EXCELENTÍSSIMO DESEMBARGADOR FEDERAL DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL
IMPETRANTE, vem, perante V. Ex., com fundamento no art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, e art. 647 e 648, inciso VII, do Código de Processo Penal, impetrar ordem de HABEAS CORPUS, contra ato de recebimento da denúncia do Exmo. Juiz Federal da Vara Federal, em favor do PACIENTE, pelos motivos a seguir expostos:
1. DA AÇÃO PENAL EM CURSO
O Ministério Público Federal denunciou o Paciente como incurso nas penas previstas no art. 55, caput, da Lei 9.605/98, e art. 2º, caput, e § 1º, da Lei 8.176/91, em concurso formal, art. 70, do Código Penal, por suposta extração de matéria-prima pertencente à União, sem autorização legal do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) ou dos órgãos ambientais, e usurpando com isso o patrimônio do ente federativo.
A denúncia foi recebida e a resposta à acusação apresentada, sem, contudo, enfrentar a tese defensiva de incompetência da Justiça Federal, pelo que o Impetrante interpôs embargos de declaração.
Neste sentido, sobreveio decisão conhecendo dos embargos e julgando-lhes improcedentes, em sucinta fundamentação. Eis que se insurge o paciente.
2. DA ADMISSIBILIDADE DA AÇÃO CONSTITUCIONAL DE HABEAS CORPUS
A admissibilidade da ação de habeas corpus tem por lastro texto expresso da Carta Fundamental que preconiza o seguinte:
Art.5º. […] LXVIII – conceder-se-á “habeas-corpus” sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; (destacou-se)
Atento à técnica processual, cabe esclarecer que o paciente não poderia manejar Recurso de Apelação ou Recurso em Sentido Estrito no caso em tela, uma vez que este não se amolda a nenhuma das hipóteses previstas nos incisos I, II, III do art. 593 do CPP e, tampouco, naquelas taxativamente elencadas no art. 581 do CPP, restando, tão somente, a ação constitucional de habeas corpus.
A Defesa questionou fundamentadamente a competência da Justiça Federal em sua resposta à acusação, tese desenvolvida ao longo de quase quatorze laudas, tentando – pelo visto sem êxito – sensibilizar o Juízo a voltar sua prestimosa atenção ao sistema draconiano[1] de persecução criminal que por aqui se instalou.
Sinalizamos que deveria incidir ao fato apenas a acusação quanto ao crime do art. 55 da Lei 9.605/1998, sem atração da competência Federal, porque, além de não demonstrado o excepcional interesse da União, trata-se de bem de baixo valor (areia), NÃO compreendido pela esfera de proteção destinada a recursos minerais (Código de Minas) ou energéticos (ao Sistema Nacional de Abastecimento de Combustíveis), explorado em local não afeto à União (rio estadual) de modo rudimentar (por meio de pás), em quantidade ínfima (seis metros cúbicos), sem em risco aos sistemas de abastecimento e estoque de minerais.
Abrimos tópico sobre a extração rudimentar de areia em rio estadual, destacando que, apesar do refratário posicionamento do TRF4, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que se não for demonstrado excepcional lesão a interesse da União, compete à Justiça estadual o julgamento do crime do art. 55 da Lei 9.605/1998, consubstanciado em extração rudimentar de areia em leito de rio (AgRg no CC 151.896/RJ).
Na ocasião, o STJ não visualizou lesão a bens, serviços ou interesses da União a atrair a competência da Justiça Federal em caso de extração de areia realizada em área privada situada às margens de rio estadual (AgRg no CC 153.183/RJ).
O Impetrante discorreu sobre a localização da sub-bacia hidrográfica, demonstrando ao Juízo (inclusive graficamente) que ele corre integralmente em solo nacional, dentro dos limites territoriais do Estado.
Na sequência, abriu-se tópico específico sobre a não demonstração de excepcional lesão a bens ou interesse da União, passando por questões como os bens públicos sob titularidade do ente federal, a ausência de potencial energético, o baixo potencial econômico da areia e a sua não inclusão como objeto de proteção e regulação do Código de Minas.
Por fim, abriu-se um tópico sobre a ausência de indícios da ocorrência de crime previsto na Lei 8.176/1991 a justificar o processamento perante a Justiça Federal, destacando a mens legis da referida norma, nascida para tutelar temporariamente as fontes nacionais de combustíveis carburantes que estariam ameaçadas pela crise energética decorrente das guerras do Golfo Pérsico.
