No estudo em análise, concluímos que o Tribunal acertou ao absolver o acusado de crime ambiental de intervenção em área de preservação permanente em razão de ter utilizado o local para plantio de soja.
Embora tenha ficado comprado que o acusado foi o responsável pela manutenção do plantio de soja na propriedade, enquadrando-se a sua conduta na descrição da segunda parte do art. 38 da Lei 9.605/98, não houve dolo.
A conduta pune a “utilização” de floresta considerada de preservação permanente “com infringência das normas de proteção”, conduta típica esta que possui natureza permanente, da mesma forma que o tipo do art. 48 da mesma Lei, cuja aplicação pleiteia o recorrente.
O conflito aparente de normas nesse caso, conforme bem observado no voto do desembargador relator que absolveu o acusado, resolve-se pelo princípio da especialidade, na medida em que o primeiro tipo incide apenas em hipóteses que envolvam APP’s.
Quanto ao enquadramento na conduta típica do art. 38, cumpre observar que o acusado, à época da edição do Novo Código Florestal, reunia os requisitos para enquadrar-se na hipótese de anistia estabelecida pelo art. 60 do diploma legal referido, aplicável, aliás, para ambos os tipos referidos acima.
Contudo, o réu não se registrou perante o PRA, deixando, assim, de atender às normas de proteção exigidas pela lei.
Prosseguindo na análise meritória, verificamos que, embora a materialidade e a autoria, são incontroversas, tendo o réu admitido ser o proprietário da área e responsável pela plantação de soja nela cultivada, não há dolo.
Isso porque, da forma como construído o caderno processual, subsistem dúvidas em relação ao dolo genérico, consistente na vontade livre e consciente de praticar a conduta descrita pela norma.
Com efeito, as provas coligidas aos autos e objeto desse estudo, apontaram que o réu adquiriu a área já com a plantação de soja estabelecida, e que, aliás, esta era a situação de diversas propriedades do entorno, dando aparência de regularidade à agricultura exercida na região.
Em síntese, as condições pessoais do réu e o contexto social no qual ele se insere indicam ser verossímil a tese de que ele desconhecia a irregularidade da sua plantação.
A versão é reforçada, inclusive, pelo próprio fato de o réu não ter se cadastrado perante o PRA após o advento do Novo Código Florestal, o que descriminalizaria a conduta em estudo.
Nesse contexto, ante a inexistência de provas ou indícios que demonstrem a presença do elemento subjetivo do tipo, concluímos que a absolvição adotada pelo Tribunal foi medida acertada.
Leia a sentença que absolveu acusado de crime ambiental por intervenção em APP
O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra […], imputando-lhe a prática do crime ambiental previsto no artigo 38 da Lei nº 9.605/98. A inicial acusatória traz a seguinte narrativa:
No dia 27 de outubro de 2010, no interior do Município de […], em razão de fiscalização conjunta da Marinha do Brasil e do IBAMA, constatou-se que o denunciado vem utilizando área de floresta considerada de preservação permanente do Rio Uruguai, com infringência das normas de proteção.
Por ocasião dos fatos, à data supra, o estabelecimento de propriedade do denunciado foi fiscalizado por fiscais do IBAMA em companhia da Marinha do Brasil.
Verificou-se que no local havia construção e plantações irregulares em Área de Preservação Permanente, na costa do Rio Uruguai, sem licença ou autorização de um órgão ambiental competente.
Posteriormente, o Setor Técnico-Científico da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal, através dos seus peritos criminais federais, realizou perícia quanto às construções e área de plantio de cultura, no caso soja, tendo sido constado que o denunciado continuava a causar danos diretos à flora, através da supressão de vegetação ciliar e impedimento de sua regeneração.
A autoria delitiva é inconteste, conforme apontada pelo Relatório de do IBAMA onde consta como infrator o denunciado. Além disso, o próprio denunciado afirmou ser o proprietário da área em questão.
