A aplicação do princípio da proporcionalidade se revela adequada para se ponderar direitos e impedir a demolição de casas e imóveis construídos irregularmente, mesmo que em área de preservação permanente – APP.
O processo de ocupação histórica e urbanização se repete em inúmeras áreas urbanas ao redor deste imenso país, em situação de tal forma consolidada que se torna irrazoável a pretensão de recuperação da paisagem natural original.
Veja-se que, se aplicadas literalmente as normas ambientais, cidades inteiras deveriam ser demolidas, em todo o país, inclusive prédios públicos.
Há, no entanto, outros direitos em risco, que, ponderados em cada caso concreto, podem permitir a utilização de áreas já antropizadas e a manutenção das edificações existentes, mesmo que construídas em áreas de preservação permanente – APPs.
Índice
O que diz a doutrina
A aplicação do princípio da proporcionalidade se revela adequada para se ponderar os interesses ora contrapostos (direito ao meio ambiente equilibrado x direito ao lazer; direito ao meio ambiente equilibrado x direito à moradia; direito ao meio ambiente equilibrado x isonomia).
Tal princípio, para nós, é a solução para encontrar a melhor solução para o meio ambiente e para os cidadãos, a qual certamente não perpassa pela destruição de um imóvel ou ainda, encerramento das atividades desenvolvidas, mesmo que em área de preservação permanente.
Acerca do assunto, colhe-se da lição de Guilherme José Purvin de Figueiredo[1]:
O ordenamento jurídico vigente oferece os requisitos para a caracterização das áreas urbanas consolidadas. Todavia, nem o Código Florestal nem as resoluções do CONAMA enfrentam questão crucial, isto é, como recuperar áreas de preservação permanente com ocupação consolidada. Tome-se, como exemplo, as avenidas marginais aos rios nas grandes cidades ou os bairros situados em regiões íngremes.
À luz do Código Florestal, são de preservação permanente às margens desses rios, o topo de morros – caso da Avenida Paulista, em São Paulo – e as encostas de morros com declividade superior a 45º.
Seria, porém, rematado despropósito pretender a demolição da infraestrutura urbana existente nessas áreas. Não é necessário invocar a regra do direito adquirido para solucionar tais hipóteses, mesmo porque não existe direito adquirido de degradar o meio ambiente.
Aplicando-se, porém, o princípio da proporcionalidade, quando a reversão do status original de APP’s exigir a realização de obras de tal porte que acarretem significativo impacto ambiental e de vizinhança (arts. 36 a 38 do Estatuto da Cidade: demolições, retirada de camada asfáltica, problemas de tráfego, poluição sonora e visual, dentre outros) e, ainda, naquelas em que o custo da recuperação seja despropositado, a mesma não deverá ser exigida. (…).
A contrário senso, desde que os custos com a demolição de obras situadas em áreas de preservação permanente e o impacto ambiental provocado pelas próprias obras sejam de pequena monta, se comparados com os benefícios trazidos pela revitalização da APP, a exigência de sua recuperação será pertinente.
Impossibilidade de regularização de imóvel construído em APP?
Quanto à impossibilidade de regularização de uma determinada construção em face do disposto na Resolução CONAMA 369/2006, importa observar fora das hipóteses de interesse social, isto é, fora dos casos em que a ocupação irregular se destina à moradia de população de baixa renda, a questão é bastante polêmica.
Nesse ponto, aliás, merecem destaque as disposições constantes do novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), que, em seus arts. 64 e 65, prevê a possibilidade de regularização fundiária de interesse social ou específico de assentamentos inseridos em área urbana consolidada e que ocupam áreas de preservação permanente não identificadas como áreas de risco. Confiram-se os aludidos dispositivos de lei:
Art. 64. Na Reurb-S dos núcleos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente, a regularização fundiária será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da lei específica de regularização fundiária urbana. (Redação dada pela Lei 13.465, de 2017)
§1º O projeto de regularização fundiária de interesse social deverá incluir estudo técnico que demonstre a melhoria das condições ambientais em relação à situação anterior com a adoção das medidas nele preconizadas.
§2º O estudo técnico mencionado no § 1º deverá conter, no mínimo, os seguintes elementos:
I – caracterização da situação ambiental da área a ser regularizada;
II – especificação dos sistemas de saneamento básico;
III – proposição de intervenções para a prevenção e o controle de riscos geotécnicos e de inundações;
IV – recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de regularização;
V – comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade urbano-ambiental, considerados o uso adequado dos recursos hídricos, a não ocupação das áreas de risco e a proteção das unidades de conservação, quando for o caso;
VI – comprovação da melhoria da habitabilidade dos moradores propiciada pela regularização proposta; e
VII – garantia de acesso público às praias e aos corpos d’água.
