Ação declaratória de nulidade do ato administrativo com pedido de tutela antecedente liminar para suspender os efeitos do auto de infração ambiental aplicado por corte de eucaliptos.
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA
Autora, pessoa jurídica de direito privado, qualificação completa, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, propor a presente AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL COM PEDIDO DE TUTELA ANTECEDENTE LIMINAR em face da PREFEITURA, através da SECRETARIA MUNICIPAL DO MEIO AMBIENTE, com fundamento nas razões de fato e de direito a seguir expostas.
1. DOS FATOS
A Autora é empresa familiar voltada à produção e comercialização de produtos que tem por base a celulose, e há décadas plantou eucaliptos em sua propriedade. A área não constitui área de reserva legal, tampouco área de preservação permanente. Há alguns anos, os vizinhos começaram a transparecer séria preocupação relativa à estabilidade de parte dos referidos eucaliptos.
Assim, munida da melhor intenção, a Autora formalizou perante a prefeitura uma solicitação de autorização para suprimir os exemplares arbóreos que representavam maior perigo.
Como consequência deste pedido, a prefeitura demandou da Autora a apresentação de fotografias do local em que os eucaliptos se encontravam, o que foi devidamente cumprido. Entretanto, uma vez apresentados os documentos, o órgão permaneceu inerte. Inúmeras foram as tentativas da empresa de contatar o órgão e tentar pôr um fim à questão. Todas, contudo, infrutíferas.
O passar dos meses agravou de tal forma a situação, que os próprios vizinhos da Autora passaram a demandar a adoção de uma medida pela prefeitura, utilizando- se dos mais diversos meios, telefonemas e e-mails. Mais uma vez, de nada adiantaram.
Como já se previa, os eucaliptos foram atingidos por uma tempestade, causando grande prejuízo local. Diante do acontecido e, em virtude da patente omissão do Poder Público a respeito, a empresa decidiu por promover o corte dos exemplares o quanto antes possível, visando a evitar o dano maior que estava na iminência de acontecer.
Todavia, para sua completa surpresa, a Autora recebeu o Documento de Arrecadação do Município, para que realizasse o pagamento de multa ambiental antes mesmo de receber o próprio Auto de Infração Ambiental. Ante a patente abusividade manifestada pelo documento, a Autora houve por bem opor-lhe defesa administrativa, perante a Secretaria Municipal do Meio Ambiente.
A despeito de todo o esforço da Autora em tentar demonstrar serem evidentemente nulos os referidos Autos, a defesa foi rejeitada pela Prefeitura. Da referida decisão foi interposto recurso administrativo pela Autora.
Todavia, apesar de o apelo ter sido conhecido, o Secretário Municipal do Meio Ambiente negou-lhe provimento, esgotando-se, então, a instância administrativa.
Por esse motivo, socorre-se a Autora do Poder Judiciário, a fim de ter o Auto de Infração Ambiental e o respectivo Auto de Multa Ambiental para que sejam declarados nulos, dados os graves vícios que os acometem.
2. DA NULIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO AMBIENTAL DA PREFEITURA
O art. 2º, parágrafo único, IV, da Lei 9.784/99 estabelece que nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”.
Isso significa, segundo CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, que: “a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte de cidadãos.”
É dever da administração pública agir com boa-fé, não podendo valer-se de atos temerários ou contraditórios frente aos administrados. Tal dever tem a finalidade de assegurar a “impossibilidade de o Estado violar a confiança que a própria presunção de legitimidade dos atos administrativos traz, agindo contra factum proprium[1].”
Para que se caracterize o venire contra factum proprium basta a conjugação dos seguintes requisitos, segundo a lição de ANDERSON SCHREIBER: (i) um factum proprium, isto é, uma conduta inicial; (ii) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; (iii) um comportamento contraditório com este sentido objetivo (e, por isto mesmo, violador da confiança); e, finalmente, (iv) um dano ou, no mínimo, um potencial dano a partir da contradição.”[2]
Diante de tudo o que foi exposto, fica evidente o comportamento torpe da Ré. Quedou-se silente por anos e anos a respeito do pedido da Autora para supressão das árvores que colocavam em risco a integridade das pessoas e do entorno e, após uma conduta de estado de necessidade da Autora, a Ré, em patente contradição, vem aplicar multa à Autora, sob o argumento de que teria cometido do ato de supressão não autorizada da flora.
2.1. INÉRCIA DO ÓRGÃO AMBIENTAL EM CONCEDER AUTORIZAÇÃO PARA CORTE
É dizer, a inércia da Ré por anos e anos não se coadunam com a postura de instaurar procedimento sancionador contra a Autora em razão do ato de necessidade levado a efeito pela Autora. Para tornar válida e de boa-fé a sua atitude, o que é pressuposto de validade do ato, a Ré teria que ter feito tudo o que estava a seu alcance para cooperar e propiciar o célere atendimento do pedido da Autora. Não foi isso que ocorreu!
