Tem-se entendido, muitas vezes e de forma equivocada, que o transporte de madeira ilegal ou de origem ilícita com documentos falsos caracteriza, a um só tempo, o crime de uso de documento falso (art. 304 do Código Penal) e crime ambiental (art. 46, da Lei 9.605/98).
Contudo, entendemos que o crime de uso de documento falso é absorvido pelo crime ambiental quando os documentos falsificados são utilizadas exclusivamente com o fim de transportar madeira.
Isso porque, se o crime de falsidade ideológica ocorre em razão da falsificação de ATPF com a finalidade de praticar outro crime, evidente então que esse documento constituiu o meio necessário, a fase de preparação para a execução do crime previsto no artigo 46, da Lei 9.605/98 e deve ser por absorvido.
Com efeito, a aplicação do princípio da consunção, que pressupõe a existência de um delito como fase de preparação ou execução de outro mais grave, impondo sua absorção.
Logo, o crime ambiental absover o crime de uso de documento falso quando a autorização falsificada é utilizada para transportar madeira, ainda que a pena do primeiro delito seja menor que a do segundo.
Índice
Crime de uso de documento para transporte de madeira e crime ambiental
O crime de uso de documento falso para transporte de madeira ilegal, está previsto no art. 304 do Código Penal, verbis:
Art. 304 – Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:
Pena – a cominada à falsificação ou à alteração.
Já o crime ambiental que tal conduta caracterizaria, está previsto no art. 46 da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), assim redigido:
Art. 46. Receber ou adquirir, para fins comerciais ou industriais, madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto até final beneficiamento:
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, tem em depósito, transporta ou guarda madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem licença válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente.
Para nós, o entendimento de que o crime de uso de documento falso não pode ser absorvido pelo crime ambiental por tutelar bens jurídicos diversos, quais seja, a fé pública e o meio ambiente, é equivocado. Explicamos.
O que é o princípio da consunção
O princípio da consunção é cabível quando há uma sucessão de condutas com existência de um nexo de dependência, no qual exsurge a ausência de desígnios autônomos, e há uma relação de todo e parte, de inteiro e fração.
Referido princípio da consunção pressupõe a existência de um crime-meio para a execução do crime-fim, sendo que a proteção de bens jurídicos diversos e a absorção de infração mais grave pelo de menor gravidade não impede a absorção.
Desse modo, no transporte de madeira ilegal com documento falso, o crime ambiental do art. 46 da Lei 9.605/98 absorve o crime do art. 304 do Código Penal, por força do princípio da consunção.
Tal absorção é cabível porque o documento falso serve apenas como crime-meio para o fim de passar pela fiscalização com a madeira de origem ilegal.
Isto é, o ato de falsificar documento é meio necessário para execução de transportar madeira ilegal, razão pela qual somente esta última conduta deve ser penalizada.
Frise-se que em casos assim, o que se deve perquirir não é a existência ou não de desígnios autônomos entre os delitos, mas se uma conduta tipificada representar mero exaurimento da outra, sem potencialidade lesiva remanescente.
Logo, se uma conduta tipificada representar mero exaurimento da outra, sem potencialidade lesiva remanescente, pouco importa se tutela bens diferentes ou se o crime mais grave é absorvido pelo de menor gravidade para que seja aplicado o princípio da consunção.
Uso de documento falso e transporte de madeira ilegal
Como visto, não há imposição de que o crime-fim seja mais grave que o crime-meio, porquanto, às vezes, pode ocorrer de o crime-meio ser mais grave que o crime-fim.
O exemplo clássico da doutrina para melhor explicar o que estamos falando, é o disparo de arma de fogo e lesão corporal de natureza leve, quando a pena desta segunda é menos grave e por ser o delito-fim, acaba absorvendo o crime-meio, que é o disparo ou o porte ilegal de arma de fogo.
De igual modo é nos casos de uso do documento falso que se constitui meio necessário para execução do crime ambiental de transporte ilegal de carvão, que em sendo conduta mais ampla deve absorver a conduta menos ampla, pois caso não houvesse madeira para ser transportada, por óbvio não haveria documento falsificado para possibilitar o transporte.
Nesse sentido, é o ensinamento de Rogério Grecco[1], acerca do princípio da consunção:
“Podemos falar em princípio da consunção nas seguintes hipóteses: a) quando um crime é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro crime; b) nos casos de antefato e pós-fato impuníveis.
