EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA VARA FEDERAL DE
AUTORA, pessoa jurídica de direito privado, regularmente inscrita no CNPJ, com sede em, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, por meio de seus advogados, ajuizar a presente AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE AUTO DE INFRAÇÃO COM PEDIDO DE CONCESSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA em face do INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS – IBAMA, autarquia federal, pelas razões de fato e de direito a seguir expostas.
1. SÍNTESE DOS FATOS
Por meio da presente ação, a Autora objetiva a anulação do Auto de Infração Ambiental lavrado pelo IBAMA em virtude de suposta conduta infratora de receber, para fins industriais, carvão vegetal sem licença outorgada pelo órgão ambiental competente. Em consequência da lavratura do referido auto de infração ambiental, foi imposta multa pecuniária.
A despeito de sempre ter exercido suas atividades de forma absolutamente idônea, a autora foi surpreendida, com a lavratura do auto de infração ambiental por técnicos do IBAMA, impondo à Autora uma multa exorbitante.
Conforme se observa da leitura do auto de infração ambiental, a conduta que teria dado causa à sua lavratura seria o suposto recebimento, para fins industriais, de carvão vegetal sem licença outorgada pelo órgão ambiental competente, volume que teria sido auferido referente à atividade produtiva da Autora.
Contudo, em que pese a relevância dos argumentos aduzidos pela autora, sua defesa administrativa foi rejeitada pela Superintendência do IBAMA, que homologou o referido auto de infração ambiental a despeito de todas as ilegalidades que o maculam.
Foi assim que a autora interpôs o cabível recurso hierárquico, dirigido ao Presidente do IBAMA, objetivando a reforma da referida decisão. Na mesma oportunidade, o Presidente do IBAMA entendeu pela infundada cobrança da reposição florestal para fins de reparação dos supostos danos ambientais.
No entanto, como se verá melhor adiante, tal pretensa imposição simplesmente não se faz possível na esfera administrativa, a qual tem como finalidade reprimir ou penalizar atos infracionais, enquanto que a reparação propriamente dita do suposto dano ambiental tem cabimento, única e exclusivamente, na esfera civil.
Vale esclarecer, aliás, que tal pretensão reparatória dos supostos danos já é objeto das ações civis públicas. Deste modo, jamais poderia o IBAMA ter imposto tal obrigação reparatória em âmbito administrativo por notória e incontestável configuração de bis in idem. Em razão da decisão administrativa denegatória do recurso hierárquico, foi manejado recurso de revisão que, até o momento, não foi apreciado.
Paralelamente aos andamentos acima apresentados, a Autora formulou proposta de conversão das multas impostas em medidas socioambientais, mediante a implementação do Programa Floresta Nativa.
Destarte, a Autora por vezes se manifestou nos autos do processo administrativo requerendo o sobrestamento do feito, juntamente com o sobrestamento de outros dois processos administrativos que versavam a respeito de infrações semelhantes, enquanto pendente de apreciação esse pedido de conversão das multas.
Em tais oportunidades, submeteu à apreciação do Réu suas propostas referentes ao supracitado Programa Floresta Nativa, merecendo destaque duas delas, as quais demonstram a inequívoca tentativa da Autora em fomentar medidas de notório ganho ambiental.
Tendo em vista que a referida proposta se encontrava (e, diga-se, ainda se encontra) em fase de discussões e complementações com o IBAMA, a Autora acreditava que seria aguardada a análise final quanto ao cabimento ou não da conversão das penas antes da cobrança das multas faraônicas que lhe foram impostas.
De forma oposta, a autora foi surpreendida quando recebeu notificação para pagamento da multa que ora se impugna, com o envio de boleto bancário para pagamento da penalidade.
Embora permanecessem em andamento as discussões e análises acerca do pedido de conversão das penalidades em medidas socioambientais, não foram cancelados – ou sequer suspensos – os dois boletos de cobrança de multas referentes à suposta infração (receber, para fins industriais, carvão vegetal sem licença ambiental).
