Excelente a sentença que julgou procedente a ação de regularização de animal silvestre proposta pela autora contra o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, objetivando a concessão da guarda definitiva da ave papagaio-verdadeiro de nome “[…]”.
Neste caso, importante destacar que a autora nunca foi autuada pelo IBAMA ou por qualquer outro órgão ambiental por manter o animal silvestre em ambiente doméstico, e através da ação judicial, buscou a regularização do papagaio espontaneamente, como o objetivo de melhor proteção da ave tendo em vista a necessidade de deslocamentos para clínicas veterinárias especializadas.
Mas ainda que fosse caso de autuação ambiental, a autora também poderia ter ajuizado a mesma ação visando tanto a regularização do papagaio como a anulação do auto de infração ambiental e termo de apreensão da ave, hipótese em que se tivesse sido apreendida, poderia haver pedido liminar para restituição imediata do papagaio.
A diferença entre a ação de regularização proposta espontaneamente pelo tutor do animal silvestre, sem que tenha havido fiscalização e autuação, e da ação que também visa a regularização mas é cumulada com pedido de nulidade do auto de infração ambiental, considerando que ambas seriam propostas contra o IBAMA, é tão somente a competência para julgar a ação, sendo aquela primeira do Juizado Especial Federal, e essa última da Vara Federal pelo procedimento comum.
Entenda o caso da ave silvestre irregular que agora será regularizada
Segundo os autos, a autora propôs a ação de regularização de animal silvestre por ser a tutora de uma ave silvestre da espécie “papagaio-verdadeiro” (Amazona Aestivia), não ameaçada de extinção, há mais de 15 anos.
Na ação de regularização do papagaio, alegou que existiam muitos riscos em se devolver à natureza um animal silvestre há muito adaptado em ambiente doméstico, e demonstrou que a jurisprudência dos Tribunais brasileiros, em especial do Superior Tribunal de Justiça – STJ, permite a regularização e permanência do animal silvestre com seus tutores.
Antes da sentença, o Magistrado já havia deferido a antecipação dos efeitos da tutela para conceder a guarda provisória da ave silvestre da espécie “papagaio-verdadeiro” de nome “[…]” à autora, bem como para determinar que o IBAMA se abstivesse de quaisquer atos tendentes à apreensão do animal e à aplicação de sanções relacionadas à sua posse.
A contestação apresentada pelo IBAMA se limitou a citações vazias, pugnando pela improcedência do pedido, mas não conseguiu comprovar a impossibilidade de regularização da ave silvestre, nem que a sua apreensão seria a medida correta, e nem poderia, porque a legislação visa a melhor proteção aos animais, sendo correta, a procedência do pedido para determinar que o IBAMA procedesse a regularização do papagaio.
Vale lembrar que o IBAMA deve recorrer em busca da reforma da sentença, para que o Tribunal julgue improcedente a ação de regularização, contudo, considerando a jurisprudência do próprio Tribunal e do STJ, a sentença deve ser mantida.
Leia a sentença que determinou ao IBAMA a regularização do papagaio
De início, afasto a preliminar de incompetência do Juizado Especial Federal, uma vez que a ação não tem por objeto a anulação de ato administrativo, mas o pedido de concessão de guarda definitiva de animal silvestre.
Afasto, também, a alegação de ilegitimidade passiva, porquanto cabe ao IBAMA a atribuição de regulamentar e deferir a guarda de animal silvestre. Vejamos precedente:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AMBIENTAL. IBAMA. ANIMAL SILVESTRE AMBIENTE DOMÉSTICO. LEGITIMIDADE PASSIVA E INTERESSE DE AGIR. CONVÍVIO DOMÉSTICO E BEM-ESTAR DO ANIMAL ASSEGURADO. POSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA POSSE. SUCUMBÊNCIA.
