A obrigação de transmitir o sinal de rastreamento do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite – PREPS não configura crime ambiental do art. 68 da Lei 9.6058/1998.
Muito temos visto sobre casos em que o comandante da embarcação deixa o aparelho de rastreamento desligado, conduta que, para o Ministério Público, configura o crime ambiental do art. 68 da Lei 9.605/08, assim redigido:
Art. 68. Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental:
Pena – detenção, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano, sem prejuízo da multa.
Para a configuração do crime ambiental em questão, é necessária uma obrigação de relevante interesse ambiental (no caso, a INC SEAP-PR/MB/MMA 2/06), e uma obrigação que imponha a um determinado sujeito o dever legal de cumprimento dessas obrigações de relevante interesse ambiental (esse, sim, o imo do problema em apreço).
Ocorre que, o crime ambiental do art. 68 da Lei 9.605/98 não se configura por descumprimento de dever regulamentar, porque o texto penal utiliza a expressão “dever legal ou contratual” e porque é vedado ao intérprete da lei penal, ampliar o sentido do texto legal de modo a prejudicar o acusado.
A obrigatoriedade de participação das embarcações pesqueiras no Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS) surgiu com a edição da Instrução Normativa Interministerial SEAP/MMA/CM 2, de 04.09.2006, que instituiu aquele programa para fins de monitoramento, gestão pesqueira e controle das operações da frota pesqueira permissionada.
Índice
Interpretação equivocada do crime ambiental do artigo 68
Muito embora se trate de ato infralegal, a Jurisprudência pátria inclinou-se no sentido de que, em tais casos, o dever legal, elementar do tipo penal, está consubstanciado na Lei 11.959/09, diploma que serviu de base para aquele ato infranormativo e que regula a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, assim estabelecendo, na parte em que dispõe acerca da fiscalização da atividade pesqueira (arts. 31 a 33):
Art. 31. A fiscalização da atividade pesqueira abrangerá as fases de pesca, cultivo, desembarque, conservação, transporte, processamento, armazenamento e comercialização dos recursos pesqueiros, bem como o monitoramento ambiental dos ecossistemas aquáticos.
Parágrafo único. A fiscalização prevista no caput deste artigo é de competência do poder público federal, observadas as competências estadual, distrital e municipal pertinentes.
Art. 32. A autoridade competente poderá determinar a utilização de mapa de bordo e dispositivo de rastreamento por satélite, bem como de qualquer outro dispositivo ou procedimento que possibilite o monitoramento a distância e permita o acompanhamento, de forma automática e em tempo real, da posição geográfica e da profundidade do local de pesca da embarcação, nos termos de regulamento específico.
Art. 33. As condutas e atividades lesivas aos recursos pesqueiros e ao meio ambiente serão punidas na forma da Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, e de seu regulamento.
De acordo com tal posicionamento, a instalação e o funcionamento do PREPS decorre de obrigação legal, de modo que seu descumprimento poderia atrair, em tese, a aplicação da norma incriminadora do art. 68 da Lei 9.605/98.
Aplicação do direito penal é excepcional
Apesar disso, é importante ter presente que o Direito Penal, pela severidade da sanção que impõe, deve atuar apenas na tutela de bens jurídicos para os quais a proteção por meio de sanções civis ou administrativas se mostra insuficiente ou ineficaz.
Além desse caráter subsidiário, a aplicação de uma pena deve ser reservada às hipóteses em que o comportamento humano descrito na norma incriminadora efetivamente produz uma ofensa ao bem jurídico respectivo e, por consequência, encontra reprovação no seio social.
Uma condenação criminal fora desses moldes, isto é, quando a repressão da conduta é suficiente por intermédio de sanções de outra natureza, quando não há lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal e/ou quando o comportamento humano encontra larga aceitação na sociedade, contraria a própria natureza do Direito Penal.
Necessário, pois, que a ação humana não só se amolde à previsão formal e abstratamente prevista no tipo penal, como também afete de forma concreta, material, significativa o bem objeto da proteção da norma incriminadora.
Assim, verifica-se que a conduta de deixar de transmitir o sinal de rastreamento da embarcação operada, em violação às normas do Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS), não tem o condão de caracterizar o crime previsto no art. 68 da Lei 9.605/98 quando desacompanhada de outros elementos.