Por essa razão, a Autora propôs ação ordinária com o objetivo de suspender qualquer ato de cobrança da referida multa decorrente do auto de infração ambiental – bem como da vultosa multa proveniente do auto de infração ambiental semelhante ao auto de infração ambiental, somente com alteração do período compreendido pelo auto.
Não custa observar que a referida ação ordinária, não pretendia afastar as penalidades impostas à Autora, mas sim suspender a exigibilidade das multas em referência e, ademais, de quaisquer atos coercitivos envolvendo os referidos processos administrativos até a análise final, no âmbito administrativo, do Recurso de Revisão e do pedido de conversão das multas em medidas socioambientais.
Nos autos da Ação Ordinária, assim, foi proferida decisão suspendendo a exigibilidade da penalidade imposta por meio do auto de infração ambiental, conforme se afere das cópias da medida liminar e da posterior sentença, as quais determinaram que o IBAMA se abstenha de (i) executar a dívida decorrente desse ato administrativo, (ii) inscrever a autora no CADIN, e de (iii) registrar tais pendências no Cadastro Técnico Federal e no certificado de regularidade, além de qualquer ato coercitivo envolvendo a matéria discutida em sede administrativa.
Ocorre que, para verdadeiramente discutir o mérito do auto de infração ambiental e obter a sua nulidade definitiva, não restou alternativa à autora senão o ajuizamento da presente demanda, por meio da qual restará demonstrada a nulidade dos atos praticados pelo IBAMA e a imperiosidade de desconstituição do Auto de Infração.
2. RAZÕES PARA DECLARAÇÃO DE NULIDADE INTEGRAL DO AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL
O auto de infração ambiental objeto da presente demanda está eivado de nulidade absoluta em razão, primeiramente, da condução tendenciosa e distorcida do IBAMA quanto à análise dos argumentos aduzidos pela autora no âmbito do processo administrativo, vez que desconsiderou os argumentos trazidos quanto ao estoque de carvão declarados, que foram utilizados para a produção, e que não foram abatidos do valor total.
Além disso, ficou comprovado pelos argumentos e documentos trazidos aos autos administrativos que o procedimento de injeção de finos adotado gerou eficiência no processo produzido, de modo que não resta qualquer excedente de carvão irregular supostamente utilizado – pois a autora sequer deteve esse volume calculado pelo IBAMA com base na produção de ferro compreendido no auto de infração ambiental objeto da presente ação.
Adicionalmente, a obrigação de reparar os supostos danos ambientais imposta pelo IBAMA não pode ser objeto de determinação em sede administrativa, uma vez que a responsabilização administrativa tem cunho repressor, enquanto que a reparação do dano em si é exigível tão somente na esfera civil.
Tanto é que tal pretensão de reparação já é objeto de duas ações civis públicas, inexistindo fundamento ao IBAMA para requerer tal reparação administrativamente, em clara configuração de bis in idem.
Além disso, como já mencionado, o IBAMA deixou de considerar que expressivo volume de carvão vegetal supostamente adquirido sem licença, foi comprovadamente adquirido de forma regular, o que deveria ter sido considerado e descontado para cálculo correto de eventual sanção.
Por fim, é flagrante a falta de motivação do auto de infração ambiental e o consequente cerceamento do direito de defesa da Autora. Com efeito, a infração ambiental imputada à autora não guarda qualquer pertinência com a realidade fática, uma vez que todas as suas atividades são praticadas em fiel observância às normas legais vigentes e mediante as autorizações administrativas legalmente exigidas.
Como dito, pela própria natureza de seus negócios e por fazer parte de setores tão relevantes para a economia brasileira, a Autora tem plena consciência das expectativas criadas em relação a suas atividades, especialmente no que diz respeito ao seu papel de liderança na proteção de recursos naturais e no respeito às normas ambientais vigentes.