Não obstante a defesa técnica tenha “gritado a plenos pulmões” acerca de questões tão relevantes, sobreveio apenas o silêncio jurisdicional sobre o tema, caracterizando uma omissão eloquente e em evidente desfavor do acusado.
A decisão que fora embargada, lamentavelmente, é mera reprodução de decisões anteriores, a qual simplesmente ignorou toda a argumentação tecida sobre a incompetência da JF para o presente feito.
Face a tantas argumentações acerca da ausência de interesse federal no feito, em sede de embargos de declaração, a decisão aclamatória limitou-se a negar a procedência das alegações. Em lacônica fundamentação, novamente, decretou haver interesse da União por se tratar da extração/exploração de minério (areia), consoante o art. 20, inciso IX, da Constituição Federal.
Dessa maneira, diante da falta de enfrentamento das teses erigidas, a Defesa não vê outra solução a não ser valer-se do presente remédio heróico, como única solução jurídica capaz de socorrer o paciente da nefasta violação ao seu direito a uma decisão jurídica devidamente fundamentada.
3. DA NECESSIDADE DE CONCESSÃO DE ORDEM DE HABEAS CORPUS PARA “TRANCAMENTO” DA AÇÃO PENAL POR MANIFESTA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
De acordo com os arts. 23, incisos VI e VII, e 109, inciso IV, da Constituição Federal, a competência da Justiça Federal para processar e julgar delitos ambientais é restrita aos crimes cometidos em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias ou empresas públicas.
Não obstante a inclusão forçada do delito patrimonial, o fato narrado na denúncia diz respeito apenas ao crime do art. 55 da Lei 9.605/1998, especialmente porque se trata de bem de baixo valor (areia), NÃO compreendido pela esfera de proteção destinada a recursos minerais (Código de Minas) ou energéticos (ao Sistema Nacional de Abastecimento de Combustíveis), explorado em local não afeto à União (rio estadual) de modo rudimentar (por meio de pás), em quantidade ínfima (seis metros cúbicos), sem risco aos sistemas de abastecimento e estoque de minerais
A ação penal contra o crime do art. 55 da Lei dos Crimes Ambientais só deveria deslocar à Justiça Federal em caso de excepcional demonstração de violação direta a bens ou interesse da União, o que não se constata nos autos.
O equívoco de se presumir o interesse da União, acrescentando em função disso o crime do art. 2º da Lei 8.176/91 será demonstrado pelo conjunto dos argumentos expostos a seguir, os quais foram divididos em tópicos apartados apenas por estilo.
3.1. DA EXTRAÇÃO RUDIMENTAR DE AREIA EM RIO ESTADUAL
Não é toda a areia do Brasil que fará aqueles que vivem da parca e rudimentar exploração do meio ambiente serem processados, julgados e recriminados pelas autoridades nacionais. É apenas aquela extração deste recurso mineral – areia – em área de propriedade federal, e que cause significativo e relevante dano ambiental e exploração privada do patrimônio nacional, pondo em risco os sistemas de abastecimento e estoque de minerais.
Meros seis metros cúbicos que nem se sabe exatamente de onde eram provenientes não suportam o mínimo lastro probatório para ensejar o recebimento de uma denúncia criminal, e menos ainda uma condenação nesta via extrema.
Gize-se que não há relato de utilização de dragas ou de outros maquinários capazes de acelerar a extração, assim como não há registros de que tenham sido promovidas escavações pelo acusado.
Aliás, é dever da acusação apontar o local exato dos fatos, sobretudo se se discute a titularidade do bem lesado e a potencial extensão do dano.
Porém, não há descrição de qual foi o local em que se deu referida extração (se do leito ou margem de córrego d’água, ou de mera captação do solo em si). Isso porque ninguém duvida de que a extração é feita de modo rudimentar, por meio de pás, ao nível do solo.
Sobre esta questão – incompetência da Justiça Federal para processar e julgar a extração rudimentar de areia -, apesar do refratário posicionamento do TRF4, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou sobre o assunto:
AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL X JUSTIÇA ESTADUAL. AÇÃO PENAL. CRIME AMBIENTAL. ART. 55 DA LEI N. 9.605/1998. EXTRAÇÃO RUDIMENTAR DE AREIA EM LEITO DE RIO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE LESÃO A INTERESSE DA UNIÃO COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. Compete à Justiça estadual o julgamento do crime do art. 55 da Lei n. 9.605/1998, consubstanciado em extração rudimentar de areia em leito de rio, quando não demonstrada excepcional lesão a interesse da União. Agravo regimental improvido. (AgRg no CC 151.896/RJ, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 12/12/2018, DJe 01/02/2019).