Art. 65. Na Reurb-E dos núcleos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente não identificadas como áreas de risco, a regularização fundiária será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da lei específica de regularização fundiária urbana. (Redação dada pela Lei 13.465, de 2017)
§1º O processo de regularização fundiária de interesse específico deverá incluir estudo técnico que demonstre a melhoria das condições ambientais em relação à situação anterior e ser instruído com os seguintes elementos: (Redação dada pela Lei 13.465, de 2017)
I – a caracterização físico-ambiental, social, cultural e econômica da área;
II – a identificação dos recursos ambientais, dos passivos e fragilidades ambientais e das restrições e potencialidades da área;
III – a especificação e a avaliação dos sistemas de infraestrutura urbana e de saneamento básico implantados, outros serviços e equipamentos públicos;
IV – a identificação das unidades de conservação e das áreas de proteção de mananciais na área de influência direta da ocupação, sejam elas águas superficiais ou subterrâneas;
V – a especificação da ocupação consolidada existente na área;
VI – a identificação das áreas consideradas de risco de inundações e de movimentos de massa rochosa, tais como deslizamento, queda e rolamento de blocos, corrida de lama e outras definidas como de risco geotécnico;
VII – a indicação das faixas ou áreas em que devem ser resguardadas as características típicas da Área de Preservação Permanente com a devida proposta de recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de regularização;
VIII – a avaliação dos riscos ambientais;
IX – a comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade urbano-ambiental e de habitabilidade dos moradores a partir da regularização; e
X – a demonstração de garantia de acesso livre e gratuito pela população às praias e aos corpos d’água, quando couber.
§2º Para fins da regularização ambiental prevista no caput, ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água, será mantida faixa não edificável com largura mínima de 15 (quinze) metros de cada lado.
§3º Em áreas urbanas tombadas como patrimônio histórico e cultural, a faixa não edificável de que trata o § 2º poderá ser redefinida de maneira a atender aos parâmetros do ato do tombamento.
Regularização de imóveis independente da classe social
Há quem entenda que a política de tal natureza não poderia ser executada em favor de população de alta renda, pois esta teria condições de se realocar por conta própria.
Contudo, defendemos que não se pode ignorar que o direito à cidade sustentável, o qual encontra na regularização fundiária um instrumento relevante, tem natureza difusa, quer dizer, estende-se a pobres e a ricos.
Dessa forma, sendo inviável a recuperação de uma determinada área que se entenda como degradada em face de situação consolidada, a afirmação da isonomia não permite a exclusão da hipótese de regularização.
Não é demais observar que a ocupação mediante construções muito próximas à margem de rios, geralmente remontam há décadas, decorrentes de processo histórico.
Desse modo, a tolerância da ocupação ribeirinha por tantos anos pelo Poder Público também não exclui a possibilidade de manutenção da construção e das atividades desenvolvidas no local.
Em muitos casos, aliás, não se pode olvidar que tais ocupações, em vez de serem reprimidas, são estimuladas pelo Poder Público, e essas áreas acabam por se tornar consolidadas como área urbana, com toda a infraestrutura necessária, com pavimentação asfáltica, energia elétrica, água e esgoto, entre outros serviços e obras.
Conclusão
A reparação do dano mediante a recuperação da área, como em muitas ações civis públicas se pretende, não se afigura adequada ao fim de promoção da proteção ao meio ambiente.
Isso porque, em muitos casos, há uma situação histórica consolidada, na qual a paisagem original foi total e irreversivelmente descaracterizada, de tal maneira que a demolição da edificação e encerramento de atividades comerciais pouca diferença faria.
Pelo contrário, como temos defendido com veemência, a retirada de uma única residência ou imóvel teria inclusive o potencial de maximizar o dano ambiental, com a utilização pela população local e turística de outros mecanismos de incursão na suposta APP, o que é ambientalmente desaconselhável.
Dessa forma, não se aconselha determinar a demolição e recuperação de uma determinada área considerada de preservação permanente ou proteção ambiental, se não ficar comprovado que tal é imprescindível e efetivamente causará efeitos benéficos ao meio ambiente.
Além do mais, podemos concluir que proprietários e possuidores de imóveis construídos às margens de curso d’água (rios) ou em área de preservação permanente – APP continuem com sua ocupação.
Pode-se até impor a estes ocupantes, a obrigação de preservar a vegetação eventualmente existente, ou que promovam a regeneração onde imprescindível, sempre respeitando fauna e flora ora remanescente, mas jamais a demolição das estruturas.