EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE
Autora, por seus advogados, vem, respeitosamente, com fundamento nos arts. 319 e seguintes do Código de Processo Civil, ajuizar AÇÃO ANULATÓRIA DE AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL contra a Instituto do Meio Ambiente – IMA, pelas razões de fato e de direito a seguir expostas.
1. OS FATOS
A autora foi autuada por suposto dano ambiental relacionado ao aterramento inadequado de rejeitos industriais em seu estabelecimento.
A autuação lavrada pela IMA aplicou sanção de multa no valor estratosférico, sob o pretexto de suposta falha na inertização dos resíduos oriundos de unidades industrial e florestal.
Contudo, trata-se de auto de infração ambiental que padece de vício, razão pela qual deve ser declarado nulo, conforme passa a demonstrar.
2. A INSUBSISTÊNCIA DO AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL
O objeto principal desta demanda é ver reconhecidas a prescrição da ação punitiva e a prescrição intercorrente, mais que suficientes à anulação do AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL.
Todavia, como a IMA simplesmente se recusa a apreciar e julgar as defesas administrativas apresentadas pela empresa, pede-se vênia para submeter ao controle jurisdicional também as razões de fato e de direito articuladas pela empresa em suas defesas administrativas, e que conduzem à desconstituição dos autos de infração face aos vícios que os inquinam. É o que se passa a demonstrar:
2.1. ERRO FORMAL: AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DA HORA, DIA, MÊS E ANO DA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA
Na inteligência do art. 91 do Decreto Estadual 14.250/81[1] e do art. 13 do Decreto Estadual 2.954/2010[2], é requisito indispensável para a validade dos autos de infração ambiental a exata indicação do local, dia e hora da constatação da infração pelo órgão administrativo competente.
Da análise do AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL, constata-se que tal formalidade não foi observada pela IMA. Isto porque não se vislumbra qualquer informação a respeito do local, data ou hora de sua lavratura.
O descumprimento destes dispositivos normativos, além de ferir o direito à ampla defesa garantido à autora pela Constituição Federal, constitui motivo de nulidade das autuações lavradas pela IMA. A esse respeito, afirma MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO:
“O ato é ilegal, por vício de forma, quando a lei expressamente a exige ou quando determinada finalidade só possa ser alcançada por determinada forma.” (13ª ed., Ed. Atlas S/A, 2001).
Pelo desatendimento a requisito formal expressamente previsto no Decreto Estadual 14.250/81 e no Decreto Estadual 2.954/2010, falta às autuações pressuposto elementar de validade, razão pela qual devem ser anuladas por este MM. Juízo.
2.2. VÍCIO DO PROCESSO SANCIONADOR: AUSÊNCIA DE PRÉVIA IMPOSIÇÃO DE PENA DE ADVERTÊNCIA
A imposição de sanções administrativas, a exemplo do que se verifica quanto às sanções penais, tem caráter penalizador. A aplicação de sanções penalizatórias, no entanto, só se justifica, na esfera administrativa, diante de resistência expressa do administrado ao cumprimento de determinada imposição de caráter obrigacional por parte da Administração Pública.
A penalidade de multa simples somente pode ser aplicada se o infrator deixar de adotar as medidas necessárias à cessação da irregularidade que lhe é atribuída ou se opuser embaraço à atuação do órgão de fiscalização ambiental. É o que determina o art. 72, parágrafo terceiro, incisos I e II, da Lei Federal 9.605/98:
“Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º: (…)
§3º A multa simples será aplicada sempre que o agente, por negligência ou dolo:
- – advertido por irregularidades que tenham sido praticadas, deixar de saná- las, no prazo assinalado por órgão competente do SISNAMA ou pela Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha;
- – opuser embaraço à fiscalização dos órgãos do SISNAMA ou da Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha.”