Relembre-se: (i) a Ré não compareceu ao estabelecimento da Autora para analisar sobre a necessidade de supressão das árvores; (ii) sua inércia contribuiu para que terceiros se mobilizassem perante a Autora para que efetuasse a supressão das árvores; (iii) aplicou multa à Autora sem lhe possibilitar a ampla defesa e o contraditório, eis que a aplicação do auto de infração foi na mesa data.
A conduta descrita no item (iii) fez com que a multa originalmente aplicada chegasse a elevado valor, eis que a Ré aplicou juros e correção monetária durante todo o período em que se discutia na esfera administrativa. De plano se observa ímpeto absolutamente divorciado do dever de boa- fé da Ré na aplicação da multa e posteriormente a lavratura do auto de infração que redundou na prolação da decisão administrativa sub judice.
A má-fé da Ré evidencia o desvio de finalidade do próprio procedimento administrativo, provavelmente instaurado para acobertar sua indevida ingerência na aplicação antecedente da multa, o que torna o ato viciado em seu nascedouro.
Portanto, o comportamento contraditório da Ré vicia na origem o procedimento administrativo instaurado contra a Autora, pelo que se extrai sua manifesta nulidade e, consequentemente, a nulidade da decisão administrativa dali tirada.
2.2. DA INEXISTÊNCIA DE MOTIVAÇÃO E DESVIO DE FINALIDADE
Por definição legal, o ato administrativo é nulo por falta de motivação, quando “a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido”.
O dever de motivação dos atos administrativos, especificamente àqueles que decidam recursos administrativos, está estampado no art. 50, I, e V, da Lei 9.784/99, na qual se determina, ainda, no § 3º do mesmo art. 50, que a motivação “deve ser explícita, clara e congruente”.
Por sua vez, o desvio de finalidade do ato administrativo, que também redunda na sua nulidade, “se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente.[3] “
A conduta atribuída à Autora nas premissas da decisão administrativa lançada pela Ré é inexistente, falsa e incongruente. Depreende-se do robusto acervo documental que instrui a presente exordial, que a inércia da Ré deu causa ao estado de necessidade para supressão das árvores. A Ré valeu-se da própria torpeza ao querer imputar culpa exclusiva à Autora pela supressão das árvores.
Todos esses elementos demonstram claramente a inconsistência das premissas nas quais assentadas a decisão administrativa, caracterizando a nulidade do ato administrativo por falta de motivação. Demonstram, também, que a decisão administrativa sub judice é eivada de patente desvio de finalidade, levada a cabo para acobertar sua indevida inércia quanto ao pedido formulado pela Autora.
2.2. NULIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO POR ESTADO DE NECESSIDADE
Consoante mencionado acima, a supressão das árvores se revelou de extrema urgência para a empresa. O que antes representava à Autora um temor, com a ocorrência da forte tempestade relatada, acabou convertendo-se em verdadeiro risco de dano iminente, a ser suportado não apenas por ela, mas por todos aqueles ao redor de sua propriedade.
Tamanho era o risco, que os próprios vizinhos da empresa se mobilizaram em prol de sua própria segurança, pressionando a Autora para que adotasse logo uma medida no sentido do corte dos eucaliptos. E com razão: mantendo-se o quadro de instabilidade climática no Município, a queda de um ou mais exemplares era certa.
Assim, motivada pela premência de se salvaguardar a integridade física e o patrimônio alheios, bem como diante da inércia da Ré em atender ao pedido da Autora para efetuar o corte das árvores, procedeu a Autora, ao corte das árvores. Agiu, pois, em incontestável estado de necessidade (art. 24 do Código Penal).
Adianta-se, desde logo, não haver de se falar em inaplicabilidade do instituto do estado de necessidade ao presente caso por tratar esse de hipótese de sanção por infração de natureza administrativa. Bem elucida Carlos Roberto Gonçalves:
“Não se confundem estado de perigo e estado de necessidade, malgrado ambos tenham por fundamento jurídico a situação de necessidade. Essa circunstância não os iguala, visto que a necessidade como título constitutivo de direito aparece em inúmeras situações e diversos institutos.
O estado de necessidade é mais amplo, abrangendo, tanto quanto no direito penal, a exclusão da responsabilidade por danos, como prevê o art. 188, II, do Código Civil, que se refere à destruição de coisa alheia ou lesão à pessoa, envolvendo questões relacionadas com todo o direito público e privado, como a demolição de prédios, alijamento de carga durante a tempestade etc”.[4]
Ainda que explanada em seus pormenores a situação de urgência à Ré, em sede de decisão do recurso administrativo, a Prefeitura consignou ser prova da não configuração do estado de necessidade a contratação de empresa para a remoção dos eucaliptos em questão.
