O “não retrocesso” é explicitado em um entendimento que de tão robusto na doutrina internacional ganhou o status e a nomenclatura de “princípio”, não teve sua égide no direito ambiental, mas sim no âmbito dos direitos sociais.
Com efeito, em suas origens, o princípio da proibição do retrocesso limitava-se à proteção dos direitos fundamentais de caráter social, evitando fossem desconstituídas conquistas já alcançadas pelo cidadão.
Nesse espectro, o princípio possui íntima relação com os direitos prestacionais, ou seja, com a categoria dos direitos que dependem de uma ação positiva por parte do Estado para se concretizarem, como o direito à educação, à saúde ou à segurança pública.
De acordo com José Joaquim Gomes Canotilho[1], um dos principais autores em língua portuguesa que se dedicam ao estudo do tema, o chamado princípio da proibição do retrocesso social pode ser sintetizado da seguinte maneira:
(…) o núcleo essencial dos direitos já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei da segurança social’, lei do subsídio de desemprego’, ‘lei do serviço de saúd’) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura a simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.
Em síntese, o princípio estabelece que não é possível a edição de uma norma que preveja um retrocesso, uma diminuição, no grau de implementação e concretização de determinados direitos fundamentais já alcançado pela lei revogada.
Ou seja, não é possível editar uma nova norma menos protetiva ao meio ambiente sem que sejam aprovadas normas ou políticas públicas, substitutivas ou compensatórias, que continuem assegurando proteção pelo menos ao núcleo essencial do direito fundamental envolvido.
Índice
Origem do princípio da vedação ao retrocesso
O princípio da proibição ou vedação ao retrocesso é fruto de uma construção doutrinária estrangeira associada à crise do Estado de bem-estar social.
A sua origem remonta à Alemanha da década de 1970, período de dificuldade econômica em que se discutiu a possibilidade de restrição e/ou supressão de benefícios sociais que até então eram assegurados aos cidadãos.
Em razão de a Lei Fundamental alemã não garantir os direitos sociais, parte da doutrina passou a defender a inconstitucionalidade da edição de normas que reduzissem o nível de concretização desses direitos por violação ao princípio da proibição do retrocesso social.
Nesse sentido, a égide da proibição do retrocesso social se deu em um período de crise do estado prestacional alemão. Era um tempo em que a sociedade (e os doutrinadores e magistrados, por consequência) preocupava-se com eventuais alterações legislativas que, motivadas pela recessão financeira instaurada à época, poderiam ter o condão de extinguir direitos sociais imprescindíveis aos cidadãos.
É muito importante expor que a preocupação dos alemães era especialmente pertinente porque a Constituição da Alemanha de 1949 (Lei Fundamental de Bonn), ainda hoje em vigor, não insculpe em seu texto direitos de ordem social assim como, por exemplo, faz a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Então, em tese, de fato estariam os legisladores germânicos constitucionalmente autorizados a introduzirem alterações legislativas que extinguissem direitos sociais, porquanto previstos e regulados por legislação ordinária infraconstitucional.
Surgimento do princípio em Portugal
Sobre o surgimento do princípio da proibição ao retrocesso social, Felipe Derbli[2], fazendo referência a escritos de Ingo Sarlet[3], leciona que:
De uma forma geral, o tema do princípio da proibição do retrocesso social na Alemanha esteve mais associado à crise do Estado-Providência, em especial no que concerne à proteção das posições jurídicas dos cidadãos em face da tensão entre a decrescente capacidade prestacional do Estado e da sociedade e o aumento da demanda por prestações sociais. (…) Cumpria investigar se, em termos constitucionais, haveria garantia de preservação dos direitos sociais prestacionais dos cidadãos, como ela se faria presente e qual seria o seu alcance.
Além da Alemanha, no século passado outros países europeus deram coro ao brocardo da proibição do retrocesso, encampando suas premissas nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial.
Em Portugal, por exemplo, o catedrático José Joaquim Gomes Canotilho despontou como um dos mais relevantes teóricos sobre o tema. Ainda no ano de 1986 leciona o mestre lusitano o seguinte:
O princípio da democracia econômica e social institucionaliza uma proibição de retrocesso social.
A ideia aqui expressa também tem sido designada como “proibição de contra-revolução social”. Com isto quer-se dizer que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação, etc.), uma vez alcançados ou conquistados, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo.
Desta forma, e independentemente do problema “fáctico” da irreversibilidade das conquistas sociais, o princípio da democracia social e económica fundamenta uma pretensão imediata dos cidadãos contra as entidades públicas sempre que o grau de realização dos seus direitos económicos e sociais for afectado em seu sentido negativo, e estabelece uma proibição de “evolução reaccionária” (Rückschrittsverbot) dirigida aos órgãos do Estado.
