Há alguns dias, a imprensa tem noticiado a enxurrada de ações civis públicas ajuizadas pela Prefeitura de Florianópolis objetivando a demolição de todas as casas e edificações localizadas a menos de 15 metros das margens da Lagoa da Conceição
Em rápida consulta no Sistema eProc da Justiça Federal de Florianópolis, foram localizadas ao menos 220 ações civis públicas ajuizadas pelo ente municipal contra proprietários de casas localizadas no entorno da Lagoa da Conceição e Canal da Barra da Lagoa.
Essas ações tem por questão de fundo o cumprimento das obrigações decorrentes da decisão proferida nos autos da Ação Civil Pública 5025133-50.2014.404.7200 pelo Ministério Público Federal contra o Município de Florianópolis, cuja sentença foi mantida pelo Tribunal Regional da 4ª Região.
Assim, em razão da condenação, o Município de Florianópolis se viu obrigado a levantar todas as edificação localizadas no entorno da Lagoa da Conceição em área de marinha, considerada de preservação permanente e que impede o livre acesso público às suas margens, ajuizando ações individuais contra cada proprietário para a remoção judicial da edificação e benfeitorias, seguida da recuperação integral da área degradada.
Ao nosso ver, fica claro que o Município de Florianópolis ajuizou as ações demolitórias porque não havia mais opções e, como veremos a seguir, foi imposta multa em caso de descumprimento tanto ao ente municipal como ao Prefeito, este ainda sujeito à atos de improbidade caso não desce andamento à obrigação imposta na sentença.
Contudo, adiante-se que, em uma análise prévia, a maioria dos imóveis e edificações que estão sujeitos à demolição com ação já ajuizada são passíveis de Regularização Fundiária Urbana – REURB, e uma vez regularizado, o pedido de demolição deve ser indeferido (por perda de objeto).
Índice
Entenda a ação civil pública orginária ajuizada contra o Município
Na Ação Civil Pública 5025133-50.2014.404.7200 (2003.72.00.007539- 1) originária ajuizada em 23 de junho de 2003 pelo Ministério Público Federal contra o Município de Florianópolis, foram impostas ao ente municipa as seguintes obrigações:
a) o total cumprimento, por seus órgãos e agentes, da legislação federal e estadual sobre a faixa de proteção ao redor do elemento hídrico;
b) o levantamento de todas as ocupações em faixa de marinha, no entorno da Lagoa da Conceição, identificando os responsáveis, indicando quais obtiveram alvarás e qual a data dos mesmos e adotando as providências cabíveis para a abertura de acessos às margens da mesma, especialmente na faixa definida pelo Código de Águas e pela Lei do Plano Diretor dos Balneários (15 metros); e,
c) divulgação da sentença em jornal de grande circulação estadual, haja vista o caráter educativo que deve acompanhar as ações de defesa do meio ambiente.
Após sucessivas suspensões de prazo, recursos, manifestações e impugnações, o Município de Florianópolis foi intimado para efetivamente comprovar o cumprimento das obrigações a que restou condenado, sob pena de cobrança da multa diária, inclusive, com previsão de fixação de multa ao Prefeito e configuração de ato de improbidade administrativa em caso de descumprimento.
O Ministério Público Federal, entendendo que o Município de Florianópolis não cumpriu a obrigação, realizou o cálculo de atualização da multa que totalizou R$ 2.194.967,16 e requereu a intimação do Município para providenciar as ações regressivas contra os agentes políticos responsáveis pela negligência a gerar essa punição ao erário.
Embora o Município de Florianópolis tenha interposto recursos e apresentado impugnações, não restaram muitas outras alternativas senão dar cumprimento à obrigação que lhe foi imposta.
Assim, o Município de Florianópolis procedeu ao levantamento de todos os imóveis localizados a menos de 15 metros das margens da Lagoa da Conceição e ajuizou ações civis públicas individuais contra cada proprietário objetivando a desocupação, demolição e recuperação da área supostamente degradada.
O que o Município de Florianópolis pede nas ações ajuizadas contra os particulares
Como já mencionado, no dia 15 de março de 2024 o Município de Florianópolis ajuizou ao menos 220 ações civis públicas contra proprietários de casas e imóveis localizados no entorno da Lagoa da Conceição em cumprimento à condenação que lhe foi imposta em uma outra ação civil pública ajuizada contra ele pelo Ministério Público Federal.
