Irretocável a sentença proferida nos autos de ação civil pública proposta pelo IBAMA e Ministério Público Federal contra um pequeno proprietário rural, cujo objetivo do órgão ambiental era responsabilizar o agricultor pelo desmatamento de 0,82 hectares de floresta primária na região amazônica.
Resumindo a ação civil pública, o IBAMA alegou que, embora ausente a identificação de autoria, a materialidade do desmatamento estaria evidenciada e a responsabilidade pela reparação seria propter rem, ou seja, caberia ao atual proprietário a obrigação reparatória.
Com base nisso, o IBAMA requereu a condenação do pequeno proprietário rural em obrigação de fazer consistente em reparar o dano ambiental efetivado, mediante a não utilização da área para que seja propiciada a regeneração natural, com a apresentação de PRAD perante a autoridade administrativa competente, bem como em obrigação de pagar pelos danos materiais e morais causados.
O réu foi citado, ocasião em que alegou, preliminarmente, ilegitimidade passiva. No mérito, defendeu a ausência de responsabilidade e inexistência de dano moral coletivo pela inexistência de ato ilícito praticado pela requerida.
O Magistrado julgou antecipadamente a lide, reconheceu a improcedência da ação civil pública ajuizada pelo IBAMA e Ministério Público Federal, em razão de se tratar de pequena propriedade rural cuja a atividade desenvolvida pelo réu (proprietário) era para sustento próprio e de sua família.
Como bem registrado pelo Magistrado, deve-se excetuar as atividades de subsistência, em regime de economia familiar, em respeito aos institutos do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana e aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, de modo que, cuidando-se de pequena propriedade destinada a atividade rural de subsistência, é indevida a recuperação da área desmatada.
Leia a sentença que julgou improcedente a ação civil pública do IBAMA
Do julgamento antecipado da lide
Reputo desnecessária a realização de qualquer outra prova nos autos, a uma porque a discussão se cinge a matérias de direito; a duas porque as provas documentais produzidas são suficientes ao deslinde do feito
Assim, tendo em vista essas premissas fáticas e jurídicas que incidem nos autos, passo a proferir sentença, nos termos do art. 355, inciso I e II do CPC.
Mérito
Consigno que, por intermédio desta demanda, busca-se a reparação do dano ambiental, supostamente causado em decorrência da infração administrativa flagrada pelo IBAMA (Auto de Infração Ambiental e Termo de Embargo).
Conforme fundamentos lançados na petição inicial, a reparação lastreia-se no primado de que o Meio Ambiente, como direito fundamental intergeracional, impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de conceder-lhe um alto nível de proteção, veiculado pelos mais diversificados tipos de instrumentos jurídicos.
Assim, quanto aos pedidos, a autarquia ambiental e o Ministério Público Federal postularam o seguinte:
- a condenação do(s) demandado(s) em obrigação de pagar quantia certa, correspondente ao dano material derivado do desmatamento;
- a condenação do(s) demandado(s) em obrigação de pagar quantia certa, correspondente ao dano moral;
- a condenação da demandada em obrigação de fazer, consistente em recompor a área degradada mediante sua não utilização para que seja propiciada a regeneração natural bem como apresentação de PRAD perante a autoridade administrativa competente.
Mais especificamente quanto aos fatos narrados, vejo, assim, que a matéria em debate cinge-se a depurar se o réu praticou dano ambiental em sua propriedade e de quem seria a responsabilidade acerca do dano ocorrido.
O pleito é improcedente. Vejamos, antes, as bases abstratas de nosso ordenamento jurídico que incidem no caso.
Da responsabilidade objetiva em matéria ambiental
De início, assevero que a responsabilidade pelo dano causado é de natureza objetiva.
Decerto, a responsabilidade objetiva na esfera ambiental foi recepcionada pela nova ordem constitucional, refletindo seu fundamento, a partir do art. 225, § 3º, da CRFB/1988, cujo teor dispõe que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados ”.
Sobre a amplitude dessa responsabilização ambiental, a balizada doutrina Luis Paulo Sirvinskas revela que “Não há, pela leitura do dispositivo constitucional, nenhuma incompatibilidade com a lei infraconstitucional (Lei 6.938/81). Essa teoria já está consagrada na doutrina e na jurisprudência. Adotou-se a teoria do risco integral. Assim, todo aquele que causar dano ao meio ambiente ou a terceiro será obrigado a ressarci-lo mesmo que a conduta culposa ou dolosa tenha sido praticada por terceiro.”