2.3. CORTE DE EUCALIPTOS ERA EMERGENCIAL
Sob a ótica da Ré, a aludida contratação exigiu da Autora tempo e esforços não condizentes com a premência da situação caracterizadora do aludido instituto. Afirma que, ao contrário, houvesse emergência relativa à queda dos exemplares, caberia à Autora contatar o Corpo de Bombeiros e solicitar-lhe o auxílio necessário.
Desprovido de omnisciência e omnipresença, não há como se esperar do Poder Público o conhecimento da totalidade de situações de emergência que o cercam. Tampouco se espera que tenha a capacidade de lidar simultaneamente com todas as ocorrências em virtude das quais é acionado.
Nem por isso, contudo, resta aos particulares apenas a resignação diante do dano iminente. Conforme já narrado, em meio a esse cenário de forte tempestade, parte de uma árvore tangenciou criança que transitava pela via ao lado, por pouco não comprometendo sua integridade física.
Diante de tal fato, era absolutamente inexigível que a Autora se sujeitasse à disponibilidade da Prefeitura para realizar o corte dos eucaliptos – tendo-se em vista, ademais, que a Ré se quedou absolutamente inerte em relação ao pedido formulado pela Autora perante a prefeitura, viu-se a Autora autorizada – pela premência – a agir.
Ressalte-se que o pedido formulado pela Autora à Ré para o corte das árvores foi em, e o corte das árvores levado a efeito pela Autora foi somente em, dado o incidente ocorrido com a criança e a inércia da Ré.
O que é mais curioso é que a Autora formulou o pedido e a Ré nunca respondeu ou diligenciou até o endereço da Autora para verificar a necessidade do corte das árvores e somente quando a Autora efetuou o corte das árvores, a Ré efetuou a diligência pouco tempo depois para aplicar a multa à Autora.
2.4. CORTE DE EUCALIPTOS EVITOU MAIORES DANOS
Assim, não há que se falar no afastamento da figura do estado de necessidade pelo simples fato de a Autora ter intentado obter a devida autorização da prefeitura para o corte das árvores, demonstrando conhecimento da ilicitude do ato de supressão não autorizada da flora.
Parece haver, neste ponto, uma confusão quanto aos requisitos do estado de necessidade. Para que se configure o instituto, não se faz necessário o desconhecimento pelo agente da ilicitude que recairia sobre o ato caso fosse praticado em circunstâncias normais – ou seja, caso não houvesse necessidade de sua prática.
Ora, o estado de necessidade se caracteriza justamente pelo sacrifício de um bem em função da proteção de direito próprio ou alheio que se encontre sob ameaça. Assim sendo, difícil é cogitar de situação em que o agente desconheça o fato de que o sacrifício só não se contamina de ilicitude por inserir-se em contexto de incontornável necessidade.
Aliás, o sacrifício do bem, per se, já deixa entrever a excepcionalidade e a premência de se praticar conduta usualmente tida por ilícita pelo ordenamento jurídico. Fosse diferente, sequer haveria de se falar em sacrifício de um bem.
A Ré parece embaralhar, portanto, os institutos penais do estado de necessidade (art. 24, CP)¸ excludente de ilicitude do ato, e do erro de proibição inevitável (art. 21, caput, primeira parte, CP), excludente da culpabilidade do agente.
A distinção importa, adicionalmente, pelo fato de alegar a Prefeitura, em sede administrativa, tratar-se de hipótese de responsabilização objetiva do agente que pratica a conduta, pouco importando, em seu entendimento, pois, a configuração ou não configuração do estado de necessidade.
O argumento não merece prosperar: não se tendo alegado em ocasião alguma o erro de proibição inevitável, a discussão acaba por cingir-se ao âmbito da ilicitude da conduta praticada, alheando-se totalmente, portanto, à verificação da existência de culpa do agente.
Com efeito, ao lado do nexo causal e do dano, a ilicitude do ato é requisito indispensável à caracterização de ambas as espécies de responsabilização civil – subjetiva e objetiva.
Uma vez inexistente a ilicitude a revestir o ato praticado, deixa de ser possível a responsabilização do agente, pois em completa conformidade com o ordenamento a sua conduta. Logo, dada a concretização do estado de necessidade, não há como se sustentar a responsabilização civil objetiva da Autora.
3. DA TUTELA DE URGÊNCIA ANTECIPADA
Conforme mencionado acima, o Departamento de Controle da Qualidade Ambiental da Ré negou provimento à defesa oposta pela Autora contra o Auto de Multa Ambiental. Igual destino recebeu o recurso administrativo interposto contra a decisão.
Ocorre que, esgotada a via administrativa, a Prefeitura impõe à Autora atualmente o pagamento da totalidade do valor atribuído à multa, por meio de uma única e vultosa prestação.