Isso porque, não obstante o PREPS tenha aptidão para reforçar o poder de controle e fiscalização da atividade pesqueira pelo Poder Público, notadamente no tocante à identificação da observância dos limites geográficos estabelecidos nas permissões de pesca concedidas, os agentes públicos se encontram livres para exercer de forma ampla suas atribuições fiscalizatórias de outras maneiras.
Sanções administrativas são suficientes
As sanções administrativas previstas para a conduta descrita na denúncia, as quais se relacionam com a suspensão ou o cancelamento, a depender da gravidade, das Permissões de Pesca outorgadas ao participantes do PREPS que descumpram o disposto na Instrução Normativa transcrita, podem se mostrar, inclusive, mais eficazes que a própria sanção penal no objetivo de prevenir a prática de novas infrações, dado que atingem diretamente o exercício da atividade econômica na qual o ilícito foi perpetrado.
Nesse contexto, a mera omissão na transmissão de dados por meio do PREPS, embora deixe de facilitar o exercício do poder de polícia ambiental, não vulnera suficientemente o bem jurídico tutelado a ponto de legitimar a aplicação de sanção penal.
É dizer, embora não se ignore que a emissão de sinais por sistema de satélite permite o rastreamento e acompanhamento remoto das embarcações de pesca por parte dos órgãos ambientais e, consequentemente, constitui-se em relevante instrumento para a ação fiscalizadora do Poder Público, a não transmissão dos dados, por si só, em face do explicitado caráter subsidiário do Direito Penal, não caracteriza a prática do crime imputado na denúncia, haja vista que a conduta já é adequada e suficientemente punida na esfera administrativa.
Mera infração administrativa
A Instrução Normativa Interministerial 02/2006, a qual instituiu o PREPS, prevê o seguinte:
Art. 19 – Serão suspensas pela Seap/PR, nos termos de norma específica, por 60 dias, as Permissões de Pesca das embarcações participantes do Preps que descumpram o disposto nesta Instrução Normativa, quanto aos seguintes aspectos:
I – iniciar cruzeiro de pesca sem o equipamento ou sistema de rastreamento devidamente homologado no âmbito do Preps, apresentando anormalidades de funcionamento, ou fornecido por empresa não homologada, resultando em irregularidades no recebimento das informações obrigatórias pela Central de Rastreamento;
II – permanecer em cruzeiro de pesca após constatação de anormalidades no recebimento das informações de rastreamento pela Central de Rastreamento, após o término dos prazos e condições previstos nos incisos I, II e III, e parágrafos 1º e 2º, do art. 9º desta Instrução Normativa, salvo justificativa a ser apresentada e analisada pela Gerência-Executiva do Preps; e
III – acumular, no período de 1 (um) ano, 3 (três) registros de solicitação de retorno a porto brasileiro, por motivo de descumprimento dos prazos e condições estabelecidas, previstos nos incisos I, II e III, e parágrafos 1º, 2º e 4º, do art. 9º desta Instrução Normativa.
Parágrafo único – A aplicação das sanções previstas nos incisos I, II e III deste artigo são independentes, podendo ser aplicadas cumulativamente, quando necessário.
Art. 20 – Serão suspensas pela Seap/PR, nos termos de norma específica, por 1 (um) ano, as Permissões de Pesca das embarcações brasileiras participantes do Preps, e canceladas as Permissões de Pesca de embarcações estrangeiras que tiverem, no período de 1 (um) ano, 4 (quatro) registros de retorno a porto brasileiro, solicitados pela Seap/PR, por descumprimento dos prazos e condições estabelecidas, previstos nos incisos I, II e III e parágrafos 1º, 2º e 4º do art. 9º desta Instrução Normativa.
Art. 21 – As Permissões de Pesca das embarcações participantes do Preps serão canceladas pela Seap/PR, nos termos de norma específica, nas seguintes situações:
I – existência de laudo, em relatório de inspeção, emitido por técnico autorizado em manutenção de equipamentos de rastreamento, indicando violação do equipamento de rastreamento instalado a bordo, com finalidade de adulteração ou impedimento voluntário da emissão das informações obrigatórias pela Central de Rastreamento;
II – ter sido julgada pela Seap/PR em processo administrativo, a partir de pedido do órgão fiscalizador competente, por descumprimento das condições e compromissos estabelecidos no parágrafo 1º e 2º do art. 7º e Anexos VII e VIII desta Instrução Normativa, no que tange a desativação do equipamento de rastreamento;
III – ter praticado lance de pesca após o término dos prazos e condições estabelecidos nos incisos I, II, III do art. 9º desta Instrução Normativa;
IV – sendo embarcação estrangeira, após solicitação oficial de retorno a porto brasileiro, pela Seap/PR, desobedecer ao prazo e condições previstos em correspondência oficial, salvo justificativa a ser apresentada e analisada pela Gerência-Executiva do Preps.