A materialidade delitiva, a qual é bastante clara, confirma-se através do Relatório fiscalização e autuação remetido pelo IBAMA, bem como pelo Laudo de Exame de Meio Ambiente realizado na propriedade do denunciado, pelos peritos criminais federais do Setor Técnico-Científico da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal.
Verifica-se que no local o denunciado mantém uma pequena edificação construída basicamente em madeira, bem como plantação de soja, ambas dentro da área de proteção permanente do Rio Uruguai, estando a edificação cerca de quarenta metros do rio, separada por uma pequena faixa de vegetação arbórea de aproximadamente trinta metros. No local, a área de proteção é de uma faixa de 500 metros.
A manutenção da residência e especialmente das áreas de cultivo de soja e de outras culturas no local são os fatores de utilização da área com infringência das normas de proteção, sendo que tal situação é ocasionada principalmente na área onde há o cultivo, uma vez que é muito maior do que a ocupada pela residência e nela não há nenhum tipo de vegetação arbórea.
A denúncia foi recebida em 20.03.2012, momento em que houve a homologação da suspensão condicional do processo.
Processado o feito, sobreveio sentença, publicada em 29.07.2017, que julgou procedente a pretensão exposta na denúncia, para fins de condenar o réu pela prática do delito tipificado no artigo 38 da Lei 9.605/98, à pena privativa de liberdade de 1 (um) ano e 07 (sete) meses de detenção, a ser cumprida inicialmente no regime aberto, e à pena de multa consistente no pagamento da quantia fixada em R$ 6.000,00 (seis mil reais).
A pena privativa de liberdade foi substituída por duas penas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e de prestação pecuniária, esta fixada em 10 (dez) salários mínimos vigentes à época do efetivo pagamento.
Apelou o Ministério Público Federal, requerendo que:
(a) na pena base, a vetorial culpabilidade seja majorada negativamente;
(b) que seja aplicada a agravante no artigo155, I da Lei nº9.60555/98, uma vez que o réu sustenta diversas ocorrências, inclusive de natureza ambiental;
(c) a aplicação da agravante prevista no artigo 15, II, alínea a da Lei nº 9.605 5/98, em razão de o motivo não ser comum à espécie, posto que o réu teria agido visando enriquecer-se às custas de toda a população, por ser o meio ambiente um bem comum a todos, devendo, ao final, a pena-base ser fixada em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de detenção.
Por fim, requereu que seja fixado o valor de 10 (dez) salários mínimos como valor de dano material, a título de ressarcimento do combustível e remuneração extra dos agentes, além de 5 (cinco) salários mínimos a título de dano moral (evento 175 – autos originários).
Apelou a defesa do réu alegando, preliminarmente, existir conflito aparente de normas, uma vez que, no caso em concreto, a figura típica que mais se aproxima da conduta é a prevista no artigo 48 da Lei nº 9.605/98, pois a prática delitiva não teria como autor o réu Inácio Bernardi, mas sim, seus antecessores na titularidade da propriedade em que ocorreu a autuação.
No que tange ao mérito, a defesa alegou não existir provas suficientes capazes de culminar na condenação, diante da ausência de indícios de destruição ou dano à floresta considerada área de preservação permanente.
Ainda, afirmou que o acusado não é o proprietário da casa de madeira presente na APP, tampouco a construiu.
Com relação à plantação de soja, alega o apelante que a área à que se refere a denúncia se enquadra no conceito de área consolidada, pois a exploração de atividade agrícola remonta tempo anterior a 22 de julho de 2008.
Subsidiariamente, caso não acatadas as alegações referentes à absolvição, a defesa pugnou a readequação da pena do réu.
Inicialmente, afirma que o réu faz jus à atenuante prevista no artigo 14, I e II da Lei nº 9.605/98; à minorante do artigo 38, § único da Lei nº 9.605/98; e requereu o afastamento da agravante do artigo 15, inciso II, alínea a da Lei nº 9.605/98.