Subsidiariamente, na hipótese de Vossa Excelência não entender pela absoluta nulidade do AI, é imperativo que se reconheça, ao menos, (i) a adequação do valor da multa, considerando o estoque legal de carvão que ignorado pelo IBAMA no âmbito do processo administrativo, ainda que tenha sido devidamente comprovado; (ii) a anulação da obrigação de reparar os supostos danos ambientais por incompetência do IBAMA e por flagrante bis in idem; e, por fim, (iii) a necessidade de redução do valor da multa em respeito aos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade. É o que se verá, com maiores detalhes, a seguir.
2.1. REGULARIDADE DA AQUISIÇÃO DE CARVÃO QUE NÃO FOI DESCONTADO DO SUPOSTO DÉFICIT DA AUTORA. EQUÍVOCOS NO CÁLCULO DO IBAMA QUE DESCONSIDEROU A TÉCNICA DE INJEÇÃO DE FINOS
Primeiramente, é nítido que, por uma simples análise dos documentos ora apresentados pela autora (também já expostos ao IBAMA em sede administrativa), é possível verificar inúmeros equívocos cometidos pelo Réu no processo administrativo, maculando, por consequência, o AI em tela.
Neste sentido, é necessário consignar que a lavratura do auto de infração ambiental teve origem em suposta aquisição de carvão vegetal de forma irregular, ou seja, alegadamente sem as competentes licenças dos órgãos ambientais.
Contudo, ainda que se entenda que realmente houve a infração – o que se admite apenas para fins argumentativos –, cumpre destacar que o IBAMA deixou de considerar que há prova robusta de que considerável volume de carvão vegetal foi regularmente adquirido e permanecia em estoque nos anos em referência. Logo, tal volume naturalmente deveria ter sido abatido do suposto déficit apurado pelo IBAMA – o que não ocorreu no caso concreto.
Esse tema foi amplamente discorrido em sede de Defesa Administrativa e que nunca foi avaliado pelo IBAMA. Assim é que, do volume estimado pelo IBAMA de carvão vegetal tido como base de cálculo para a multa imposta à Autora, desta quantidade obviamente deveria ter sido subtraído o volume, restando somente o que não foi feito pelo Réu. A bem da verdade, apesar do presente argumento ter sido levantado diversas vezes em sede administrativa, sequer houve a devida análise pelo IBAMA.
E ainda, conforme também já discorrido na oportunidade da Defesa Administrativa, e também ignorado pelo IBAMA, a autora operava utilizando equipamento de “injeção de finos de carvão”, cujos correspondentes documentos e fotos foram apresentados na esfera administrativa.
Fica evidente, portanto, que não há qualquer excedente de mdc[1] que possa ser considerado como irregular.
Por essas razões, como o montante total de carvão vegetal não foi deduzido do déficit apontado pelo IBAMA no bojo do processo administrativo originário do auto de infração ambiental, uma vez regularmente adquirido pela Autora e utilizado em suas atividades produtivas mediante as competentes licenças e autorizações administrativas e ambientais, e porque o IBAMA não considerou os ajustes de cálculo indicados pela autora, o referido auto de infração ambiental deve ser considerado nulo por este D. Juízo.
2.2. OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS SOMENTE CABÍVEL NA ESFERA CIVIL. EXISTÊNCIA DE AÇÕES CIVIS PÚBLICAS QUE JÁ COMPORTAM TAL OBJETO.
Como é cediço, a responsabilidade em matéria ambiental tem fundamento na Constituição da República, que, em seu art. 225, § 3º, estabelece que “as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Assim, há previsão de responsabilização ambiental em três esferas independentes: civil, penal e administrativa.
Em apertada síntese, pode-se dizer, na esteira da melhor doutrina e do entendimento consolidado dos tribunais superiores, que a responsabilização civil ambiental é objetiva, solidária e diz respeito ao dever de reparação/indenização por danos causados ao meio ambiente; que a responsabilização penal ambiental tem como elemento determinante a culpabilidade do agente, é personalíssima e diz respeito às penalidades de caráter criminal.