Todas as ações civis públicas ajuizadas pelo Município de Florianópolis têm, de uma forma geral, a mesma estrutura de petição inicial, cujos pedidos finais (que é o que se busca com a ação), foram assim redigidos pelo ente municipal:
- A designação de audiência de conciliação a que se refere o artigo 334, do CPC. Inicialmente, a intimação do Ministério Público Federal e da UNIÃO para manifestarem interesse em integrar a lide na qualidade de litisconsorte ativo;
- Após o cumprimento do item anterior, a citação da parte ré por oficial de justiça, para, querendo, contestar os termos da presente Ação Civil Pública, sob pena de revelia;
- A produção dos meios de prova admitidos por lei, em especial, juntada de documentos;
- A procedência dos pedidos para, além de confirmar a tutela antecipada requerida, condenar a parte ré em obrigação de fazer consistente: (e1) no desfazimento, em prazo a ser fixado por Vossa Excelência, da edificação (porção irregular) dentro dos 15 metros das margens da Lagoa da Conceição; (e2) no que superar os 15 metros da faixa marginal da Lagoa, a demolição das edificações irregulares e/ou sua regularização, se assim for viável; (e3) na recuperação ambiental dessas áreas degradadas, mediante a apresentação de um PRAD em prazo máximo de 90 dias a partir do trânsito em julgado da sentença, a ser aprovado pela FLORAM, cuja implementação deverá ocorrer em 180 (cento e oitenta) dias a partir da aprovação do projeto;
- A imposição de pagamento de multa diária equivalente a R$ 100,00 (cem reais) para o caso de não cumprimento do provimento final no prazo a ser estipulado por este Juízo;
- A condenação da parte ré em honorários advocatícios e demais despesas processuais.
Esses são os pedidos formulados pelo Município de Florianópolis nas ações civis públicas individuais ajuizadas contra cada proprietário de imóvel no entorno da Lagoa da Conceição.
É claro que se trata de um processo judicial onde deverão ser observados o contraditório e ampla defesa, oportunidade em que o particular poderá comprovar a regularidade urbanístico-ambiental da área ocupada e da edificação objeto da ação que se pretende demolir.
Ou seja, os proprietários podem apresentar defesa (contestação) no prazo de 15 dias úteis que, no caso – em algumas ações analisadas que já possuem decisão deferindo a tutela antecipada – deve ser contado a partir da audiência de conciliação.
Algumas ações já possuem decisão liminar concedida
Pelo menos 10 das mais de 220 ações civis públicas ajuizadas pelo Município de Florianópolis contra particulares proprietários ou possuidores de imóveis no entorno da Lagoa da Conceição já tiveram os seus pedidos de tutela antecipada analisados e deferidos pela Justiça Federal de Florianópolis.
Ao decidir, o Juiz Federal Marcelo Krás Borges responsável pelos casos analisados, tem proferido decisões concedendo a tutela antecipada para impedir novas construções ou reformas que impliquem acréscimo da área edificada, sob pena de aplicação de multa diária:
“O levantamento da Prefeitura atestou que a edificação (ou ao menos parte dela, devidos a acréscimos sem licenciamento) não está licenciada e se situa em área de marinha, considerada de preservação permanente, não edificável, a menos de 30 metros das margens da Lagoa, impossibilitando o livre acesso às suas margens.
Assim sendo, há danos irreparáveis à higidez do meio ambiente e ao direito ao livre acesso público às margens da Lagoa da Conceição, que continuam a ocorrer com a perpetuação da ocupação.
Destaco que a petição inicial encontra-se acompanhada do levantamento da ocupação, onde há informações acerca do endereço, nome do responsável e número de Inscrição Imobiliária, sendo que a comprovação quanto à obtenção do alvará e qual a data dele, conforme determinado na sentença, deverão ser apresentadas pela parte ré antes da audiência de conciliação a ser designada.
Do exposto, DEFIRO o pedido de liminar para determinar que a parte ré, ocupante da área, seja impedida de promover novas construções ou reformas que impliquem acréscimo da área edificada, sob pena de aplicação de multa de R$ 10.000,00.
Cite-se e intime-se a parte ré para que, no prazo de 15 dias traga aos autos a Ficha Cadastral de Aprovação de Projeto, emitida pela Diretoria de Arquitetura e Urbanismo da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura Municipal de Florianópolis, bem como o Espelho de Cadastro da Inscrição Imobiliária do imóvel objeto dos presentes autos.
Intime-se a União para que diga se deseja participar da lide.
Designe a secretaria data para audiência de conciliação.”
Essa mesma decisão deve ser a mesma para todas as mais de 220 ações civis públicas. Mas como se observa, o réu em cada ação apenas está impedindo de promover novas construções ou reformas que impliquem acréscimo da área edificada, bem como apresentar documentos que demonstrem a regularidade da edificação.
Posterior a isso, haverá uma audiência de conciliação entre o réu e o Município de Florianópolis, cujo objetivo é achar uma solução ou acordo que ponha fim ao conflito.
Mas, na nossa experiência técnica, se o réu não apresentar documentos nem comprovar a regularidade do imóvel ou ao menos, iniciar o procedimento de regularização através da REURB, a audiência de conciliação restará inexitosa porque, tratando-se de imóvel irregular seria necessária a sua demolição.
Claro que em todos os imóveis e edificações há pessoas residindo, o que inviabiliza a demolição sumária, ainda que se trate efetivamente de imóvel irregular, demandando assim a instrução do processo para somente ao final eventual demolição ser efetivada.
Após a audiência de conciliação, o réu terá um prazo de 15 dias úteis para contestar e apresentar todos os argumentos e documentos que julgar necessário para se defender, e então o processo seguirá seus trãmites legais que podem incluir perícia judicial, oitiva de testemunhas, inspeção judicial, audiência de instrução e julgamento, etc.
