O Juízo da Vara Federal do Acre/TRF-1 agiu corretamente ao acolher os embargos à execução fiscal ajuizados para cobrar a multa ambiental após o término do processo administrativo que concluiu (equivocadamente) que o suposto desmatamento praticado pelo executado/autuado configuraria a infração ambiental do artigo 50 do Decreto 6.514/08, in verbis:
Art. 50. Destruir ou danificar florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, objeto de especial preservação, sem autorização ou licença da autoridade ambiental competente: Multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por hectare ou fração.
O Juízo Federal andou bem ao extinguir a execução, porque o dispositivo é claro como a luz solar que a floresta ou outro tipo de vegetação protegida é aquela objeto de especial preservação, de modo que o auto de infração padecia de vício em razão de o bioma amazônico não ser objeto de especial preservação e o agente de fiscalização não ter declinado na autuação qual seria a floresta ou vegetação objeto de especial preservação.
Vale lembrar que somente a Floresta Mata Atlântica é objeto de especial preservação, porquanto protegida pela Lei 11.428/08, o que significa que o auto de infração ambiental objeto por destruir ou danificar Floresta Amazônica, sem especificar qual seria a vegetação protegida, estava eivado de vício e foi correto o entendimento do Juízo ao declarar tal ato nulo.
Aliás, como já mencionamos aqui no site várias vezes, o § 2º do artigo 50 do Decreto 6.514/08 é cristalino que somente “são consideradas de especial preservação as florestas e demais formas de vegetação nativa que tenham regime jurídico próprio e especial de conservação ou preservação definido pela legislação.”
E que nem cogite que o Bioma Amazônia é de especial proteção pelo simples fato de serem patrimônios nacionais para efeito do §4º do artigo 225 da Constituição Federal, porque tal disposição significa apenas proclamação política, como ensina José Afonso da Silva[1] destaca:
“Declara a Constituição que os complexos ecossistemas referidos no seu artigo 225, § 4.º, são patrimônio nacional. Isso não significa transferir para a União o domínio sobre as áreas particulares, estaduais e municipais situadas nas regiões mencionadas. Na verdade, o significado primeiro e político da declaração constitucional de que aqueles ecossistemas florestais constituem patrimônio nacional está em que não se admite qualquer forma de internacionalização da Amazônia ou de qualquer outra área.”
Logo, não se pode confundir “patrimônio nacional” com “preservação especial” a ensejar a lavratura de autos de infração com base no artigo 50 do Decreto 6.514/08, porquanto tal locução significa mera proclamação política, no sentido de ser impossível sua internacionalização, cuja utilização do Bioma Amazônia far-se-á por meio de regime jurídico próprio, que o próprio §2º do artigo 50 do Decreto 6.514/08 tratou de definir.
Assim, corretíssima a sentença que acolheu a exceção de pré-executividade e extinguiu a execução fiscal que cobrava multa ambiental decorrente do artigo 50 do Decreto 6.514/08, porque havia vício no auto de infração ambiental em razão da conduta de destruir ou danificar Floresta do Bioma Amazônia não é objeto de especial preservação.
Leia a sentença que extinguiu a execução fiscal de multa ambiental
Da nulidade no procedimento administrativo
O Embargante sustenta, em resumo, que o procedimento administrativo padece de nulidade, porque não lhe foram assegurados o contraditório e a ampla defesa no momento da produção de provas.
Diz isso porque a autoridade administrativa negou o seu pedido de prova pericial, através da qual pretendia fosse feito um estudo técnico para fins de apurar a gravidade e a extensão do dano causado para a saúde pública, reclamava também a emissão de um “relatório minucioso do período necessário para que a área tivesse plena regeneração, indicando, ainda, as espécies nativas mais apropriadas para que isso ocorra, já que este fator — extensão do dano, é critério objetivo utilizado como parâmetro para a fixação da multa”.
Sustentou que pela negativa de produção probatória foram escanteados o contraditório efetivo e a ampla defesa.