Portanto, à luz da legislação específica atinente ao PREPS, a conduta de deixar o aparelho de rastreamento da embarcação desligado é passível de sanção na esfera administrativa.
Interpretação do direito penal ambiental
Importante colacionar trecho da obra de Guilherme Gouvêa de Figueiredo[1], que propõe forma de interpretação dos tipos de ilícitos ambientais compatível com a subsidiariedade do uso do direito penal como ultima ratio, e com a possibilidade de aplicação do princípio da lesividade:
Dogmaticamente, a pertinaz determinação do bem jurídico protegido afetará a interpretação dos tipos legais de crime previstos na Lei 9.605/98, permitindo a sua compatibilização, enquanto antecipação necessária de intervenção penal, com o “paradigma da ofensividade”.
Isso porque a noção de “ecossistema equilibrado”, com os contornos aqui propostos, perde em, grande medida, o seu “amplo espectro”, servindo mais firmemente como padrão político-criminal para a interpretação e aplicação dos crimes de perigo abstrato.
Nesse ponto, poderão os mais descrentes questionar a viabilidade de uma rearrumação dogmática dos crimes de perigo abstrato capaz de permitir que esses sejam interpretados teleologicamente.
Com efeito, se o que singulariza a figura do perigo abstrato em relação a outras técnicas de configuração dogmática é precisamente o fato daquela primeira basear-se numa presunção de perigo, como ratio legis, como seria possível uma interpretação teleológica desse?
E mais: se assim se procedesse, não se estaria, pura e simplesmente, a converter o que antes era perigo abstrato em perigo concreto?
Ora, haverá casos, não podemos negar, em que a dificuldade de se constatar a existência de um desvalor de perigosidade na conduta se mostrará intransponível. Em tais casos, sendo de indiscutível importância o valor que se quer proteger, nada obstará a criminalização de um pôr-em-perigo abstrato ou presumido.
Contudo, é preciso ter presente, alicerçados em Faria Costa, que estaremos diante de incriminações cuja ofensividade só ganha uma dimensão material se fundamentada no relevo ético-social que se confere à relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo, uma vez que o bem jurídico não é concretamente afetado.
Por isso, escreve Faria Costa, “a afirmação de uma específica relação de cuidado imposta pelo Estado e sem um bem jurídico a conformá-la não é necessariamente uma aberração conceitual, nem, muito menos, ilegítima extrapolação dos pressupostos que nos têm servido de base.
Nesse sentido, a relação de cuidado-de-perigo que sustenta os crimes de perigo abstrato funda-se, ainda e sempre, naquela primitiva relação de cuidado que legitima o próprio Estado”.
Porém, para além destes casos específicos em que é o próprio cuidado-de-perigo a tornar o comportamento criminalizado num comportamento merecedor de pena – casos, convém sublinhar, em que a linha divisória entre crimes e ilícitos de mera ordenação social se esfumaça, merecendo uma atenção especial por parte do legislador,- quando o bem jurídico protegido apresenta contornos suficientemente densos e precisos, vem-se entendendo que, mesmo tendo o legislador optado pela técnica do perigo abstrato, será possível – e, mais que isso, defensável – que o ilícito típico se dimensione em termos materiais. Assim, também em relação ao pôr-em-perigo abstrato deverá o bem jurídico fazer parte do “conteúdo” do juízo de tipicidade, e não restar como mero motivo do legislador, “de modo que, frente ao entendimento puramente formal e literal das descrições típicas, seja possível afirmar que somente hão de se considerar verdadeiramente típicas aquelas ações que, além de coincidir com a descrição típica, constituam ações antinormativas que atentam contra o bem jurídico, por serem lesivas ou perigosas para o mesmo; assim o desvalor objetivo material da ação que é perigosa para o bem jurídico se revela como o elemento central do ilícito-típico.
Uma primeira possibilidade de se interceder no sentido de uma reconfiguração dogmática, que faça dos crimes de perigo abstrato crimes realmente compatíveis com uma interpretação que releve o desvalor material da conduta no caso concreto, estará em requerer que já no plano legislativo haja, a preocupação em clarificar, na descrição típica da conduta proibida, a indispensável perigosidade ou lesividade da conduta punível.