Registre-se ainda que toda empresa possui riscos inerentes à sua atividade, devendo, por essa razão, assumir o dever de indenizar os prejuízos causados a terceiros.
A Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) ressalta, em seu princípio treze, que “os Estados devem desenvolver legislação nacional relativa à responsabilidade e indenização das vítimas de poluição e outros danos ambientais.
Os Estados devem ainda cooperar de forma expedita e determinada para o desenvolvimento de normas de direito internacional ambiental relativas à responsabilidade e indenização por efeitos adversos de danos ambientais causados, em áreas fora de sua jurisdição, por atividades dentro de sua jurisdição ou sob seu controle”.
Da presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos fiscais ambientais
Ante essa perspectiva, devo destacar que cabe à parte sobre a qual se imputa responsabilidade por danos ambientais demonstrar inequivocamente sua legitimidade e legalidade anterior em degradar espaços ambientais legalmente protegidos em lei.
Isso decorre não apenas da responsabilidade objetiva acima tratada, mas também de coerência jurídica que se deve dar aos postulados da presunção de legalidade, legitimidade e veracidade dos atos administrativos, os quais foram emanados pelas autoridades ambientais.
Nessa trilha, em acréscimo a essas percepções, enfatizo que a jurisprudência nacional vem se posicionando, em diversos casos análogos, em posição hermenêutica que privilegia os princípios do poluidor- pagador, da precaução e da prevenção, o que reforça a transferência, ab initio, ao réu de que cabe a ele provar que não degradou o meio ambiente.
Afora essas premissas gerais, percebo, contudo, que o caso dos autos demanda a incursão sobre tema relativo à suposta condição de hipossuficiente financeiro da ré, que teria, portanto, desmatado apenas para suprir suas necessidades básicas, em área correspondente a 0,82 hectares.
Tal discussão reflete, em verdade, tópico novo em nosso ordenamento jurídico, conforme novel introdução feita pela Lei n. 12.651/12, ao dispor em seu art. 56, §§ 1º e 5º, que a reposição florestal fica dispensada para o pequeno agricultor. Vejamos.
Sobre as obrigações ambientais do pequeno agricultor
O novo Código Florestal instituiu regime deveras favorável ao pequeno agricultor e ao empreendedor familiar rural, conferindo-lhes verdadeira anistia à recomposição da reserva legal degradada antes de 22/07/2008, bem como os obrigando a patamares reduzidos de recuperação das áreas de preservação permanente.
No que toca às chamadas áreas passíveis de conversão do solo – as áreas remanescentes, excluídas, pois, aqueles espaços especialmente protegidos – não houve norma que consolidasse os frequentes desmatamentos ilegais feitos pelos pequenos agricultores e equiparados.
Ou seja, aqueles desflorestamentos ilegais em áreas passíveis de conversão do solo – que em tese, poderiam ter sido feitos por aqueles sujeitos dentro de condições obrigacionais, dentre elas a reposição florestal, junto ao órgão ambiental, mas não o foram – continuam sendo tratados no novo Código Florestal com a mesma pecha de ilegalidade.
Não houve norma de regularização ou transição específica para essas áreas, muito embora, é bem verdade, sejam em principio “menos importantes” do que as áreas de reserva legal, áreas de preservação permanente e áreas de uso restrito.
Desta feita, para o completo conhecimento e julgamento das causas ambientais relativas a pequenos agricultores, é imperioso que se teçam certas anotações mais específicas em alguns temas, conforme abaixo.
A) A nova previsão do Código Florestal de 2012 quanto à dispensa de autorização prévia, tampouco reposição florestal, para o desflorestamento voltado ao consumo de pequenos agricultores
O novo Código Florestal inovou em relação à revogada Lei n. 4.771/65 ao incluir um capítulo dedicado à agricultura familiar, cujo art. 56, §5º, do novel Codex florestal prevê a dispensa da reposição florestal na supressão da vegetação nativa efetuada, em certos limites, dentro da pequena propriedade ou posse rural familiar (conceituada essa nos termos do art. 3º, inciso V, da Lei n. 12.651/12 e nos termos do art. 3º, da Lei n. 11.326/06).