Esta proibição justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras das chamadas “conquistas sociais” (…)[4].
Na jurisprudência portuguesa o leading case envolvendo o princípio da proibição do retrocesso consiste no Acórdão n. 39/1984 do Tribunal Constitucional lusitano, que, por maioria, declarou a inconstitucionalidade do art. 17 do Decreto-lei n. 254/1982. O referido dispositivo havia revogado artigos da Lei n. 56/1979, que dispunha sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
O Presidente da República português, que foi quem apresentou requerimento pugnando pela declaração de inconstitucionalidade do artigo em comento, sustentava que as supressões realizadas na Lei de regência do Serviço Nacional de Saúde lusitano decorrentes do advento do art. 17 do Decreto-lei n. 254/1982 eram tamanhas que, em verdade, desmantelariam por completo o SNS. É que os artigos revogados da Lei n. 56/1979 tratavam de matérias basilares, como o financiamento das atividades do Serviço e de sua organização e funcionamento[5].
De todo modo, é de se destacar que o argumento da proibição do retrocesso não partiu do requerente da declaração de inconstitucionalidade, mas sim do Relator do Acórdão n. 39/1984, Conselheiro Vital Moreira[6]. Nesse sentido, é bastante relevante trazer à tona excertos do voto apresentado pelo Relator:
A Constituição não se bastou com estabelecer o direito à saúde. Avançou no sentido de enunciar um conjunto de tarefas estaduais destinadas a realizá-lo. À frente delas a lei fundamental colocou a “criação de um serviço nacional de saúde” (artigo 64º, nº 2)
A criação de um serviço nacional de saúde é pois instrumento – o primeiro – de realização do direito à saúde. Constitui por isso elemento integrante de um direito fundamental dos cidadãos, e uma obrigação do Estado.
(…) Quando a tarefa constitucional consiste na criação de um determinado serviço público (como acontece com o Serviço Nacional de Saúde) e ele seja efectivamente criado, então a sua existência passa a gozar de proteção constitucional, já que a sua abolição implicaria um atentado a uma garantia institucional de um direito fundamental, e, logo, um atentado ao próprio direito fundamental. A abolição do Serviço Nacional de Saúde não significa apenas repor uma situação de incumprimento, por parte do Estado, de uma concreta tarefa constitucional; uma vez que isso se traduz na revogação da execução dada a um direito fundamental, esse acto do Estado implica uma ofensa ao próprio direito fundamental.
(…) As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados. (…)
Impõe-se a conclusão: após ter emanado uma lei requerida pela Constituição para realizar um direito fundamental, é interdito ao legislador revogar essa lei, repondo o estado de coisas anterior.
A instituição, serviço ou instituto jurídico por ela criados passam a ter a sua existência constitucionalmente garantida. Uma nova lei pode vir a alterá-los ou reformá-los nos limites constitucionalmente admitidos; mas não pode vir extingui-los ou revogá-los.[7]
Ou seja, o leading case da aplicação do princípio da proibição do retrocesso em Portugal é bastante claro ao atrelar fortemente o brocardo ao texto constitucional, o que é digno de elogios[8].
Então, o que se denota de sua égide em terras lusitanas é que o princípio somente é aplicado quando a inovação legislativa (no caso, artigo 17 do Decreto-lei n. 254/1982) mais do que representar um retrocesso social, subtrai do ordenamento dispositivos concretizadores de comandos constitucionais (in casu, o comando de proteção ao direito fundamental à saúde).
Assim, o controle de constitucionalidade foi realizado estritamente com base no texto constitucional, sendo considerado que o referido artigo 17 ia de encontro ao direito fundamental à saúde previsto na Magna Carta portuguesa, porquanto o Serviço Nacional de Saúde – que seria possivelmente aniquilado com a inovação legislativa – representava, na realidade da época, condição sem a qual não teriam os lusitanos a adequada tutela ao fundamental direito à saúde.
Princípio da vedação ao retrocesso na Itália
Com efeito, outro país em que eclodiu o princípio da vedação ao retrocesso foi a Itália. Por lá, muito se destacou o constitucionalista Giorgio Balladore Pallieri.
O entendimento do teórico italiano vai ao encontro dos contornos do princípio que foram concebidos em Portugal. É tanta a consonância que as lições de Pallieri chegaram a ser transcritas no acórdão que representou o leading case do brocardo em terras portuguesas, ao qual já se fez referência.
Em sua classificação das normas constitucionais, Balladore Pallieri discorre sobre duas classes específicas que muito se assemelham ao que no Brasil se convencionou chamar de normas de eficácia contida, e normas de eficácia limitada[9].