Esse entendimento, que vem progressivamente ganhando força, é semelhante ao modelo de criminalização propugnado em terreno germânico, denominado pela terminologia adotada por Schröder de crimes de perigo abstrato-concreto e posteriormente de crimes de atitude ou idoneidade (Eingnungsdelikte).
Segundo esta compreensão, “através da inclusão de elementos de perigosidade efetiva da conduta na descrição do tipo, evitar-se-ia o defeito principal dos crimes de perigo abstrato: o formalismo ou automatismo da constatação de sua relevância típica e seu conteúdo de ilícito”.
Assim, nos crimes de idoneidade lesiva, “o juiz deverá constatar com caráter geral a idoneidade da ação, ou seja, se a conduta abstratamente observada era ‘idônea’, ‘adequada’ ou ‘apta’ para a criação do perigo proibido”.
Esta conformação dos crimes de perigo abstrato pressupõe, contudo, um certo modelo de tipificação, de forma que a necessidade de se constatar a perigosidade da ação adviria da inserção de algum elemento típico, ou seja, a necessária perigosidade geral da conduta concreta, ou dos meios comissivos utilizados, pertence à própria descrição típica.
Também de acordo com a mais recente doutrina italiana, já menos rigorosa quanto à inadmissibilidade das técnicas de antecipação da tutela, a necessária lesividade ou ofensividade dos crimes de perigo abstrato estaria condicionada a uma correta e bem delimitada redação do tipo que, não requerente a realização de um resultado (de dano ou de perigo), ao menos delimite, com clareza, a “carga ofensiva” da conduta em si mesma considerada.
Tais propostas vão desde a exigência de uma “carga semântica” a comprovara aptidão ofensiva da conduta, afastando assim a possibilidade de punição de ilícitos de “mera desobediência”, até a defesa de que, nos crimes de perigo abstrato, o legislador faça uso de uma descrição típica que imponha ao juiz uma valoração acerca da perigosidade da conduta, no caso concreto.
Entretanto, mesmo sendo certo que um tal recurso levado a cabo em termos de técnica legislativa, já teria condições de afastar muitos problemas de legitimidade circunscritos aos crimes de perigo abstrato “puro”, o fato é que a tipificação de crimes de atitude ou de idoneidade não é uma panaceia absoluta para a criminalização de condutas perigosas.
Além do mais, considerando que esta técnica não foi empregada pelo legislador brasileiro, estaria, quanto à nossa realidade, inviabilizada a possibilidade de uma interpretação alternativa e congruente com o princípio de exclusiva proteção de bens jurídico-penais.
A solução para uma aplicação dos arts. 29 e seguintes da Lei 9.605, coerente com o mandamento de proteção exclusiva de bens jurídicos, só será viável a partir de uma interpretação teleológica do tipo.
Assim, quando a descrição típica não for suficientemente rica ou precisa no sentido de viabilizar uma aplicação que releve a necessidade de um qualquer desvalor material inerente à ação, será necessário recorrermos à adoção de uma perspectiva teleológica na interpretação do tipo, que nos permita tornar efetivos os critérios que conformam o sistema também na construção e interpretação dogmática dos elementos do crime.
Graças à adoção de critérios de interpretação teleológica, será possível afastar a tipicidade de comportamentos inofensivos mesmo naqueles casos – de que é exemplo paradigmático o crime de poluição (art. 54) – em que o legislador optou por não exigir a comprovação de um resultado (de dano ou de perigo) para o meio ambiente, pois, também aí, nos crimes de perigo abstrato (crimes em que não se prevê a ocorrência de nenhum resultado típico com condição para a tipicidade), deverá a perigosidade da conduta converter-se em “elemento objetivo necessário do ilícito”, que se deve avaliar mediante um juízo ex ante.
Daqui arranca uma nova rearrumação teórica, que vem ganhando adeptos de forma crescente e já desponta entre os autores de origem espanhola e germânica, que faz dos crimes de perigo abstrato crimes em que o juízo material de tipicidade fica dependente, não da produção de um perigo efetivo, mas da existência “de uma ação apta para produzir um perigo para o bem jurídico”.
Reportando-nos, v.g., ao tipo legal de crime do art. 54 ou o art. 29 da Lei 9.605, condição para a tipicidade das condutas “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora” (art. 54) e “Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória…” (art. 29), será que elas, para além de contrariarem as disposições administrativas existentes, redundem numa ação comprovadamente idônea para prejudicar o “equilíbrio dos sistemas naturais”.