Por outro lado, a responsabilização administrativa ambiental, de índole repressiva assim como a responsabilização penal, também é personalíssima e sujeita o infrator a sanções de natureza administrativa, tais como advertências e multas.
Assim, quando lidamos com a responsabilidade na esfera administrativa (que é notoriamente diferente da esfera civil), é imperativo que exista uma conduta por parte do pretenso infrator, uma vez que a responsabilidade é subjetiva e personalíssima.
Na seara ambiental, a exigência de conduta (ação ou omissão) por parte do transgressor está estabelecida na Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal 9.605/98, art. 70[2]) e no Decreto Federal de Infrações Administrativas Ambientais (Decreto Federal 6.514/08, art. 2º[3]), normas inclusive utilizadas para fundamentar a lavratura do AI aqui vergastado.
Dessa forma, vale observar que é de se repelir qualquer argumentação no sentido de que a Autora poderia ser responsabilizada de forma objetiva e solidária, independentemente de culpa ou dolo, sob o argumento de que tal responsabilidade encontraria supedâneo por se tratar de matéria ambiental.
Devem ser afastados, portanto, quaisquer argumentos que se valham de concepções como “poluidor indireto”, “teoria do risco integral” ou “responsabilidade objetiva e solidária”, uma vez que tais noções apenas encontram esteio no arcabouço jurídico-ambiental que rege a responsabilidade ambiental no âmbito CIVIL, não no ADMINISTRATIVO, não podendo ser utilizadas para justificar a lavratura de autos de infração, os quais são, por natureza, atos administrativos.
Nesse sentido, a doutrina é pacífica ao entender que a responsabilidade ambiental na seara administrativa é subjetiva e tem caráter repressivo, estando indubitavelmente vinculada à noção de reprovabilidade da conduta, isto é, à culpabilidade do pretenso transgressor.[4]
Também a jurisprudência, inclusive de ambas as Turmas do E. STJ que tratam de matérias relacionadas ao Direito Público, é pacífica no sentido de que a responsabilidade administrativa ambiental é subjetiva, obedecendo à Teoria da Culpabilidade, de modo que a conduta infratora “deve ser cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano”.
A razão disso é que a responsabilidade administrativa tem caráter repressivo, estando intimamente relacionada à noção de reprovabilidade da conduta, isto é, à culpabilidade do pretenso infrator. Neste ponto, se assemelha muito da responsabilidade penal.
De forma oposta à administrativa, a responsabilização na esfera civil é a que pode ser considerada objetiva/solidária, e possui o caráter reparatório. E é exatamente isso que discorre um dos maiores doutrinadores em Direito Ambiental, o Ilustre Édis Milaré, conforme abaixo:
“A responsabilidade administrativa, analogamente ao que se dá no âmbito penal, pois ambas de índole repressiva, é absolutamente pessoal, não podendo o órgão administrativo punir uma pessoa pelo evento danoso causado por outra sem a participação da primeira. Solução diversa é a encontrada no âmbito civil, de índole reparatória, na qual é aplicável o regime especial da responsabilidade objetiva sob a modalidade do risco integral. ”
“Outrossim, conforme já referido, tanto a responsabilidade administrativa como a penal caracterizam-se por sua natureza eminentemente repressiva, o que as distingue da responsabilidade civil – em sua essência, de índole reparatória. Isto significa que, para a aplicação de uma penalidade, seja de natureza penal ou administrativa, é preciso que se configure uma conduta, omissiva ou comissiva, que, de qualquer forma, concorra para a prática da infração, na letra dos arts. 13, caput e §2º, e 29 do Código Penal e do art. 2º da Lei 9.605/1998. Por conta de seu caráter repressivo e, por isso, pessoal, as sanções administrativas podem alcançar apenas aquele que efetivamente tenha concorrido para o desenlace do comportamento infracional. ”
No caso em tela, não cabe ao IBAMA a pretensão de reparação civil de danos ambientais como imputação de punição no âmbito do processo administrativo que discute auto de infração ambiental o que erroneamente fez por meio da Decisão Recursal, que determinou a cobrança da reposição florestal para fins de reparação dos supostos danos ambientais.
