplo que ocasionalmente, por ficção legal decorrente do único intento, é tratado como um crime só (com pena do crime mais grave, majorada). Na construção em local de floresta não há dois crimes com único intento (hipótese de concurso formal), mas apenas um crime praticado. Tampouco é caso de concurso material, pois então os crimes precisariam ser autônomos – com que não se concorda, pelo conflito aparente de normas – e com desígnios independentes (excluindo também o concurso formal perfeito). Dessa forma, descartada a possibilidade da configuração do concurso material entre os delitos tipificados nos artigos 48 e 64 da Lei n. 9.605/1998, correta é a desclassificação para o único crime do art. 64 da lei ambiental.” (grifei)
Jurisprudência dos Tribunais Regionais
Seguindo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ, uniformizador da jurisprudência, o TRF-4 é assente pela absorção das condutas dos artigos 38 e 48 pelo crime ambiental do art. 64 da Lei 9.605/98:
PROCESSO PENAL. PENAL. CRIME AMBIENTAL. ARTS. 38, 48 E 64 DA LEI N. 9.605/98. CONCURSO APARENTE DE NORMAS. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. 1. Ocorre o conflito aparente de normas quando há a incidência de mais de uma norma repressiva em relação a uma única conduta delituosa. 2. O crime de impedir a regeneração de floresta se dá como mero gozo da construção em solo não edificável, incidindo a absorção do crime-meio pelo crime-fim de edificação proibida. O crime de destruir floresta considerada de preservação permanente dá-se como meio necessário da realização do único intento de construir casa em solo não edificável, em razão do que incide a absorção do crime-meio de destruição de vegetação pelo crime-fim de edificação proibida. Precedentes. 3. Remanescendo a imputação tão somente em face do crime do art. 64 da Lei de Crimes Ambientais, que prevê pena mínima de 06 (seis) meses de detenção, tal contexto, em tese, pode ensejar o oferecimento da suspensão condicional do processo ao réu, a depender do preenchimento dos demais requisitos legais, a serem avaliados por parte do Ministério Público Federal. (TRF4, ACR 5009773-41.2015.4.04.7200, SÉTIMA TURMA, Relatora CLÁUDIA CRISTINA CRISTOFANI, juntado aos autos em 07/02/2018)
PENAL. ARTS. 38, 48 E 64 DA LEI Nº 9.605/98. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA NÃO IMPLEMENTADA. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. INCIDÊNCIA. DOLO NÃO CONFIGURADO. ABSOLVIÇÃO. NULIDADE NÃO RECONHECIDA, DIANTE DA SOLUÇÃO CONFERIDA AO FEITO. 1. Prescrição da pretensão punitiva com base na pena concretizada não implementada, visto que não decorrido o prazo de 3 anos entre os marcos interruptivos. 2. Cabível a aplicação do princípio da consunção nas hipóteses em que a conduta de destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente consistir em meio necessário à construção em solo não edificável ou no seu entorno, tipificada no art. 64 da Lei nº 9.605/98, delito que absorve, ainda, aquele previsto no art. 48 da Lei nº 9.605/98, que configura pós-fato impunível. 3. Tratando-se de área com anterior ocupação humana, contando com construções mais antigas e fornecimento de serviços públicos básicos, viável o reconhecimento de que o agente não agiu com consciência e vontade de praticar o delito tipificado no art. 64 da Lei nº 9.605/98. 4. Tendo em conta a solução conferida ao feito, não se reconhece eventual nulidade em função da ausência de oportunização do contraditório quando da apreciação dos embargos declaratórios opostos pela acusação na primeira instância. Aplicação do art. 282, §2º, do novo Código de Processo Civil e do art. 563 do Código de Processo Penal. 5. Concessão de ordem de habeas corpus, de ofício, para reconhecer a absorção do delito tipificado no art. 48 pelo crime previsto no art. 64 da Lei nº 9.605/98. Apelação do MPF desprovida. Apelação defensiva provida. Absolvição com base no art. 386, III, do CPP. (TRF4, ACR 5001016-92.2014.4.04.7200, OITAVA TURMA, Relator JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, juntado aos autos em 27/03/2017)
PENAL. EDIFICAÇÃO EM LOCAL PROIBIDO E IMPEDIMENTO DA REGENERAÇÃO NATURAL DA VEGETAÇÃO. ARTIGOS 48 E 64 DA LEI DE CRIMES AMBIENTAIS. CONFLITO APARENTE. ALEGAÇÃO DA PRÁTICA DE DOIS CRIMES. IMPROCEDÊNCIA. IMPEDIMENTO DA REGENERAÇÃO COMO MERO EXAURIMENTO DO ATO DE EDIFICAR. AUSÊNCIA DE AUTONOMIA DA CONDUTA.PERMANÊNCIA DO DELITO DO ART. 48. IMPROCEDÊNCIA.CIRCUNSTÂNCIAS DE COMETIMENTO QUE IMPOSSIBILITAM A CONSIDERAÇÃO DA PERMANÊNCIA. TEMPO DO CRIME. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL À ÉPOCA DOS FATOS. PRESCRIÇÃO. 1. Correta a desclassificação da conduta imputada como infratora ao art. 48 para o art. 64 da lei de crimes ambientais. Mesmo que a denúncia tivesse imputado ao acusado ambos os tipos, seria imperiosa a aplicação do princípio da consunção, por ser o impedimento da regeneração da vegetação condição inafastável do cometimento do delito da edificação irregular, não havendo condutas distintas e autônomas, o que caracteriza o crime único. 2. Não é possível, afastado o art. 64 em razão da ausência de previsão legal à época dos fatos, promover a persecução de forma isolada em relação ao delito do art. 48,por não ser possível distinguir a conduta em dois crimes autônomos. 3. Mesmo que se considerasse viável a persecução em relação ao art. 48, por haver contravenção penal correspondente a este no antigo código florestal, tal contravenção já estaria prescrita, uma vez que, diante das circunstâncias do caso concreto, não se pode considerar o fato como crime permanente. 4. Apelação criminal desprovida. (TRF4, ACR 2005.72.00.001701-6, OITAVA TURMA,Relator JOÃO PEDRO GEBRAN NETO, D.E. 22/05/2014) (grifei)
Assim, correta a tipificação legal das condutas relacionadas a construção apenas no crime ambiental previsto no art. 64 da Lei 9.605/98, o qual absorve os tipos penais do art. 38 e 48.
[1] STJ, AgRg no REsp n. 1.395.672/MG, Relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 15/3/2018, DJe 27/3/2018.
[2] Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 1011,
[3] Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 1001-1002,
[4] Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 1015-1016.
1 Comentário. Deixe novo
Muito bom o artigo e pertinente o tema.