Ainda, sendo mais específico que isso – sobre não ser qualquer extração de areia em rio estadual que traz a competência criminal para o âmbito da Justiça Federal, o STJ também já se manifestou sobre o assunto:
PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXTRAÇÃO IRREGULAR DE AREIA. ÁREA PARTICULAR. AUSÊNCIA DE LESÃO A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. O bem a reclamar a tutela jurisdicional, porquanto privada a área ambiental afetada, situada às margens de rio estadual, não é de domínio federal, de modo que não se visualiza, neste momento processual, lesão a bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas a atrair a competência da Justiça Federal. 2. Agravo regimental não provido. (AgRg no CC 153.183/RJ, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/10/2017, DJe 31/10/2017)
A partir de simples consulta em fontes abertas da rede mundial de computadores, constata-se que a sub-bacia hidrográfica faz parte da bacia hidrográfica. Importante é destacar que o rio corre integralmente em águas nacionais, sem sequer extrapolar os limites territoriais do Estado, podendo ser considerado um rio estadual, por raciocínio inverso ao que dispõe o art. 20, III da CF:
São bens da União: (…) III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais.
Mesmo que um crime ambiental ocorra em rio que banhe em mais de um estado, segundo a jurisprudência do STJ, deve haver indícios de que o fato repercuta para além do local em que praticado para caracterizar o interesse da União:
AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CRIME AMBIENTAL. ART. 34 DA LEI Nº 9.605/98. INEXISTÊNCIA DE OFENSA A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. A proteção ao meio ambiente constitui matéria de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, motivo pelo qual, para se afirmar ser o delito contra a fauna de competência da Justiça Federal, é necessário que se revele evidente interesse da União, a teor do disposto no art. 109, inciso IV, da Constituição Federal. No caso, não obstante a pesca tenha ocorrido em rio que banhe mais de um estado, fato é que o lugar em que teria ocorrido a infração penal está muito bem delimitado na exordial acusatória, não havendo nos autos qualquer indício de que o crime tenha repercutido para além do local em que supostamente praticado, de modo a autorizar a conclusão de que teria havido lesão a bem da União. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no CC 155.055/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/11/2017, DJe 27/11/2017)
Assim, tratando-se de extração rudimentar de pequena quantidade de areia em arroio pertencente a rio estadual, não resta demonstrado o interesse da União e, consequentemente, não há razão para a incidência do art. 2º da Lei 8.176/91, e tampouco para a atração da competência federal.
3.2. DA NÃO DEMONSTRAÇÃO DE EXCEPCIONAL LESÃO A BENS OU INTERESSE DA UNIÃO
A denúncia limita-se a descrever uma suposta extração de areia nas margens do “Rio”. Ocorre que não há informação exata sobre qual extensão do suposto dano ambiental praticado (sequer se sabe onde ocorreu o suposto delito), assim como não há avaliação sobre a qualidade da valiosíssima (?!) substância mineral apreendida – areia.
Não existe nos autos apontamento técnico sobre eventuais danos a bens da União, e nem fundamentação razoável a indicar o especial interesse federal. Isso já seria suficiente para evitar o deslocamento dos autos para a Justiça Federal.
A defesa impugna o processamento do feito perante a Justiça Federal, considerando que no caso em questão os órgãos investigativos e o titular da ação penal sequer foram capazes de declinar o local exato em que se deu a suposta extração de areia e os eventuais reflexos negativos de interesse nacional, o que seria fundamental para demonstrar o interesse da União quantos efeitos da extração de areia em rio estadual.
Dois aspectos importantes para a fixação da competência federal são a natureza do bem, quanto à titularidade do ente federal, e a lesão a interesses da União.
Diferentemente de outras matérias primas com alto potencial econômico ou energético, em relação ao bem areia, é necessário algum temperamento quanto a sua classificação como bem público pertencente à União.
Quer seja porque se encontra aflorada às margens de rio estadual circundado por propriedades particulares no interior do território nacional, isto é, não abrangido pelo art. 20, III, da CF[2], quer seja porque não se encaixa perfeitamente no conceito de recurso mineral do art. 20, IX, da CF[3]), sobre os quais a União tem monopólio quanto à exploração (CF, arts. 176[4] e 177[5]).