De fato, o auto de infração ambiental padece de uma série de nulidades, as quais serão devidamente elucidadas ao longo do presente exordial, merecendo destaque inicial, contudo, a gritante ilegalidade no que diz respeito à determinação de reparação dos supostos danos ambientais em sede administrativa (que possui natureza repressiva). Como visto, tal pretensão só tem cabimento na esfera da responsabilidade civil (a qual possui índole reparatória).
Sobre o assunto, também merecem destaque as lições do Ilustre Desembargador Torres de Carvalho, integrante de uma das Câmaras Reservadas ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foro ativo e de vanguarda na discussão e consolidação da jurisprudência ambiental brasileira:
“O art. 225 da Constituição Federal impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, dispondo no § 3º que ‘as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados’. No mesmo sentido vem o art. 195 da Constituição do Estado. O comando é claro: as sanções administrativas são impostas aos infratores por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente – condutas e atividades praticadas pelos infratores. Ou, em outras palavras ainda, as sanções são aplicadas a quem, pessoalmente ou por pessoa a si ligada, pratica a conduta vedada na lei ou no regulamento.
(…) Não se pode confundir a responsabilidade pela infração administrativa, que é pessoal e imposta nos termos descritos na lei, com a responsabilidade pela RECOMPOSIÇÃO do dano, objetiva e que decorre da propriedade ou da atividade desenvolvida.”
Diante do exposto, é inquestionável que a presente demanda merece procedência para que seja declarada a absoluta nulidade do auto de infração ambiental, uma vez que o referido ato administrativo engloba a Decisão Recursal, a qual determinou a cobrança da reposição florestal para fins de reparação dos supostos danos ambientais.
Não custa relembrar, ademais, que tanto as reparações de supostos danos ambientais somente têm cabimento na esfera civil, que existem duas ações civis públicas propostas objetivando a reparação dos danos supostamente verificados na ocasião da lavratura do auto de infração ambiental.
Mais uma razão para justificar o absoluto descabimento da determinação de reparação pelo IBAMA, em sede administrativa, quando esta mesma reparação já é pleiteada na esfera civil, configurando-se, portanto, bis in idem.
2.3. LAVRATURA DO AUTO DE INFRAÇÃO EM ABSOLUTO DESRESPEITO AO PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO
Como se sabe, a atividade de controle e fiscalização do Estado deve respeitar determinados limites, evitando que sua atuação ultrapasse as fronteiras do legalmente permitido. No presente caso, o auto de infração ambiental ora refutado deve ser declarado nulo por este MM. Juízo, tendo em vista ter sido lavrado em absoluto desrespeito aos princípios da legalidade e da motivação, que devem sempre ser observados por agentes da Administração Pública.
Como se sabe, os princípios da legalidade e da motivação dos atos administrativos encontram supedâneo nos arts. 2º[5] e 50, caput e inciso I[6], da Lei 9.784/1999.
No caso em tela, é flagrante a falta de motivação para o ato administrativo discricionário e o consequente cerceamento do direito de defesa, irregularidades estas que culminam, irremediavelmente, na nulidade do AI em tela.
Acerca do princípio da motivação, são os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Melo:
“Dito princípio implica para a Administração o dever de justificar os seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se à consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo. (…) Em algumas hipóteses de atos vinculados, isto é, naqueles em que há aplicação quase automática da lei, por não existir campo para interferência de juízos subjetivos do administrador, a simples menção do fato e da regra de Direito aplicada pode ser suficiente, por estar implícita a motivação. Naqueles outros, todavia, em que existe discricionariedade administrativa ou em que a prática de ato vinculado depende de acurada apreciação e sopesamento dos fatos e das regras jurídicas em causa, é imprescindível motivação detalhada[7].”