Possibilidade de REURB das casas no entorno da Lagoa da Conceição
Embora a jurisprudência do próprio Tribunal Regional da 4ª Região – TRF-4 seja firme no sentido de que “não é razoável considerar consolidada uma construção irregular, em área de preservação permanente, somente com base na antiguidade da ocupação, sobretudo porque não há direito adquirido a poluir ou degradar o meio ambiente”, fato é que a maioria dos imóveis demandados naquelas mais de 220 ações civis públicas são passíveis de Regularização Fundiária Urbana – REURB.
A REURB é um instituto trazido pela Lei 13.465/2017 que abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes, e se divide em Reurb de Interesse Social (Reurb-S) e Reurb de Interesse Específico (Reurb-E).
A Reurb de Interesse Social (Reurb-S) é aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo municipal.
Já a Reurb de Interesse Específico (Reurb-E) é aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada na modalidade de Reurb-S.
A Lei 13.465/2017 prevê que uma vez efetuado o requerimento de instauração da Reurb, resta garantido o direito à permanência na unidade imobiliária até o eventual arquivamento definitivo do procedimento (artigo 13).
Logo, a solução viável aos proprietários réus nas ações civis públicas movidas pelo Município de Florianópolis é, além de comparecer à audiência de conciliação e apresentar defesa (contestação) para ganhar tempo, é iniciar o processo de regularização fundiária.
Assim, iniciado o processo de regularização e ausente demonstração de que o caso concreto não seja passível de regularização, pelo contrário, tudo indica a sua possibilidade, não se pode admitir a aplicação da sanção de demolição, mesmo que se trate de edificação inserida em terreno de marinha e área de preservação permanente.
Com efeito, constatada a existência de núcleo urbano informal situado, total ou parcialmente, em área de preservação permanente ou em área de unidade de conservação de uso sustentável ou de proteção de mananciais, a Reurb também é cabível.
Para tanto, necessário que se observe o disposto nos arts. 64 e 65 da Lei 12.651, de 25 de maio de 2012 (Código Florestal), sendo obrigatória a elaboração de estudos técnicos, no âmbito da Reurb, que justifiquem as melhorias ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior, inclusive por meio de compensações ambientais, quando for o caso.
Conclusão
A demolição pretendida pelo Município de Florianópolis nas mais de 220 ações baseia-se única e exclusivamente no fato de imóvel estar situado no entorno da Lagoa da Conceição cuja área ocupada é supostamente irregular, mesmo que algumas das construções tenham sido erigidas após a concessão de alvará e autorizações.
Contudo, a maioria dos imóveis objeto dessas mais de 220 ações poderá vir a ser regularizado, cujo pedido poderá ser apresentado pelo próprio interessado, pela Defensoria Pública, associação de bairro, etc.
A regularização pode ser realizada, a depender do caso e de forma geral, através da Reurb de Interesse Social (Reurb-S) que somente tem lugar em favor de núcleos urbanos ocupados predominantemente por população de baixa renda (art. 13, I, da Lei 13.465/17), ou, através da Reurb de Interesse Específico (Reurb-E) para a qual se exige que a área de preservação permanente não seja identificada como área de risco (art. 65 da Lei 12.651/12).
Se a regularização for impossível o que pode resultar dos estudos e levantamentos necessários, aí sim a demolição será medida equânime, a qual deverá ser precedida de inclusão em programa habitacional ou oferecimento de auxílio moradia.
Portanto, constatadas ocupações irregulares não passíveis de regularização dentro dos 15 (quinze) metros às margens da Lagoa da Conceição, tornar-se-á indispensável a demolição, razão pela recomenda-se aos proprietários consultar advogados e empresas especializados em direito ambiental e regularização fundiária urbana.
6 Comentários. Deixe novo
Ótima explicação, e lembrando que essa é a atitude certa, ninguém é dono das margens da Lagoa, essas casas antigas só tem alvará porque foram todos comprados antigamente. Tem que tirar todas essas cassas mesmo. Acham que porque tem dinheiro podem construir de qualquer jeito, além de demolir as casas tem que dar multas milionárias pelo tempo que ficou ali, e cadeia também.
POBRE COMENTANDO… QUERIA VER SE A CASA FOSSE SUA… DEVE SER MAIS UM POBRETÃO MORANDO NA PALHOÇA…
Excelente explicacao, fez um resumo de como essa dor de cabeça comecou. E como fica a segurança jurídica nesses casos?
É uma situação complicada, Francis. Fiz algumas consultas de moradores da Lagoa da Conceição nos últimos dias, e alguns que são réus tem projeto arquitetônico e alvará de construção concedido regularmente, além de o imóvel atender todas as normas ambientais, e mesmo assim é objeto de uma ação civil pública que visa a sua demolição. Outras edificações são muito antigas, e mesmo assim estão com pedido de demolição. Não há saída senão apresentar contestação (defesa) e buscar a regularização através da REURB.
Então dá para regularizar pela reurb doutor?
Sim, Inácio, a maioria dos imóveis do Lagoa da Conceição são passíveis de regularização fundiária urbana – REURB, mas é necessário analisar cada um de forma individual bem como os núcleos.