Sem razão, porquanto o devido processo legal administrativo também comporta espaço para a negativa de produção de provas impertinentes, desnecessárias ou protelatórias, conforme já determina o art. 120, do Decreto n.º 6.514/08, verbis:
Art. 120. As provas ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias propostas pelo autuado serão recusadas por meio de decisão fundamentada.
A produção de provas não é um direito fundamental absoluto, cabendo restrições, desde que fundamentadas e amparadas em termos legais, como no caso em espécie. Inclusive, o pedido já foi indeferido em juízo (ID n.º 646202962).
Da pena de multa
A respeito dos pedidos de redução ou readequação da pena de multa, em virtude da condição de hipossuficiente do Embargante e da incorreta dosimetria da reprimenda, deixo de analisar este ponto, porque o tópico seguinte já o contempla, em absoluto.
Da Floresta Amazônica e a especial preservação. Ausência de legislação. Anulação da multa
Observa-se, da análise das cópias dos documentos administrativos juntados, que o motivo da autuação foi o Exequente ter destruído 18,04 ha de vegetação nativa, considerada objeto de especial preservação, sem autorização do órgão ambiental.
Entretanto, convém tecer alguns comentários sobre o critério utilizado, levando em conta que o Órgão de proteção ambiental se refere à área desmatada como sendo de especial proteção, porém sem identificar a legislação que a considera como tal.
Tal qual em diversos outros casos semelhantes que chegam a este Juízo, relativos às multas por infrações ambientais ocorridas na região amazônica, o IBAMA cita artigo da Constituição Federal que trata das áreas consideradas Patrimônio Nacional, mas que submete sua utilização à edição de lei regulamentadora (art. 225, § 4º):
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (…)
- 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
Ocorre que, o IBAMA tipificou a autuação no art. 50 do Decreto 6.514/08, o qual contempla a conduta de “Destruir ou danificar florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, objeto de especial preservação, sem autorização ou licença da autoridade ambiental competente”, não tendo o IBAMA, quando da lavratura do auto de infração, apontado qualquer elemento que indicasse que a flora desmatada pelo Embargante se enquadrasse nesse conceito legal.
A despeito da previsão constitucional de ser patrimônio nacional, a própria Carta Magna submete a utilização das referidas áreas à edição de lei específica regulamentadora – consoante transcrito alhures, ou seja, a utilização da floresta amazônica deve ser regulada por lei, entendendo-se não ser possível infração ambiental (ou qualquer outra) sem norma anterior que a defina.
No ordenamento jurídico brasileiro há um conjunto de normas que regulamentam o preceito constitucional, a exemplo da Lei n. 11.428/06 (Lei da Mata Atlântica) e da Lei n. 12.651/12 (Código Florestal), que estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, de áreas de preservação permanente (APPs) e da reserva legal.
Entretanto, apesar da previsão constitucional de proteção especial, não houve, até o momento, edição de norma específica para disciplinamento da Floresta Amazônica como área de proteção especial – diferente, como visto acima, do bioma Mata Atlântica. Fica claro que há uma definição do que seja especial preservação: regime jurídico próprio e especial definido em legislação.
Assim, questiona-se, quais áreas da Amazônia seriam objeto de especial preservação? As áreas de preservação permanente e as de reserva legal, bem como as unidades de conservação criadas na forma da legislação, pois só essas têm regime jurídico próprio e especial.
Não há regime jurídico especial para as áreas particulares situadas na Amazônia, onde é permitido o uso alternativo do solo.
Partindo dessa análise, constatamos que nem todo o território abrangido pela Floresta Amazônica é área de proteção especial, por falta de legislação específica.
Deverão ser identificadas áreas de preservação permanente e reserva legal – que no caso da Amazônia Legal poderá variar entre 20 e 80%, conforme art. 12, da Lei n. 12.651/12. Se fosse adotado entendimento diverso, nenhuma área da Amazônia Legal poderia ser desmatada ou cultivada.
Dessa forma, para aferição de infração ambiental em área situada na Amazônia Legal, mister se faz a delimitação dessas áreas (preservação permanente e reserva legal) dentro da área total do imóvel, para que, então, seja aplicada a legislação pertinente.