Oportunizadas as contrarrazões, subiram os autos. O Ministério Público Federal ofereceu parecer opinando pelo não provimento dos recursos (Evento 04). É o relatório.
VOTO
- Tipicidade
O tipo penal em questão assim está redigido na Lei nº 9.605/98:
Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:
Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade.
A conduta típica se configura pela constatação de que o réu, em desacordo com os regulamentos sobre a matéria, suprimiu vegetação e fez outras alterações em área considerada de preservação permanente.
Em sede de apelação, a defesa requereu a desclassificação do delito àquele previsto no artigo 48 da mesma lei, que possui a seguinte redação:
Art. 48. Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação:
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Aduz a defesa que o réu não poderia ser acusado de destruir a área, uma vez que os danos foram causados pelo antigo proprietário, já tendo sido instalados o imóvel e a plantação antes mesmo de adquiri-la.
Diante da alegação de se tratar de conflito aparente de normas, entendo ser cabível tecer algumas observações acerca do princípio da especialidade.
Cezar Roberto Bitencourt, abordando o princípio da especialidade ensina que “considera-se especial uma norma penal, em relação a outra geral, quando reúne todos os elementos desta, acrescidos de mais alguns, denominados especializantes. Isto é, a norma especial acrescenta elemento próprio à descrição típica prevista na norma geral. Assim, como afirma Jescheck, ‘toda a ação que realiza o tipo do delito especial realiza também necessariamente, ao mesmo tempo, o tipo do geral, enquanto que o inverso não é verdadeiro.’
A regulamentação especial tem a finalidade, precisamente, de excluir a lei geral e, por isso, deve precedê-la. O princípio da especialidade evita o bis in idem, determinando a prevalência da norma especial em comparação com a geral, e pode ser estabelecido inabstracto, enquanto os outros princípios exigem o confronto in concreto das leis que definem o mesmo fato.” (in Bitencourt, Cezar Roberto, tratado de direito penal: parte geral, volume 1 – 10ª edição – São Paulo: Saraiva, 2006).
No caso em análise, a denúncia imputou ao réu o crime contido no art. 38 da Lei n.º 9.605/98, sendo que a defesa do réu requer que a conduta seja classificada no delito do artigo 48 da mesma lei.
Note-se que ambos os tipos preveem danos causados a florestas, havendo um aparente conflito de normas.
Contudo, apenas no artigo 38 da Lei nº 9.605/98 há referência à floresta considerada de preservação permanente e, considerando que a área em comento se trata de uma de preservação permanente, entendo que deve ser mantida a tipificação constante na sentença, em respeito ao princípio da especialidade.
Assim, entendo que não merece prosperar o apelo defensivo, no ponto.
Materialidade, autoria e dolo
A materialidade do delito restou demonstrada através dos seguintes documentos constantes no Inquérito Policial; Relatório de Fiscalização; Termo de Declarações; Laudo de Perícia Criminal Federal.
A autoria também restou comprovada. Conforme se infere do Termo de Declarações do réu, bem como de seu interrogatório judicial, o réu afirmou veementemente que era ele o proprietário da terra de 158 hectares, local em que possui uma casa e cultivo de soja.
Ademais, os documentos juntados à Defesa Prévia demonstram que o réu recebeu o imóvel no ano de 2005, da sucessão.
Apesar de a materialidade e a autoria restarem comprovadas, entendo que a análise do dolo do acusado merece maiores aprofundamentos.
Não são poucos os casos em que se mostra difícil a identificação do dolo – a vontade livre e consciente do agente de atuar em contrariedade com o que autoriza a lei – em particular em processos como este, em que a linha de argumentação rechaça frontalmente a sua existência.
Não se pode olvidar que, na definição adotada pelo Código Penal, há dolo quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
Na lição de CEZAR ROBERTO BITENCOURT dolo é a consciência e a vontade de realização da conduta descrita em um tipo penal, ou, na expressão de Welzel, ‘dolo, em sentido técnico penal, é somente a vontade de ação orientada à realização do tipo de um delito’ (in Tratado de Direito Penal. Parte geral, vol. 1, 10 ed., São Paulo: Saraiva, pp. 332-333).