Tal capacidade ofensiva, que, em muitos casos, não dispensará a comprovação de um “resultado” ou “evento” desvinculado da ação, deverá ser atestada pelo juiz em cada caso, de modo que a própria conduta se mostre objetiva e materialmente antinormativa e não só formalmente coincidente com a descrição típica.
Consequentemente, também em relação aos crimes ambientais vigentes, será possível afirmar que a “infração de disposições extrapenais constitui uma condição necessária à realização do tipo mas não suficiente”, porque o que diferencia o crime da infração administrativa é precisamente a capacidade da ação de causar um prejuízo ao equilíbrio ambiental.
Para que haja uma poluição, ofensa à flora ou à fauna “em medida inadmissível” será indispensável que a conduta, depois de contrariar as disposições administrativas, ofereça, a partir de um juízo de perigo ex ante, condições materiais para ofender o bem jurídico.
Deve existir, em outras palavras, uma relação normativa de imputação entre a infração administrativa e o perigo material. Relação essa que não equivale à constatação de um resultado perigoso concreto porque o juízo material de perigosidade se concentra na capacidade ex ante da ação e não na atribuição a essa de um qualquer resultado de perigo.
Sem olvidar, no entanto, que sempre que da ação implicar um resultado (de dano ou de perigo) para algum dos bens jurídicos pessoais coenvolvidos, ou para interesses ambientais intermediários (como a fauna e a flora), estará comprovada a idoneidade ofensiva da conduta.
Não seria, pois, um absurdo afirmar que, em determinadas situações , os crimes de poluição (arts. 54 e ss.) contra a fauna (arts. 29 e ss.) e os crimes contra flora (arts. 38 e ss.) poderão ser interpretados, ao mesmo tempo, como um crime de perigo abstrato (para o equilíbrio ambiental) e de perigo concreto ou de lesão (para um certo bem jurídico pessoal ou ambiental intermediário), sendo que será a comprovação desse resultado (de dano ou de perigo para bens pessoais ou ambientais intermediários) que demonstrará a perigosidade ex ante da conduta para o equilíbrio ambiental.
Desde logo, esse rearranjo inviabilizará a concepção, de lege lata, dos ilícitos ambientais como “mera desobediência” ao ente administrativo, assim como a possibilidade de se punirem ações insuficientes, por si mesmas, para proporcionar um risco de fato relevante.
Ademais essa concepção se afasta em boa medida das críticas de administrativização do direito penal e de abandono do conceito material de bem jurídico, já que o juízo de tipicidade objetiva não prescinde a existência de um vínculo material a ser averiguado em cada caso, entre o comportamento e o bem jurídico fulcro da incriminação.
De outro lado, se uma tal arrumação dogmática se mostraria impraticável partindo de uma compreensão do bem jurídico protegido, “difusa” ou de “amplo espectro”, o mesmo não deverá valer para uma noção como a por nós desenvolvida, que oferece ao intérprete condições de encontrar um suficiente grau de determinação, podendo-se renunciar à imposição de uma pena nos casos de “mera desobediência” ou de mera coincidência formal com a descrição legislativa, com o que a punição passa a depender de um desvalor especificamente jurídico-penal.
Haverá, ademais, com o que se afirmou, a inaplicabilidade ou paralisação de determinados tipos, construídos sem a mínima preocupação com os critérios de legitimação da intervenção penal. Crimes como os previstos nos arts. 30, 34 e 51 da Lei 9.605/98, que demonstram uma técnica de tutela casuísta e imprecisa.
É certo que a delimitação do que deve ser considerado um “ecossistema equilibrado” para fins de apreciação dos pressupostos de punibilidade, por mais bem definido que esteja o conceito, pode dar lugar a duas consequências negativas: a primeira delas é o julgador, diante do amplo espectro do bem jurídico protegido, contentar-se,no caso concreto, com o mero desrespeito às disposições administrativas para a tipicidade do comportamento; a segunda é a chance de o juízo de tipicidade ficar excessivamente dependente de informações periciais, não tendo o julgador condições de avaliar, em cada caso, a capacidade ofensiva da conduta sem o parecer conclusivo de um expert.
Coerentemente – e é precisamente aqui que a opção por um antropocentrismo moderado se distingue verdadeiramente das teses ecocêntricas -, com o intuito de obviar problemas desta ordem, deve-se ter em conta que o equilíbrio ambiental é protegido pelo direito penal como valor instrumental à plena realização de uma pluralidade de interesses humanos.