Nesse sentido, a legislação aplicada é a genérica, no tocante às vedações quanto às áreas de preservação permanente e reserva legal. De fato, o regime aplicável às APPs da Amazônia é o mesmo das demais matas comuns do resto do país.
O cuidado que se deve ter com a reserva legal na Amazônia é o mesmo cuidado que se deve ter com qualquer reserva legal das propriedades localizadas em outras regiões.
Não há regime mais ou menos gravoso só por ser floresta amazônica. Igualmente, nas áreas de uso alternativo do solo em imóveis da Amazônia não há diferença de regime jurídico em relação às áreas de mesmo uso em relação aos imóveis fora daquela região. Isso é a prova de que não há regime jurídico próprio e especial.
Pretende o legislador, por meio da lei de crimes Ambientais e seus regulamentos, uma punição mais severa de quem danifica floresta objeto de especial preservação.
Tanto o faz que comina multa para tal infração em valor muito superior àquela cominada para destruição de matas que não são objeto de especial proteção.
Relembre que existe, sim, infração para punir aquele que danifica floresta sem essa elementar “especial proteção”. Porém, comina pena bem menor, tendo em vista a menor reprovação da conduta.
A doutrina segue o mesmo entendimento. Paulo Afonso Leme Machado cita como exemplos de espaços territoriais especialmente protegidos as unidades de conservação, as áreas de preservação permanente e as reservas legais florestais, asseverando que são criadas por meio de resolução, decreto, lei ou portaria. Esse é também o entendimento de Edis Milaré.
Da mesma forma, José Afonso da Silva afirma que a transformação dos biomas citados em patrimônio nacional visa impedir qualquer forma de internacionalização da Amazônia ou qualquer outra área.
Percebe-se, assim, não haver cabimento na interpretação dada pelo IBAMA de qualquer área da Amazônia seja objeto de especial proteção.
Por falta de norma que regulamente a Amazônia como sendo de especial proteção, serão protegidos de forma específica só os espaços assim designados em lei, como no caso da reserva legal, da área de preservação permanente ou unidades de conservação. E isso tem um fundamento específico: trata-se de direito sancionador. E tal ramo deve se pautar pela legalidade estrita. Vejamos.
Do direito sancionador. Respeito à legalidade estrita
O poder sancionador da Administração Pública é consequência do princípio da supremacia do interesse público – inerente e essencial a qualquer convívio social. “Deriva do princípio da submissão do Poder Público à ordem jurídica a tipicidade dos atos estatais”.
“O excepcional poder sancionador da Administração Pública, por representar uma exceção ao monopólio jurisdicional do Judiciário, somente pode ser exercido em situações peculiares e dentro dos estritos limites da legalidade formal, não havendo, nessa seara específica do Direito Administrativo (Direito Sancionador), a possibilidade de atuação administrativa discricionária, na qual vigora a avaliação de oportunidade, conveniência e motivação, pelo próprio agente público, quanto à emissão e ao conteúdo do ato” (STJ, AgRg no REsp 1287739. Rel. Min. Francisco Falcão. Julgado em 31.05.2012).
“Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. O que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção”.
Diante disso, observa-se que as elementares da infração administrativa demandam análise estrita.
O art. 37 do Decreto 3.179/99 traz hipótese de norma em branco – à semelhança das leis penais em branco. Sendo assim, demandaria uma complementação, que não veio.
Alguns argumentam que a “especial proteção” da Floresta Amazônica decorreria expressamente do §4º do art. 225 da CF. Todavia, a legislação exigida deve ser específica, tratando da regulamentação do bioma – à semelhança da Mata Atlântica.
O que a CF faz é apenas estabelecer alguns biomas como “patrimônio nacional”; a partir dessa definição, o legislador tem a faculdade de passar a tratar do tema com suas especificidades. E desse dever ainda não se desincumbiu nosso Congresso Nacional.
Em suma, em matéria de direito sancionador, deve-se observar a estrita legalidade. Não se vislumbra, com essa premissa em mente, a infração do art. 50 do Decreto 6.514/08. Poderia supor outras infrações do Decreto.
Ocorre que o juiz não pode readequar a conduta e enquadrá-la em outra infração. Não ocorre, aqui, hipótese semelhante ao que dispõe o art. 383 do CPP. Vejamos.
