Como se sabe, no ordenamento jurídico brasileiro vige a regra dominante de que o ônus da prova recai sobre aquele a quem aproveita o reconhecimento do fato, não bastando alegar, mas provar o fato que irá atrair o direito, ônus quanto ao fato constitutivo do seu direito.
Assim, de acordo com a regra geral prevista no art. 373, I e II, do CPC, compete ao autor a produção da prova dos fatos constitutivos de seu direito, cabendo ao réu comprovar os que, de algum modo, atuem ou tenham atuado sobre fatos ligados ao direito arguido pelo autor, de modo a impedir sua formação, modificá-lo ou extingui-lo. Assim dispõe a norma:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Ensina Elpídio Donizetti[1] que o art. 373, § 1º, do CPC, “possibilita a distribuição diversa do ônus da prova conforme as peculiaridades do caso concreto, atribuindo-o à parte que tenha melhores condições de suportá-lo”.
Na distribuição da atividade probatória, o julgador deve conduzir a instrução do processo administrativo de forma a garantir a ambos litigantes, autuante e autuado, igual paridade de armas.
Logo, partindo da premissa de que as partes possuem igualdade no acesso e na facilidade da produção das provas, compete àquele que alega um fato, o ônus de prová-lo, questão essa que acaba se invertendo quando se trata de auto de infração ambiental.
Índice
Inversão do ônus da prova e auto de infração ambiental
Cediço, o auto de infração ambiental é um ato administrativo que goza de presunção de veracidade e legitimidade, gerando uma inversão do ônus da prova, sendo necessário que o administrado comprove cabalmente a situação fática que lhe permita desconstituir o auto de infração.
Ocorre que, em muitos casos, a produção de provas pelo autuado é bastante difícil ou até impossível, e exigir dele a comprovação de que não praticou a infração acaba por se transformar em prova diabólica.
Acerca da prova diabólica, destaca-se a doutrina de Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira[2]:
“A prova diabólica é aquela cuja produção é considerada como impossível ou muito difícil. Trata-se de “expressão que se encontra na doutrina para fazer referência àqueles casos em que a prova da veracidade da alegação a respeito de um fato é extremamente difícil, nenhum meio de prova sendo capaz de permitir tal demonstração.
Pode ser, no entanto, que a prova seja insuscetível de ser produzida por aquele que deveria fazê-lo, de acordo com a lei, mas apta a ser realizada pelo outro.
Nessa hipótese, caso as próprias partes não tenham convencionado validamente a distribuição do ônus da prova de modo diverso ao estabelecido pelo legislador, poderá o juiz distribuí-lo dinamicamente, caso a caso, na fase de saneamento ou instrutória – em tempo de o onerado dele desincumbir-se -, como se verá no item a seguir.
É o caso da prova unilateralmente diabólica, isto é, impossível (ou extremamente difícil) para uma das partes, mas viável para a outra.”
Ressalte-se, no que tange ao ônus da prova, o Código de Processo Civil adotou um critério mais flexível, denominado pela doutrina de distribuição dinâmica, que permite ao Juiz — ou no caso, à autoridade administrativa ambiental —, na busca pela verdade real, distribuir o ônus da prova de maneira diversa da regra ordinária.
Distribuição dinâmica do ônus da prova
Através da distribuição dinâmica do ônus da prova, autoriza-se à autoridade ambiental atribuir a responsabilidade pela produção da prova ao próprio órgão ambiental que, sabidamente, tem todo o aparato necessário e as melhores condições de produzi-la.
Aliás, o órgão autuante se encontra em posição privilegiada em relação à parte autuada, por deter estrutura e os conhecimentos técnicos específicos sobre os fatos discutidos nos autos e que são relevantes para o deslinde da causa.
É o que dispõe o art. 373, § 1º, do CPC:
Art. 373. § 1º. Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
No caso do processo administrativo ambiental, o órgão autuante é plenamente capacitado para demonstrar que o autuado praticou a conduta descrita no auto de infração ambiental, ônus do qual deve se desincumbir, haja vista a impossibilidade de demonstração de fato negativo pela parte autuada.
Aplicação da inversão do ônus da prova no processo administrativo ambiental
As regras atinentes à inversão do ônus da prova prevista no artigo 373 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) são plenamente aplicáveis ao processo administrativo ambiental por força do art. 15 do mesmo diploma, que prevê expressamente a possibilidade de aplicação subsidiária e supletiva das suas normas aos processos administrativos, in verbis:
Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
A doutrina processualista civil justifica essa aplicação subsidiária e supletiva aos demais ramos processuais com o seguinte argumento: o CPC é a principal fonte de direito processual no ordenamento jurídico brasileiro; consiste em uma lei geral do processo ou lei processual residual por excelência[3], e, devendo ser aplicado aos processos como um todo, e não apenas no processo civil[4].
De acordo com Cândido Rangel Dinamarco[5], o objetivo de tal dispositivo foi o de propagar aos processos não jurisdicionais toda a exigência de respeito aos princípios e normas inerentes ao direito processual constitucional, bem como a sua própria disciplina desses preceitos superiores, além de certos institutos técnico-processuais.
Assim, como as normas e regulamentos do processo administrativo ambiental são omissas quanto a possibilidade inversão do ônus da prova, aplica-se o disposto no artigo 373 do Código de Processo Civil, evitando transferir ao autuado a produção de uma prova diabólica, impossível ou extremamente difícil de ser produzida.
Conclusão
O Código de Processo Civil de 2015 traz a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus probandi, uma vez que, segundo o art. 373, § 1º do referido diploma, diante da impossibilidade ou à excessiva dificuldade de a parte autuada cumprir o encargo de comprovar que não praticou a conduta descrita no auto de infração ambiental.
Além disso, o órgão ambiental autuante tem estrutura adequada, com recursos humanos dotados de conhecimento específico e equipamento técnico suficiente à demonstrar a prática da infração, ou seja, tem maior facilidade de obtenção da prova.
Assim, pode a autoridade ambiental atribuir o ônus da prova de modo diverso, caso em que deverá determinar ao próprio órgão ambiental autuante a oportunidade de se desincumbir do ônus de comprovar que a parte autuada efetivamente praticou a conduta ilícita, e não se limitar apenas a lavratura do auto de infração ambiental, que tem natureza de peça acusatória.
Portanto, cabe ao julgador determinar a inversão do ônus da prova nos casos em que a parte autuada não possuir condições de produzir as provas necessárias para comprovar que não praticou a infração, ao contrário do órgão ambiental autuante, que possui todo o aparato estatal e, por óbvio, tem melhores condições de suportar o ônus probatório.
[1] Novo código de processo civil comentado: análise comparativa entre o NCPC e o CPC/1973. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 340.
[2] Fredie Didier Jr, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. Volume 2. 11ª edição. Salvador; Ed. Jus Podivm, 2016.
[3] NUNES, Dierle; STRECK, Lenio Luis; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 62-63.
[4] FREITAS, Alexandre Câmara. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. SP: Atlas, 2016. p. 23-24; NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 245;
[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil – volume I (arts. 1º a 69): das normas processuais civis e da função jurisdicional / coordenação de José Roberto Ferreira Gouvêa, Luis Guilherme Aidar Bondioli, João Francisco Naves da Fonseca. – São Paulo: Saraiva, 2018. p. 150.