- Ainda que firmado Acordo de Cooperação Técnica entre o IBAMA e a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo para execução das atribuições, a autarquia federal permanece com competência para proteger e fiscalizar animais silvestres. A ausência de ato pretérito de apreensão do animal não prejudica o interesse processual da autora, diante do risco de sancionamento administrativo, considerando a postura do órgão ambiental em relação à ilegalidade da conduta, de modo a autorizar, assim, a parte interessada a valer-se do Judiciário para assegurar a manutenção da ave sob os cuidados de sua família.
- No mérito, assentou-se a jurisprudência nacional no sentido de ser admitida a manutenção de posse de animal silvestre criado em ambiente doméstico por muitos anos e, assim, não adaptado à vida selvagem, devendo-se levar em conta o bem-estar do animal.
- Na espécie, os documentos juntados comprovam que a ave foi criada como animal de estimação por mais de dezesseis anos, estando totalmente domesticada e não podendo mais ser reintegrada à vida selvagem. Ademais, consta que recebe os devidos cuidados quanto à saúde e bem-estar, como apontam imagens juntadas à inicial, depoimentos de vizinhos e atestado clínico veterinário.
- Presentes, no caso, as condições necessárias para garantia da guarda da ave pela autora, à luz da jurisprudência. Saliente-se, ainda, que a sentença ressalvou que “o direito ora reconhecido em nada obsta a atuação do requerido e de outras entidades e órgãos vocacionados à proteção ambiental na fiscalização e apuração relacionadas ao bem-estar da ave supracitada, ficando a autora sujeita às sanções cabíveis”, de modo que eventuais providências destinadas ao acompanhamento do bem-estar do animal, como fiscalização de condições de higiene, avaliação veterinária, colocação de chip ou anilha de identificação, permanecem autorizadas, a critério das autoridades competentes, sem prejuízo de eventual apreciação judicial.
- Fixada verba honorária pelo trabalho adicional em grau recursal, em observância ao comando e critérios do artigo 85, §§ 8º e 11, do Código de Processo Civil.
- Apelação desprovida. (TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv – APELAÇÃO CÍVEL – 5001870-03.2020.4.03.6134, Rel. Desembargador Federal LUIS CARLOS HIROKI MUTA, julgado em 27/07/2021, DJEN DATA: 30/07/2021)
Passo ao exame do mérito.
No caso dos autos, a autora pretende a concessão da guarda definitiva do animal silvestre papagaio-verdadeiro de nome “[…]”, de quem é tutora há mais de 15 anos. Relata que a ave convive com humanos há mais de 25 anos, estando bem cuidada e alimentada, e que não teria condições de sobreviver na natureza, tendo em vista ser animal domesticado.
Para comprovar o alegado, a autora apresentou atestado assinado por médica veterinária, que concluiu que o animal “encontra-se em excelente estado nutricional, penas assentadas, não apresenta linha de estresse”, que possui “um viveiro grande, poleiros em madeira, potes de comida e água disponíveis”, que passa boa parte do tempo solto na varanda, devidamente adaptada, sob os cuidados da tutora.
Quanto ao comportamento, relata que é “animal alerta, dócil com a tutora e apresenta comportamento de proteção em relação à mesma”. Ainda, “apresenta comportamento de regurgitação de alimento para a tutora, o que denota que o animal identifica a tutora como parceira e integrante do seu bando”, em uma relação muito íntima.
O atestado alerta que “eventual separação do animal com a tutora acarretaria grande impacto negativo ao bem-estar do animal com grande probabilidade de desenvolvimento de autotraumatismo”, e que “o treinamento ao qual o animal seria submetido para reintrodução à vida livre seria extremamente desgastante para o animal e também incorreria no risco de desenvolvimento de autotraumatismo”, considerando “totalmente inviável a reintrodução desse exemplar à natureza e também a separação de sua tutora”.
Conforme mencionado na decisão que concedeu a tutela antecipada, é certo que a conduta de ter em cativeiro espécime da fauna silvestre é tipificada pela Lei 9605/98, no artigo 29.