Quando da lavratura do auto de infração ambiental, não cuidou a autoridade administrativa de motivar, de forma adequada e suficiente os motivos que levaram à sua lavratura.
Ao descrever a suposta conduta infracional, indicou o IBAMA que a Autora teria supostamente recebido, para fins industriais, carvão vegetal “sem licença outorgada pelo órgão ambiental competente”, o que, definitivamente, não motiva a lavratura do AI em tela.
Ademais, vale notar que o auto de infração ambiental não contém a descrição, clara e objetiva, de qual teria sido a infração ambiental supostamente cometida pela Autora, nem descreve os parâmetros utilizados para a aplicação de pena de multa de tão elevada monta, de modo a impedir, inclusive, o adequado exercício do direito de defesa, previsto no art. 5º, inciso LV, da Constituição da República.
E o cerceamento de defesa também é causa de nulidade do ato administrativo, como ensina Hely Lopes Meirelles:
“(…) processo administrativo sem oportunidade de defesa ou com defesa cerceada é nulo, conforme tem decidido reiteradamente nossos tribunais, confirmando a aplicabilidade do princípio Constitucional do devido processo legal, ou, mais especificamente, da garantia de defesa.”[8]
Por essas razões, não restam quaisquer dúvidas acerca da nulidade do AI em tela, razão pela qual pede seja a presente demanda julgada integralmente procedente.
3. ANULAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE REPARAR OS SUPOSTOS DANOS AMBIENTAIS
Conforme detalhadamente elucidado anteriormente, é medida de rigor que se entenda pela anulação da obrigação de reposição florestal para fins de reparação dos supostos danos ambientais, conforme indevidamente imposto pelo IBAMA em sede administrativa – por meio da Decisão Recursal.
Isso porque, conforme entendimento majoritário da Doutrina e jurisprudência, a responsabilidade administrativa tem caráter repressivo, estando intimamente relacionada à noção de reprovabilidade da conduta, isto é, à culpabilidade do pretenso infrator. De forma oposta, a responsabilização na esfera civil é a que possui o caráter reparatório.
Além disso, tanto as reparações de supostos danos ambientais somente têm cabimento na esfera civil, que existem duas ações civis públicas propostas objetivando a reparação dos danos supostamente verificados por ocasião do auto de infração ambiental.
Esta é mais uma razão para justificar o absoluto descabimento da determinação de reparação pelo IBAMA, em sede administrativa, quando esta mesma reparação já é pleiteada na esfera civil.
Tal comportamento configura inclusive bis in idem, uma vez que não pode ser determinado que a Autora cumpra a mesma obrigação duas vezes, uma em sede administrativa, e outra na civil.
4. REDUÇÃO DA MULTA COM BASE NAS INFORMAÇÕES TÉCNICAS REFERENTES AOS CÁLCULOS DE VOLUME E NOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE
Ainda que, por hipótese, Vossa Excelência entendesse pela manutenção do auto de infração ambiental, o que se admite apenas em respeito ao princípio da eventualidade, a autuação continuaria padecendo de vício em sua lavratura, porquanto, especificamente em relação à fixação do valor da multa, não considerou informações apresentadas nos autos administrativos quanto a erro de cálculo de volume atribuído como irregular e encontra-se em completo descompasso com os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da motivação.
Como referido acima, o IBAMA ignorou as contundentes informações apresentadas quanto ao volume de carvão vegetal regularmente adquirido pela e que permanecia em estoque nos anos referidos no AI, o que deveria ter sido abatido do suposto déficit apurado.