Impossibilidade de reenquadrar a conduta. Necessidade de anular a multa
A administração agiu dentro de seu poder sancionador e aplicou multa ao Exequente. Diante disso, enquadrou uma conduta em uma determinada infração administrativa e dosou a sanção.
Como visto acima, não subsiste a infração acusada ao Exequente, por motivo de ilegalidade. Isso é dado ao Judiciário fazer: controlar o ato administrativo de sanção. Assim não fosse, estar-se-ia deixando de aplicar a inafastabilidade de jurisdição (art. 5º, inc. XXXV, CF).
Ora, diante da legalidade estrita que pauta o direito administrativo sancionador, a Administração tem pouca margem de atuação, devendo respeito à legalidade. E o controle de legalidade de ato administrativo nada tem a ver com se imiscuir no mérito do ato.
Com isso em mente – controle de legalidade e mérito do ato –, não cabe, obviamente, ao Judiciário, readequar a conduta em outro tipo de infração.
Dessa maneira, não resta alternativa a não ser anular a infração acusada e a sanção aplicada. Somente a Administração Pública pode aplicar sanções administrativas.
Da inocorrência de decisão extra petita
Por fim, sustenta o IBAMA que “não há qualquer questionamento na petição inicial acerca do enquadramento infracional, de modo que anulação da autuação cuja multa inadimplida encontra-se em
processo de execução fiscal por suposto vício de enquadramento teria evidente natureza extra petita, encontrando óbice no art. 492 do CPC”. Sem razão.
Decisão extra petita é aquela que fornece providência totalmente fora do que foi apresentado pelas partes, em absoluta dissonância com os princípios da demanda, do contraditório, da ampla defesa, e, em última medida, do substantive due process of law.
A matéria referente à nulidade do auto de infração, por indevido enquadramento legal, é de ordem pública, cognoscível de ofício pelo magistrado, eis que se ausente a base legal da infração administrativa, padece de clarividente vício todo o processo administrativo.
Conquanto seja matéria que possa conhecer de ofício (ausência de fundamentação legal no procedimento administrativo), foi facultado às partes a oportunidade de se manifestar sobre o tema, em fiel respeito aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da vedação à decisão surpresa, nos seguintes termos:
Tendo em vista que a autuação foi fundamentada no art. 50 do Decreto 6.514/2008, com descrição de desmatamento de floresta amazônica, objeto de especial preservação (ID 285894388 – Pág. 34), faculto às partes a manifestação sobre a referida capitulação legal, no prazo de 15 (quinze) dias, em atenção ao disposto no art. 10 do CPC.
Ademais, “diante dos fundamentos da causa, o magistrado pode motivar sua decisão em fundamento legal diverso do indicado pela parte, considerando a premissa iura novit curia, sem que se configure julgamento extra petita” (STJ. AgInt no AREsp 1.472.974/RS. Rel. Min. Moura Ribeiro. Terceira Turma. DJe 19/02/2020).
Assim, tenho que a nulidade da autuação da infração, pela incorreta tipificação, é fato suficiente para influenciar no deslinde da causa e, por isso, as partes foram instadas a se manifestarem antes da decisão, o que afasta a alegação de julgamento extra petita.
Dispositivo
Ante o exposto, ACOLHO os embargos à execução opostos para declarar a nulidade do auto de infração, bem como os atos dele provenientes, conforme a fundamentação já apresentada supra, sem prejuízo de nova autuação em tipificação correta, observado o prazo prescricional.
Resolvo o mérito, nos termos do art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Determino o cancelamento da penhora do veículo do Embargante. Expeça- se carta precatória competente para tanto.
Sem custas (art. 4º, inc. I, da Lei nº 9.289/96).
Condeno o IBAMA em honorários, desde já fixados em 10% do valor da causa.
Traslade-se cópia desta sentença para a execução fiscal de e a tornem conclusa para sentença.
Sentença não sujeita à remessa necessária, na forma do art. 496, § 3º, inc. I, do CPC. Intimem-se.
[1] Da Silva, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 844.