Contudo, o próprio parágrafo 2º do artigo 29 é expresso no sentido de o Juiz poder deixar de aplicar a pena dependendo das circunstâncias do caso concreto e desde que a guarda doméstica seja de animal não ameaçado de extinção, como o caso dos autos.
O objetivo da norma é proteger o animal e com isso, considerando o relatado pela médica veterinária especializada em animais silvestres, afigura-se perniciosa sua apreensão administrativa para o retorno ao ambiente natural ou sua soltura em cativeiro, nos termos do parágrafo 1º do artigo 25.
Destaco, por oportuno, que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica quanto à possibilidade na manutenção da guarda doméstica de papagaios, quando já adaptados ao convívio doméstico durante muitos anos e inexista maus tratos. Nesse sentido:
ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. APREENSÃO DE PAPAGAIO. ANIMAL ADAPTADO AO CONVÍVIO DOMÉSTICO. POSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA POSSE DO RECORRIDO. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. SÚMULA 7/STJ.
- In casu, o Tribunal local entendeu que “não se mostra razoável a devolução do papagaio ‘Tafarel’ à fauna silvestre, uma vez que está sob a guarda da autora há pelo menos vinte anos, sendo certa sua adaptação ao convívio com seres humanos, além de não haver qualquer registro ou condição de maus tratos “. Vale dizer, a Corte de origem considerou as condições fáticas que envolvem o caso em análise para concluir que a ave deveria continuar sob a guarda da recorrido, porquanto criada como animal doméstico.
- Ademais, a fauna silvestre, constituída por animais “que vivem naturalmente fora do cativeiro”, conforme expressão legal, é propriedade do Estado (isto é, da União) e, portanto, bem público. In casu, o longo período de vivência em cativeiro doméstico mitiga a sua qualificação como silvestre.
- A Lei 9.605/1998 expressamente enuncia que o juiz pode deixar de aplicar a pena de crimes contra a fauna, após considerar as circunstâncias do caso concreto. Não se pode olvidar que a legislação deve buscar a efetiva proteção dos animais, finalidade observada pelo julgador ordinário. Incidência da Súmula 7/STJ.
- Precedentes: AgRg no AREsp 333105/PB, Relatora Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, DJe 01/09/2014; AgRg no AREsp 345926/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 15/04/2014; REsp 1085045/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 04/05/2011; e REsp 1.084.347/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 30/9/2010.
- Agravo Regimental não provido. (AgRg no REsp 1483969/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 04/12/2014)
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. APREENSÃO DE PAPAGAIOS. AMBIENTE DOMÉSTICO. POSSE POR MAIS DE DEZ ANOS. INEXISTÊNCIA DE MAUS TRATOS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.
- No caso, o Tribunal Regional, ao analisar o conjunto fático-probatório, concluiu que a apreensão das aves não é razoável, pois acarretaria mais prejuízo do que proteção. Assim, a alteração das conclusões adotadas pela Corte de origem, tal como colocada a questão nas razões recursais, demandaria, necessariamente, novo exame do acervo fático-probatório constante dos autos, providência vedada em recurso especial, conforme o óbice previsto na Súmula 7/STJ.
- Ademais, esta Corte, já se manifestou pela aplicação do princípio da razoabilidade em casos similares, relacionados a aves criadas por longo período em ambiente doméstico, sem qualquer indício de maus-tratos ou risco de extinção.
- Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no REsp 1457447/CE, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 19/12/2014)
Por fim, pondero que a guarda do animal silvestre pela autora não obsta a atuação do IBAMA e de outras entidades e órgãos de proteção ambiental na fiscalização e apuração relacionadas ao bem-estar da ave, conforme legislação correlata.
Dessa forma, em vista das provas produzidas, é de rigor a procedência do pedido.
Dispositivo
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO, nos termos do art. 487, I, do Código de Processo Civil, para o fim de conceder à autora a guarda definitiva do animal silvestre papagaio-verdadeiro “[…]”, descrito na inicial.
Sem condenação em custas e honorários.
Mantenho a tutela de urgência anteriormente concedida.