Transcrevo os dispositivos pertinentes:
Art. 56. O licenciamento ambiental de PMFS comercial nos imóveis a que se refere o inciso V do art. 3o se beneficiará de procedimento simplificado de licenciamento ambiental.
- 1º O manejo sustentável da Reserva Legal para exploração florestal eventual, sem propósito comercial direto ou indireto, para consumo no próprio imóvel a que se refere o inciso V do art. 3o, independe de autorização dos órgãos ambientais competentes, limitada a retirada anual de material lenhoso a 2 (dois) metros cúbicos por hectare.
- 2º O manejo previsto no § 1o não poderá comprometer mais de 15% (quinze por cento) da biomassa da Reserva Legal nem ser superior a 15 (quinze) metros cúbicos de lenha para uso doméstico e uso energético, por propriedade ou posse rural, por ano.
- 3º Para os fins desta Lei, entende-se por manejo eventual, sem propósito comercial, o suprimento, para uso no próprio imóvel, de lenha ou madeira serrada destinada a benfeitorias e uso energético nas propriedades e posses rurais, em quantidade não superior ao estipulado no § 1o deste artigo.
- 4º Os limites para utilização previstos no § 1o deste artigo no caso de posse coletiva de populações tradicionais ou de agricultura familiar serão adotados por unidade familiar.
- 5º As propriedades a que se refere o inciso V do art. 3o são desobrigadas da reposição florestal se a matéria-prima florestal for utilizada para consumo próprio”.
“Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por: (…)
V – pequena propriedade ou posse rural familiar: aquela explorada mediante o trabalho pessoal do agricultor familiar e empreendedor familiar rural, incluindo os assentamentos e projetos de reforma agrária, e que atenda ao disposto no art. 3o da Lei no 11.326, de 24 de julho de 2006”;
“Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:
I – não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;
II – utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
III – tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento;
III – tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo;
IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família”.
Veja-se que, apesar do §1º, do art. 56, do Código Florestal indicar expressamente que tal benesse legal se refere à exploração sustentável da reserva legal, o §5º, do citado dispositivo, parece dar uma cláusula geral de dispensa de reposição florestal para qualquer desflorestamento efetuado pelo agricultor familiar ou empreendedor familiar rural, desde que o faça para consumo próprio e sem intuito comercial.
Em síntese, aqueles que se enquadram na condição de agricultores familiares ou empreendedores familiares rurais podem fazer, desde a vigência da Lei n. 12.651/12 (ou seja, desde 25/05/2012), uso do material lenhoso de suas propriedades ou posses rurais, independentemente de qualquer autorização ambiental (rectius: licenciamento) e reposição florestal decorrente do material extraído, desde que tal uso:
- não ultrapasse o limite anual de 02 (dois) metros cúbicos por hectare, até o máximo de 15 (quinze) metros cúbicos;
- não possua propósito comercial, servindo-se unicamente para o consumo interno;
- seja a lenha ou madeira serrada destinada à construção de benfeitorias ou ao uso energético nos respectivos imóveis rurais.
Sobre essa inovação legislativa, à vista de sua notável peculiaridade, é interessante anotar as observações doutrinárias de BESSA ANTUNES a respeito – cujas lições são encampadas por este Juízo e demonstram a ineficiência estatal na política pública da agricultura familiar e, bem assim, no correspondente trato do bem jurídico ambiental em meio a essas circunstancias – senão vejamos:
“É pouco usual que uma lei destinada à proteção das florestas e das demais formas de vegetação nativa tenha capítulo voltado para a agricultura familiar, matéria mais condizente com uma lei de política agrícola ou fundiária.
Contudo, a existência do capítulo é fruto dos inúmeros embates políticos congressuais que uniram os grandes e pequenos produtores rurais aos ocupantes de áreas consolidadas em áreas de preservação permanentes ‘urbanas’ para o estabelecimento de uma lei ‘florestal’ cuja característica mais marcante é o reconhecimento e a aceitação de fatos consumados em desfavor do meio ambiente, a transformação de decretos em lei e a pequena criatividade para estimular a conservação florestal. (…)
Sem desmerecer o desiderato de tomar as coisas mais fáceis para a propriedade familiar, fato é que as possibilidades de desvirtuamento da norma são inúmeras”.