Logo, vê-se claramente que a aplicação da sanção de multa depende da observação dos seguintes requisitos: conduta negligente ou dolosa do agente e prévia aplicação da sanção de advertência, por determinação expressa do art. 72, § 3º, da Lei Federal 9.605/98. Nesse sentido, confira-se o entendimento de SIDNEY BITTENCOURT[3]:
“Pune-se com multa simples quando o agente, por pura negligência, ou seja, desatenção, falta de cuidado, omissão ou por dolo: após advertido por alguma irregularidade praticada, deixar de saná-la, no prazo assinalado; causar embaraço à fiscalização oficial.”
Os arts. 94 e 95 do Decreto Estadual 14.250/81 também determinam a aplicação da pena de advertência aos infratores primários, de sorte que a pena de multa apenas deverá ser aplicada quando não forem atendidas as exigências constantes da pena de advertência:
“Art. 94. A pena de advertência será aplicada aos infratores primários, para a regularização da situação, quando não haja perigo iminente à saúde pública, em infração classificada como leve ou grave, sem agravantes. Parágrafo único – Considera-se primário aquele que pratica a infração pela primeira vez.”
“Art. 95. A pena de multa será aplicada quando: I – não forem atendidas as exigências constantes da pena de advertência; II – nos casos das infrações de que trata os itens I, II e III, do § 2º., deste artigo, não for efetuada a regularização dentro do prazo fixado; e a infração não for continuada.”
Isso se dá porque a sanção pecuniária administrativa não tem por objetivo punir a ocorrência da irregularidade, mas penalizar a conduta do administrado, subjetivamente considerado, que, diante da irregularidade, deixa de buscar, por dolo ou culpa, a correção de sua conduta.
Adotada postura de correção de irregularidade, pelo administrado, nada resta a fazer na esfera administrativa, cabendo à esfera civil, e lá sim, com aplicação do conceito de responsabilidade objetiva, a recomposição ou ressarcimento de eventuais danos ambientais decorrentes dessa irregularidade. A multa simples tem por fundamento, portanto, a recusa em sanar uma conduta irregular atribuída ao agente.
O texto legal não deixa margem a interpretações. Para que fosse imposta a penalidade de multa, a autora deveria ter sido antes punida com penalidade de advertência, pela qual se lhe impusesse a adoção de medidas necessárias à adequação de sua conduta. Somente na hipótese de deixar de atender a tal determinação, no prazo estipulado, por dolo ou negligência, é que estaria estabelecida a hipótese legal ensejadora da imposição de multa.
No presente caso, além de não haver praticado qualquer infração administrativa, a autora não foi formalmente advertida de qualquer suposta irregularidade nem impôs embaraço algum à fiscalização de quem quer que seja.
As regras procedimentais informam os limites e disciplinam a conduta da Administração Pública, caracterizando ofensa grave o desrespeito a tais parâmetros, da qual decorre a nulidade ou irregularidade do ato administrativo respectivo. Ao tratar das regras procedimentais e do formalismo que limitam e disciplinam a conduta do administrador, LUCÉIA MARTINS SOARES esclarece que “buscou-se conter ao máximo o exercício desarrazoado do poder, exigindo-se expressamente (…) o máximo de transparência na produção do ato”[4].
Porquanto violadores do art. 72, § 3º, incisos I e II da Lei Federal 9.605/98 e dos arts. 94 e 95 do Decreto Estadual 14.250/81, o AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL padecem de vício insanável, razão pela qual merecem ser desconstituídos.
2.3. ERRO MATERIAL: AUSÊNCIA DE NEXO CAUSAL OU DE CONDUTA ILÍCITA OU IRREGULAR ATRIBUÍVEL À AUTORA
Ao lavrar o AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL, o IMA desconsiderou elementos básicos de Direito, tais como a necessidade de comprovação do nexo de causalidade entre uma conduta ilícita ou irregular do agente e a suposta infração ambiental, imprescindível à imputação de qualquer infração administrativa à autora, a teor do art. 3º, inciso IV, da Lei Federal 6.938, de 31.8.1981, que assim dispõe:
“Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: (…) poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.”