Isso torna manifesto que o meio ambiente e aqueles bens jurídicos pessoais não são interesses distintos que podem ser afetados pela mesma conduta; são, pelo contrário, interesses que se encontram numa mesma “linha de afetação”.
Portanto, a idoneidade ofensiva da conduta para resultar em uma “grave alteração do equilíbrio ecológico” poderá ser medida, em cada situação de fato, a partir da afetação de interesses pessoais, nomeadamente a segurança, a saúde, a economia, o patrimônio, as formações físicas e biológicas submetidas a especiais regimes de tutela etc.
Assim, para além de se minimizarem as dificuldades concernentes ao “amplo espectro” do bem jurídico, fica evidenciado que para a proteção jurídico-penal do meio ambiente, a afetação de interesses pessoais não constitui mera ratio legis, já que não se renuncia, para a apreciação da tipicidade objetiva, à necessidade de ter havido uma qualquer “ofensa” a interesses pessoais.
Resta, por fim, dizer o óbvio. Que todo o esforço empreendido neste trabalho fora o de buscar, de lege lata, uma via interpretativa para os vigentes crimes ambientais, que os torne minimamente coerentes com postulados irrenunciáveis de limitação da intervenção punitiva, nomeadamente com os que condicionam a imposição de uma pena criminal a comportamentos merecedores de pena.
Entretanto, todo este empenho contraria, como facilmente se percebe, a técnica de proteção adotada pelo legislador de 1998. Daí a conclusão, mais que explícita no corpo do trabalho, de que o legislador brasileiro caminhou em sentido oposto: tornou o direito penal ambiental num conglomerado de incriminações que são exclusivamente reforço sancionatório do direito administrativo.
Se este esforço em redimensionar o nosso casuísmo legislativo fora em vão, não o sabemos. Sabemos sim que, ao menos para uma análise com perspectivas de reforma legislativa (de lege ferenda), o apelo que daqui se arrebata é pela descriminalização da maior parte das incriminações vigentes, seja pela “ausência de um bem jurídico”, seja imprecisão em termos de técnicas de tutela, seja por questões – que não foram por nós abordadas se não perfunctoriamente – de ineficácia preventiva (necessidade de pena ou carência de tutela penal).
O direito administrativo sancionador, em domínios como o meio ambiente, é, sem sombra de dúvida, o instrumento mais eficiente e flexível.
Se o direito penal como ultima ratio foi um postulado fundamental desenvolvido no contexto do chamado direito penal clássico, nada mais coerente que o seja, em conta todos os problemas suscitados, em relação ao direito penal secundário.
Conclusão
Apesar da independência das instâncias, deve ser afastada a incidência da normal penal incriminadora no caso concreto, em face da severidade a ela inerente e da diminuta magnitude da lesão ao bem jurídico tutelado, à medida que não comprovado prejuízo específico e concreto à integridade e higidez do ambiente.
Eventual ausência de efetiva lesividade da conduta praticada não importa de forma alguma a aceitação da licitude de seu agir ou a declaração de sua irrelevância jurídica, mas tão somente que tal comportamento, muito embora passível de sanção nas esferas civil e administrativa e formalmente típico, não representa ofensa intolerável ao bem jurídico protegido pela norma penal, circunstância que afasta a tipicidade material do delito.
Frente a esse cenário, considerando que a conduta pode ser eficaz e suficientemente sancionada na esfera administrativa, com a suspensão ou cancelamento da Permissão de Pesca, e que a lesão ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é apenas hipotético, visto que se limita a não facilitar a fiscalização das atividades pesqueiras por parte do Poder Público, a prolação de um decreto condenatório implicaria violação aos preceitos que regem o Direito Penal.
Em suma, mesmo diante da indispensável parcimônia com que deve ser analisada a matéria ambiental, dada a constante irreversibilidade dos danos ocasionados, o fato de uma embarcação não estar com o PREPS em funcionamento durante determinado período, por si só, sem constatação por parte da fiscalização de efetivo dano ambiental daí decorrente, é insuficiente para a subsunção da conduta narrada ao tipo penal, mormente em razão da natureza subsidiária do Direito Penal, o que leva à absolvição dos réus.
[1] Crimes ambientais e bem jurídico-penal (des)criminalização, redação típica e (in)ofensividade, 2ª edição, Livraria do Advogado, págs. 202/211.