Vale repetir: ficou demonstrado que restavam metros cúbicos de carvão em estoque para utilização, os quais possuíam origem absolutamente legal.
Com isso, para eventual autuação relacionada à irregularidade do IBAMA deveria ter considerado tal informação, o que não foi feito. Tampouco o IBAMA reviu posteriormente o valor total do auto de infração ambiental mesmo com a apresentação de tais detalhes no âmbito da Defesa Administrativa.
Com efeito, deve ser abatido o volume estimado pelo IBAMA de carvão vegetal tido como base de cálculo para a multa imposta à Autora.
Nesse contexto, uma vez lavrado um ato administrativo sancionador que impõe a penalidade de multa, deve a Administração Pública levar em consideração as circunstâncias do caso concreto para a valoração da pena pecuniária a ser aplicada. Exatamente em razão disso optou o legislador por não cominar valores predeterminados para cada infração administrativa.
Em escolha acertada, preferiu o legislador estabelecer faixas de valoração ou multas variáveis, de forma a permitir a sua adequada gradação pelo agente público, em função da gravidade da infração e do grau de contribuição do agente para sua ocorrência.
Nessa seara, era imprescindível que a autoridade administrativa tivesse considerado as especificidades do presente caso para que pudesse, à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, definir e quantificar a penalidade adequada.
É o que prescreve, por exemplo, o art. 4º do Decreto Federal 6.514/2008[9], que permite a diminuição de multas administrativas em função das nuances do caso concreto.
O dever de observância dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade no exercício do poder de polícia pela Administração, é unanimemente reconhecido pela doutrina administrativista:
“Enuncia-se com este princípio [da razoabilidade] que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida.
É óbvio que uma providência administrativa desarrazoada, incapaz de passar com sucesso pelo crivo da razoabilidade, não pode estar conforme à finalidade da lei. Donde se padecer deste defeito, será necessariamente violadora do princípio da finalidade. Uma providência desarrazoada, consoante dito, não pode ser havida como comportada pela lei. Logo, é ilegal: é desbordante dos limites nela admitidos[10].”
“Sobremodo quando a Administração restringe situação jurídica aos administrados além do que caberia [em violação ao princípio da proporcionalidade], por imprimir às medidas tomadas uma intensidade ou extensão supérfluas, prescindendas, ressalta a ilegalidade de sua conduta. É que ninguém deve estar obrigado a suportar constrições em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis à satisfação do interesse público. Logo, o plus, o excesso acaso existente, não milita em benefício de ninguém. Representa, portanto, apenas um agravo inútil aos direitos de cada qual.”
“Embora a Lei 9.784/99 faça referência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, separadamente, na realidade, o segundo constitui um dos aspectos contidos no primeiro. Isto porque o princípio da razoabilidade, entre outras coisas, exige proporcionalidade entre meios de que se utiliza da Administração e os fins que ela tem que alcançar. E essa proporcionalidade deve ser medida não pelos critérios pessoais do administrador, mas segundo padrões comuns na sociedade em que vive; e não pode ser medida diante dos termos frios da lei, mas diante do caso em concreto. Com efeito, embora a norma legal deixe um espaço livre para decisão administrativa, segundo critérios de oportunidade e conveniência, essa liberdade às vezes se reduz no caso concreto onde os fatos podem apontar para o administrador a melhor solução. Se a decisão é manifestadamente inadequada para alcançar a finalidade legal, a Administração terá exorbitado dos limites de discricionariedade e o Poder Judiciário poderá corrigir a ilegalidade. ”
Além de pacificado na Doutrina, também está expressamente previsto no âmbito dos processos administrativos sancionadores em matéria ambiental que a Administração Pública deve respeitar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Basta que se mencione, a título de exemplo, o art. 95[11] do Decreto Federal 6.514/2008; bem como o art. 2º, parágrafo único, inciso VI, da Lei Federal 9.784/1999, o qual determina que, no processo administrativo, será observada a “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”.