De se perceber, portanto, que a nova lei florestal parece reconhecer a ineficiência estatal na medíocre condução, pelo Estado, da política de reforma agrária no país, cuja execução não cumpre de modo eficiente o disposto no art. 187, da CF/88 e, na mesma medida, o previsto nas Leis n. 4.504/64 (Estatuto da Terra) e 8.629/93 (que regulamenta os dispositivos constitucionais afetos à reforma agrária).
O estado de necessidade como excludente de responsabilidade ambiental quando há presunção de iminente perecimento do direito à vida
Tanto para o presente arcabouço legislativo pertinente às obrigações ambientais do agricultor familiar e equiparado, quando para o ordenamento jurídico vigente em data anterior a 25/02/2012 (data da vigência do novo Código Florestal), ainda seria possível indagar sobre a incidência de possível excludente de responsabilidade ambiental por estado de necessidade.
Sobre isso, especificamente em relação ao estado de necessidade, no campo penal, sempre houve, desde a Lei n. 9.605/98, a previsão específica de tal excludente de antijuridicidade, conforme previsto no seu art. 50-A, parágrafo único.
Diz o dispositivo:
“Art. 50-A. Desmatar, explorar economicamente ou degradar floresta, plantada ou nativa, em terras de domínio público ou devolutas, sem autorização do órgão competente.
Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa.
§1º Não é crime a conduta praticada quando necessária à subsistência imediata pessoal do agente ou de sua família”.
De se ver, contudo, que a transcrita excludente se limita à repercussão criminal do ilícito ambiental, sendo certo que, em regra, as instâncias penal, administrativa e civil são independentes entre si.
Desse modo, o reconhecimento do estado de necessidade não afasta, de imediato, a responsabilidade civil ambiental do desmatador.
No campo civil, pois, o infrator ambiental somente ficaria sujeito às regras gerais de exclusão da responsabilidade civil, ou seja, aquelas que excluem a ilicitude civil (estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de um direito e estrito cumprimento do dever legal) e aquelas que rompem o nexo de causalidade (culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou força maior).
Mas, friso, conforme visto nos tópicos anteriores, a doutrina e jurisprudência fixaram o entendimento de que incide no campo da responsabilidade civil ambiental a Teoria do Risco Integral, a qual não admite qualquer excludente.
Nada obstante, a par da impossibilidade de aferição jurisprudencial relativa a toda sorte de casos que ilustram a dinâmica ambiental brasileira, tenho que em casos pontualíssimos seria possível considerar o estado de necessidade e o fato de terceiro como excludentes da responsabilidade civil ambiental.
A exceção de entendimento restaria única e exclusivamente para a ressalva do direito à vida (no caso do estado de necessidade) e para situações extraordinárias derivadas de violência ou invasão externa (rompimento do nexo causal por invasão violenta de grileiros, madeireiros ilegais, etc).
Seria um contrassenso, a toda evidência, negar a proteção do direito à vida em detrimento do direito ambiental, muito embora esse instrumentalize aquele.
Igualmente romperia com a razoabilidade considerar a responsabilidade ambiental mantida naquelas hipóteses – não raras no cenário nacional – em que o proprietário ou posseiro regular é sumaria e violentamente desalojado de suas terras rurais e não consegue oferecer resistência pelos meios lícitos.
São ponderações, contudo, que devem ser devidamente mensuradas pelo Juízo em cada caso.
No caso do autos verifica-se que a área desmatada corresponde a 0,82 hectares, tratando-se de diminuta área de terras, em percentual teoricamente passível de conversão do solo, pertencente a uma sitiante que, em outros termos, é responsável pela exploração de pequena monta para consumo próprio.
É manifesto que se cuida de pessoa simples, que busca o sustento ou a complementação de sua renda mediante a exploração de sua pequena propriedade rural, razão pela qual entendo que o caso em apresso se trata de situação extraordinária que admiti a exclusão da responsabilidade da demandada.
III – Dispositivo
Isso posto, julgo IMPROCEDENTES os pedidos formulados, nos termos do art. 487, inciso I. do Código de Processo Civil.
Sem custas processuais e honorários advocatícios por força do art. 18 da Lei 7.347/85. Publique-se. Registre-se. Intime-se.