Continua o autor:
O dolo, elemento essencial da ação final, compõe o tipo subjetivo. Pela sua definição constata-se que o dolo é constituído por dois elementos: um cognitivo, que é o conhecimento do fato constitutivo da ação típica; e um volitivo, que é a vontade de realizá-la. O primeiro elemento, o conhecimento, é pressuposto do segundo, a vontade, que não pode existir sem aquele. (ibidem).
Nessa exata linha de conta, verifica-se que, na hipótese dos autos, diante do conjunto probatório colacionado, não foi possível reconhecer, de modo inarredável, o dolo na conduta do réu.
Conforme consta no Laudo de Perícia Criminal Federal, o local está inserido fisiograficamente na planície fluvial do Rio Uruguai e que, na imagem disponível no aplicativo Google Earth, datada de 01.07.2003, é possível verificar diversas feições naturais tais como matas ciliares e outras vegetações nativas na beira do rio Uruguai, além de áreas como plantio, estradas e edificações.
Ou seja, considerando que o réu veio a ser proprietário da área somente em 2005, tem-se que, nesta época, já havia sido instalada a plantação de soja e construídas as casas na APP do Rio Uruguai.
Em seu interrogatório, o réu afirmou, por diversas vezes, que quando adquiriu a propriedade, a casa e a plantação de soja já haviam sido instaladas, de modo que não tinha condições de ter conhecimento de que aquele local se tratava de uma área de preservação permanente, e que não achou que se tratava de um ato ilícito manter a área como se encontrava.
O acusado declarou, ainda, que planta soja para vender à cooperativa e que, em razão de fazer uso de agrotóxicos na plantação, deve seguir as orientações prestadas por engenheiro agrônomo.
No caso dos autos, é crível que o acusado – agricultor, com grau de instrução até a sexta série – não tinha ciência de que sua área se tratava de uma de preservação permanente.
E isto porque, conforme se depreende de seu interrogatório, o acusado, quando questionado acerca do porquê teria descumprido uma das condições da suspensão condicional do processo – a de recuperar a área -, afirmou que havia plantado algumas árvores, mas “mais pra cima”, não perto do rio, momento em que inclusive o representante do Ministério Público Federal esclareceu ao réu que toda a sua área encontra-se inserida em uma APP e que o conceito de margem, em termos judiciais, se trata de uma área de 500 metros da margem do rio, tendo restado claramente demonstrado que o acusado não tinha conhecimento da ilicitude de sua conduta.
Ademais, não há que se falar em punição pelo delito na forma culposa.
Conforme referido acima, o réu agia amparado nas orientações prestadas pelo engenheiro agrônomo vinculado à cooperativa à qual vendia a soja, o qual, inclusive de acordo pelo representante do Ministério Público em audiência, tinha a obrigação de orientar o réu da impossibilidade de realizar plantações e devastar aquela área.
Assim, resta demonstrado que o réu não agiu com imprudência, negligência ou imperícia, uma vez que tomou as medidas cabíveis para regularizar sua plantação, posto que seguia as orientações do engenheiro agrônomo, além de não ter condições de supor que sua área era uma APP, em razão de ter adquirido já com a casa e com a plantação, que estão lá instaladas há mais de vinte anos, de modo que também não cabe a condenação pelo delito na forma culposa.
Assim, não restando suficientemente comprovada a existência de dolo, tampouco a culpa, elementos subjetivos essenciais do tipo previsto no artigo 38 da Lei nº 9.605/98, impõe-se absolvição do réu com fundamento no artigo 386, III, do Código de Processo Penal.
Ante o exposto, voto por negar provimento à apelação do Ministério Público Federal e dar provimento ao recurso da defesa, para absolver […], com base no que dispõe o artigo 386, III, do Código de Processo Penal, nos termos da fundamentação.
É o voto.