Daí porque é imprescindível separar as atividades desenvolvidas pela empresa das atividades desenvolvidas pela autora. Conforme já demonstrado, não houve qualquer irregularidade na gestão dos resíduos enquanto estavam sob a custódia, empresa licenciada e que obteve todas as licenças e autorizações para remeter resíduos à autora à época licenciada pela IMA para o exercício de suas atividades.
O Laudo Pericial elaborado nos autos da ação civil pública expressamente invocado nas autuações, é conclusivo no sentido de que a autora é a responsável pelo aterramento de resíduos no solo. Nesse contexto, inexistente o nexo de causalidade. Não há que se atribuir à autora a infração administrativa descrita no AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL.
E nem poderia ser diferente. A partir do momento em que a autora entregava seus resíduos à terceirizada deixava de ter qualquer ingerência sobre o destino que tal produto teria dali em diante. Dessa forma, a ausência de ingerência sobre as atividades desenvolvidas pela autora – que, repita-se, eram licenciadas e fiscalizadas pela IMA – exclui o liame de causalidade entre a conduta e a suposta infração ambiental descrita nas autuações, não se vislumbrando sequer uma relação indireta de causalidade entre a conduta e a suposta degradação ambiental verificada pelo IMA.
Ausente tal relação, falta à autuação lavrada pelo IMA pressuposto elementar de validade do ato administrativo. Daí porque ÉDIS MILARÉ reconhece a impossibilidade de se imputar responsabilidade administrativa a quem não concorreu para a conduta passível de punição, admitindo-se o fato de terceiro como excludente da responsabilidade na esfera administrativa:
“A responsabilidade administrativa pode ser afastada, regra geral, quando se configurar uma hipótese de força maior, caso fortuito ou fato de terceiro[5].”
Aliás, o art. 2º do Decreto Federal 6.514/2008, expressamente invocado por ocasião da lavratura do AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL, define infração administrativa ambiental como “toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”. Ou seja, somente poderá se cogitar de infração administrativa ambiental se houver uma conduta (comissiva ou omissiva) ilícita ou irregular imputável ao infrator.
Ocorre que no presente caso não há conduta ilícita ou irregular imputável à empresa que, nunca é demais repetir, destinou resíduos à então licenciada, com prévia e expressa autorização do Órgão ambiental competente. E, ao contrário do que o Gerente de Fiscalização da IMA erroneamente supôs ao lavrar a autuação, os laudos periciais e os pareceres técnicos juntados aos autos da ação civil pública não trazem sequer indícios de nexo causal entre qualquer conduta – lícita e menos ainda ilícita – praticada especificamente pela empresa e a suposta irregularidade descrita no AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL.
Em conclusão, a ausência de nexo causal e de conduta ilícita ou irregular atribuível à empresa implica a nulidade das autuações aqui discutidas, sob pena de grave afronta ao art. 3º, inciso IV, da Lei Federal 6.938/1981 e ao art. 2º do Decreto Federal 6.514/2008.
2.4. ERRO MATERIAL: INEXISTÊNCIA DE SOLIDARIEDADE
Não havendo nexo causal e nem conduta irregular atribuível à empresa, ao lavrar o AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL, a IMA aparentemente entendeu que a empresa, pelo simples fato de haver gerado parte dos resíduos destinados à terceira, poderia ser solidariamente responsabilizada pela suposta infração descrita nas autuações.
Todavia, é regra elementar em nosso ordenamento jurídico que a solidariedade não pode ser presumida, mas apenas decorre da Lei ou da vontade das partes (art. 265 do Código Civil). Nesse sentido, confira-se o comentário de SILVIO RODRIGUES.
