Os princípios que sustentam a possibilidade da inversão do ônus da prova são, com efeito, o da prevenção, da precaução e da cautela qualificada. Princípios estes que são a base de sustentação em Direito Ambiental em face do interesse público subjacente.
O regime geral, ou comum, de distribuição da carga probatória assenta-se no art. 333, caput, do Código de Processo Civil.
Trata-se de modelo abstrato, apriorístico e estático, mas não absoluto, que, por isso mesmo, sofre abrandamento pelo próprio legislador, sob o influxo do ônus dinâmico da prova, com o duplo objetivo de corrigir eventuais iniquidades práticas.
Considerando que, atualmente, os interesses supra individuais assumem especial destaque no quadro do ordenamento constitucional e infraconstitucional e do próprio funcionamento da prestação jurisdicional, impõe-se a necessidade de flexibilização do rigor da distribuição prevista no art. 333 do CPC.
Tal tarefa vem sendo levada a cabo nos vários ordenamentos jurídicos, seja de civil law, seja de common law, atentos à preocupação contemporânea com a igualdade real no processo, a solidariedade (individual e coletiva) e a busca de efetividade dos direitos pela facilitação do acesso à Justiça.
A regra geral do art. 333 do CPC comporta, pois, exceções, justificadas pela natureza dos interesses em litígio e pela real dificuldade de o lesado se desincumbir do encargo probatório, a exemplo da expressa previsão da inversão em benefício da vítima, quando hipossuficiente ou verossímil a alegação (art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor – CDC).
Todavia, legislador, doutrina e jurisprudência convergem na suavização da inflexibilidade do regime do art. 333 do CPC, particularmente nos processos coletivos.
No campo do Direito Ambiental, são aplicáveis os fundamentos teórico-dogmáticos do ônus dinâmico, acima aludidos.
Mas não é só. A própria natureza indisponível do bem jurídico protegido (o meio ambiente), de projeção intergeracional, certamente favorece uma atuação mais incisiva e proativa do juiz, que seja para salvaguardar os interesses dos incontáveis sujeitos-ausentes, por vezes toda a humanidade e as gerações futuras.
Ademais, o cunho processual do art. 6º, VIII, do CDC liberta essa regra da vinculação exclusiva ou confinamento à relação jurídica de consumo.
Por derradeiro, a incidência do princípio da precaução, ele próprio transmissor por excelência de inversão probatória, base do princípio in dubio pro natura, induz igual resultado na dinâmica da prova.
Manifestação jurídica da complexidade dos processos ecológicos e da crescente estima ética, política e legal da garantia de qualidade ambiental, o princípio in dubio pro natura, na sua acepção processual, encontra suas origens remotas no tradicional principio in dubio pro damnato (na dúvida, em favor do prejudicado ou vítima), utilizado nomeadamente na tutela da integridade física das pessoas.
Ninguém questiona que, como direito fundamental das presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado reclama tutela judicial abrangente, eficaz e eficiente, não se contentando com iniciativas materiais e processuais retóricas, cosméticas, teatrais ou de fantasia.
Consequentemente, o Direito Processual Civil deve ser compatibilizado com essa prioridade, constitucional e legal, dado o seu caráter instrumental, mas nem por isso menos poderoso e decisivo na viabilização ou negação do desiderato maior do legislador – uma genuína e objetiva facilitação do acesso à Justiça para os litígios ambientais.
Por sua vez, o princípio da precaução, reconhecido implícita e explicitamente pelo Direito brasileiro, estabelece, diante do dever genérico e abstrato de conservação do meio ambiente, um regime ético-jurídico em que o exercício de atividade potencialmente poluidora, sobretudo quando perigosa, conduz à inversão das regras de gestão da licitude e causalidade da conduta, com a imposição ao empreendedor do encargo de demonstrar a sua inofensividade.
Dito de outra forma, pode-se dizer que, no contexto do Direito Ambiental, o adágio in dubio pro reo é transmudado, no rastro do princípio da precaução, em in dubio pro natura, carregando consigo uma forte presunção em favor da proteção da saúde humana e da biota.
Tal, por óbvio, coloca a responsabilidade pela demonstração da segurança naqueles que conduzem atividades potencialmente perigosas, o que simboliza claramente “um novo paradigma: antes, o poluidor se beneficiava da dúvida científica; doravante, a dúvida funcionará em benefício do ambiente” (Nicolas de Sadeleer, Environmental Principles: From Political Slogans to Legal Rules, Oxford, Oxford University Press, 2002, p. 203).
2 Comentários. Deixe novo
Parabéns a esse ilustre e reconhecido escritório, sempre produzindo um bom conteúdo. Gostei muito desse artigo!
Obrigado pelo comentário Leandro. Ficamos à disposição.