A saber, as normas constitucionais de eficácia contida são, de acordo com Michel Temer[10], “aquelas que têm aplicabilidade imediata, integral, plena, mas que podem ter reduzido seu alcance pela atividade do legislador infraconstitucional”.
Isto é, são normas que traduzem comandos evidentes e precisos, mas que pode o legislador dar contornos à sua eficácia e aplicabilidade.
É o caso, por exemplo, do art. 5º, inciso XIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o qual dispõe que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
É que neste dispositivo há o comando de “ser livre o exercício de qualquer trabalho”, mas também se preceitua que devem ser atendidas “as devidas qualificações profissionais estabelecidas em lei”.
A título exemplificativo, menciona-se a profissão de advogado, que só pode ser exercida mediante o atendimento à exigência legal, qual seja, a aprovação no Exame de Ordem, nos termos da Lei Federal n. 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB).
Normas de eficácia limitada
Em outro espectro, normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que necessitam necessariamente da edição de outro ato normativo (lei infraconstitucional, emenda constitucional) para que seus efeitos sejam emanados de forma integral e efetiva.
O eminente José Afonso da Silva divide esta espécie de norma constitucional em dois significativos grupos: (i) as normas de princípio institutivo; e (ii) as normas de princípio programático.
Nesse sentido, “são, pois normas constitucionais de princípio institutivo aquelas através das quais o legislador constituinte traça esquemas gerais de estruturação e atribuições de órgãos, entidades ou institutos, para que o legislador ordinário os estruture em definitivo, mediante lei”[11].
De outra banda, sendo estas as que interessam ao estudo desenvolvido neste trabalho, normas programáticas são aquelas:
(…) através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.[12]
Como exemplo de norma de princípio programático na Constituição da República de 1988 pode-se citar o art. 196, o qual prescreve que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Conclusão
Em que pese a Carta Magna estabelecer o direito fundamental de todos à saúde, também prevê que sua garantia se dará por meio de políticas sociais e econômicas. Isto é, a eficácia do direito à saúde é atrelada à existência de tais políticas. Logo, configura-se o caráter programático desse dispositivo constitucional.
O jurista Balladore Pallieri, ao tratar das normas constitucionais italianas que se concebidas no Brasil seriam aquelas que chamamos de programáticas aduz que uma vez editada legislação ordinária com o condão de dar concretude e efetividade a esses tipos de normas constitucionais (de princípio programático), uma alteração legislativa que extraísse tal regramento do ordenamento jurídico seria inconstitucional.
Defende o constitucionalista italiano que, nesses casos, “uma vez dada execução à norma constitucional, o legislador ordinário não pode regressar sobre seus passos”[13]. São sob essas premissas que é concebido o princípio da proibição do retrocesso social na Itália.
Portanto, é digno de nota que, assim como em Portugal, também em terras italianas o brocardo da vedação ao retrocesso foi assentado em estreita relação com o texto constitucional, podendo então ser evocado apenas se a alteração ou modificação legislativa tiver suprimido ato normativo que dava efetividade a comando constitucional de cunho programático.
Em uma próxima oportunidade, continuaremos abordando o princípio da proibição ou vedação ao retrocesso aqui no nosso site. Por isso, salve o nosso site no seu navegador como “favorito” para acompanhar conteúdos exclusivos de Direito Ambiental.
[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 320-321.
[2] DERBLI, Felipe. O Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 139-140.
[3] SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade. In Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, vol. V – Direito Constitucional: 131-150. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2000, p. 132.
[4] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4ª edição. Coimbra: Almedina, 1986, p. 393.
[5]DERBLI, Felipe. O Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 146.
[6]DERBLI, Felipe. O Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 147.
[7] PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Acórdão n. 39/84. Acórdãos do Tribunal Constitucional. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 3. volume, 1984, p. 95-131.
[8] Afirmar que o controle de constitucionalidade deve ser feito estritamente com base em normas com status constitucional parece – e é – de todo elementar. Porém, conforme se demonstra em especial no Capítulo 2 deste trabalho, há julgados que tratam de matéria ambiental no Brasil que, em análise pragmática, realizaram controle de constitucionalidade com fulcro tão somente no princípio da proibição do retrocesso, prescindindo o devido cotejo com o texto constitucional.
[9] DERBLI, Felipe. O Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 163.
[10] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 14. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 24.
[11] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 126.
[12] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 138.
[13] PALLIERI, Giorgio Pallieri. Diritto Constituzionale. 7. edição. Milanoo: Dott. A. Giuffrè – Editore, 1963, p. 332. Tradução livre do italiano (uma volta data esecuzione alla norma constituzionale, il legislatore ordinario non può ritornare sui suoi passi).