“Como disse, a orientação tradicional, já encontrada em POTHIER e em que o legislador francês se foi inspirar, só admite a existência da solidariedade se expressamente manifestada pelas partes, ou determinada pela lei. (…) Ora, se a solidariedade constitui exceção, deve ser expressamente declarada[6].”
Assim, não há como se conceber a responsabilidade solidária em matéria ambiental, notadamente na esfera administrativa, à míngua de expressa disposição legal neste sentido. A responsabilidade solidária é, de fato, desconhecida em âmbito administrativo ambiental, por constituir exceção ao sistema de responsabilidade.
O sistema de responsabilidade solidária por danos ambientais, previsto no art. 14, §1º, da Lei Federal 6.938/81, tem aplicabilidade restrita à responsabilidade civil, não sendo lícito à IMA estender indiscriminadamente um sistema de exceção, criado para recomposição de danos, para também aplicá-lo à regulamentação administrativa.
A solidariedade pressuporia a concorrência da empresa para as supostas infrações descritas no AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL, isto é, pressuporia um nexo de causalidade que não restou provado, conforme já aduzido acima.
Não há que se supor, assim, ser extensiva a responsabilidade administrativa ambiental também à empresa. Somente é cabível a imposição de sanções e a imputação administrativa ao efetivo autor da conduta infracional, ou seja, àquele cuja ação ou omissão apresenta relação direta de causa e efeito com a irregularidade.
Vale dizer, não sustenta a solidariedade o argumento de que o poluidor indireto também seria responsável pelo evento danoso, pois isto, além de ser instituto aplicável estritamente à esfera civil, pressuporia um nexo de causalidade que não necessariamente ocorre nas situações de responsabilidade solidária. Em outras palavras, a alegação de solidariedade ou de suposta responsabilidade civil indireta não traz repercussão na esfera administrativa, na qual somente o efetivo causador da irregularidade é que pode ter seu comportamento repreendido com a imposição de sanção.
Por mais este motivo, a autora entende que devem ser anulados o AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL, porquanto não se há que falar em responsabilidade solidária na esfera administrativa, por dano ambiental causado comissivamente pela autora e omissivamente pela IMA, conforme decisão judicial já passada em julgado.
A autora apenas contratou os serviços da terceirizada, à época regularmente licenciada pelo órgão competente. A única conduta que se pode atribuir à autora é ter sido induzida pelo licenciamento concedido pela IMA.
2.5. ERRO MATERIAL: A IMPOSSIBILIDADE DE A IMA AUTUAR EM RAZÃO DA PROIBIÇÃO DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Já se demonstrou à exaustão que não houve qualquer irregularidade na gestão dos resíduos enquanto estes estavam sob a custódia da empresa devidamente licenciada e que obteve todas as licenças e autorizações referentes à remessa de resíduos à autora, à época devidamente licenciado pela IMA.
A despeito de inexistir infração administrativa imputável à autora, as autuações ora questionadas ainda configuram venire contra factum proprium, já que a própria IMA havia licenciado a autora para receber resíduos e inertizá-los, de sorte que eventual inadequação das atividades, deveria ter sido previamente coibida pela fiscalização da IMA. Nesse sentido, confira-se a lição de SÍLVIO DE SALVO VENOSA:
“No conceito de boa-fé objetiva, ingressa como forma de sua antítese, ou exemplo de má-fé objetiva, o que se denomina proibição de comportamento contraditório ou na expressão latina venire contra factum proprium. Trata-se da circunstância de um sujeito de direito buscar favorecer-se em processo judicial, assumindo conduta que contradiz outra que a precede no tempo e assim constitui um proceder injusto e portanto inadmissível (…).
Trata-se de um imperativo em prol da credibilidade e da segurança das relações sociais e consequentemente das relações jurídicas que o sujeito observe um comportamento coerente, como um princípio básico de convivência. O fundamento situa-se no fato de que a conduta anterior gerou, objetivamente, confiança em quem recebeu reflexos dela.