Como não poderia deixar de ser, na mesma linha caminha a jurisprudência dos tribunais pátrios[12].
Nesse contexto, não é razoável que o IBAMA leve longos anos para a instrução e julgamento de processo administrativo e, ao fim, acabe por ignorar todas as informações apresentadas e se limite a manter íntegro o AI, sem qualquer juízo crítico, ensejando gravíssimo prejuízo à Autora.
O que se entende neste aspecto é que toda e qualquer ação executada por um ente da Administração Pública, em qualquer nível de hierarquia ou função, deve sempre ser dotada de um norte de justiça e bom senso, imputando sempre ao administrado uma sanção razoável. Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello entende que:
“As sanções devem guardar uma relação de proporcionalidade com a gravidade de infração. Ainda que a aferição desta medida inúmeras vezes possa apresentar dificuldade em ser caracterizada, em inúmeras outras é perfeitamente clara; ou seja: há casos em que se pode ter dúvida se tal ou qual gravame está devidamente correlacionado com a seriedade da infração – ainda que se possa notar que a dúvida nunca se proporá em uma escala muito ampla, mas em um campo de variação relativamente pequeno –, de par com outros casos em que não haverá dúvida alguma de que a sanção é proporcional ou é desproporcional. (…) De todo modo, é certo que, flagrada a desproporcionalidade, a sanção é inválida.”[13]
O Ilustre Prof. Édis Milaré compartilha do mesmo entendimento:
“Como se vê, a violação do princípio da razoabilidade, no tocante à dosimetria da sanção por parte da autoridade administrativa, enseja o controle jurisdicional para a sua adequação, na medida em que os elementos que servem de parâmetro para gradação da pena acham- se regrados em lei[14].”
Ou seja, não é preciso longa elucubração para se perceber que a lavratura de auto de infração ambiental, referente ao suposto uso ilegal de carvão relacionado ao período de um ano completo -, é conduta completamente fora dos padrões de prudência e sensatez que se poderia esperar da Administração Pública.
Quer dizer, além do IBAMA não ter promovido qualquer fiscalização, ainda esperou anos para apurar e lavrar o auto de infração ambiental.
Claramente, o IBAMA sequer tem verdadeiro conhecimento da suposta conduta infrativa e, ainda, limitou-se a contabilizar números, esquecendo que qualquer número se refere a uma questão fática que sequer foi apurada.
O IBAMA, sem qualquer apreço à razoabilidade e à proporcionalidade que devem reger a sua atuação, ignora as informações e dados fornecidos no âmbito dos processos administrativos e limita-se a fazer contas por meio de parâmetros muitas das vezes distorcidos de conversão de volumes de carvão, que levam a montantes estratosféricos.
Aliás, tais critérios e contas (se é que existiram) usados para justificar a imposição de multa e de seu consequente agravamento, sequer foram devidamente expostos para a Autora ao longo do procedimento administrativo.
Esse tipo de conduta do IBAMA leva à imposição de valores de multa tão altos que são capazes de comprometer significativamente a saúde financeira das empresas e isso sequer é considerado.
Ainda que sob o argumento da proteção ambiental, lavrar autos de infração milionários sem qualquer razoabilidade resulta, em última instância, em um universo de multas não pagas e danos ambientais órfãos, por falta de saúde financeira para responder a tais passivos.
Neste sentido é o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região proferido nos autos de ação anulatória ajuizada pela Autora, a qual visa anular auto de infração ambiental.
“Como se sabe, o princípio da proporcionalidade, em seus três subprincípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) indica que, não obstante a adequação da sanção ao fim pretendido (prevenir e reparar o dano ao meio ambiente), o valor de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) violaria o subprincípio da necessidade, na forma da proibição do excesso, já que a própria lei impõe que se considere a situação econômica da empresa, que, segundo demonstrado, não teria como suportar tal ônus sem comprometer totalmente suas atividades empresariais.