Os fatos, segundo Hungria, “não se acham em relação de ‘species a genus’, mas de ‘minus’ a ‘plus’, de parte a todo, de meio a fim”. Assim, a consumação absorve a tentativa e esta absorve o incriminado ato preparatório; o crime de lesão absorve o correspondente crime de perigo; o homicídio absorve a lesão corporal.
O furto em casa habitada absorve a violação de domicílio, etc. Antefato impunível seria a situação antecedente praticada pelo agente a fim de conseguir levar a efeito o crime por ele pretendido inicialmente e que, sem aquele, não seria possível.
Para se praticar um estelionato com cheque que o agente encontrou na rua, é preciso que ele cometa um delito de falso, ou seja, é preciso que o agente o preencha e assine. O preenchimento e a falsa assinatura aposta ao cheque são considerados antefatos impuníveis, necessários para que o agente cometa o delito-fim, isto é, o estelionato.”
Também nesse aspecto, a doutrina de Cezar Roberto Bitencourt[2]:
“Pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de outro crime. Em termos bem esquemáticos, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta. Na relação consuntiva, os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie, mas de minus e plus, de continente e conteúdo, de todo e parte, de inteiro e fração”.
O doutrinador Damásio de Jesus não distoa:
“O princípio da consunção tem elevada relevância jurídica no crime progressivo. Na absorção, segundo Bettiol, estamos necessariamente em face de uma ação, que, se é única em seu todo, aparece, no entanto, cindível em vários atos que se realizam sucessivamente e que violam, todos eles, uma norma da lei penal. Existe crime progressivo quando o sujeito, para alcançar um resultado, passa por uma conduta inicial que produz um evento menos grave que aquele, o autor desenvolve fazes sucessivas, cada uma constituindo um tipo de infração. Num crime, o comportamento descrito pelo núcleo do tipo é o resultado de condutas que se realizam através da passagem de uma figura criminal menos grave para outra de maior gravidade”.
Assim, mesmo em sendo atribuído ao crime ambiental pena mais branda do que ao crime de uso de documento falso, não é tal fato impedimento para aplicação do princípio da consunção.
É que o transporte de madeira caracteriza conduta mais ampla, mesmo não sendo a mais severamente apenada, do que o uso de documento falso, que apenas é utilizado pelo motorista do caminhão para viabilizar o transporte.
Reforça-se, por fim, que o uso de documento falso em casos assim, é crime-meio praticado com o fim único de alcançar o crime-fim, qual seja, passar pela fiscalização sem que fosse apreendida a carga de madeira explorada ilegalmente.
Por esta razão, deve ser o crime de uso de documento falso absorvido pelo crime ambiental, tornando-se conduta impunível isoladamente, com base no princípio da consunção, em razão do evidente nexo de dependência entre as condutas praticadas.
O que diz a Jurisprudência
Sobre a incidência do princípio da consunção entre o crime de uso de documento falso para o transporte de madeira ilegal, colhe-se da jurisprudência:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE TRANSPORTE DE MADEIRA SEM LICENÇA. CRIME DE USO DE DOCUMENTO FALSO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. ABSORÇÃO DO CRIME DE USO DE DOCUMENTO FALSO PELO CRIME DE TRANSPORTE DE MADEIRA SEM LICENÇA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. […]
2. Absorção do crime de uso de documento falso pelo crime ambiental, pois a nota fiscal e a ATPF falsas adquiridas pelo acusado foram utilizadas exclusivamente com o fim de transportar madeira.
3. Competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do presente feito, eis que a ATPF falsa apreendida, apresentada ao IBAMA para justificar o comércio de produto florestal, configura infração penal praticada contra interesse da União, pois expôs a credibilidade, a fé pública e a presunção de veracidade dos atos dessa Autarquia Federal.
4. A competência para julgar o delito ambiental justifica-se por força da conexão instrumental ou probatória com o crime de uso de documento público falso (art. 304 do CP e Enunciado nº 122 da Súmula do STJ).
Vê-se que não há obstáculo para a aplicação do princípio da consunção quando restar confirmado que um crime foi utilizado como instrumento para a prática de outro, mesmo que os crimes tutelem bens jurídicos diferentes.
Conclusão
A conclusão é de que o crime de falsidade ideológica deve ser absorvido pelo crime ambiental sempre que o documento foi falsificado com a finalidade de praticar outro crime que é comercialização de madeira ilegal.
Diante disso, há a incidência do princípio da consunção quando a falsidade ideológica, conduta anterior, foi excluída pela conduta final, consistente na prática do crime de venda de madeira sem a licença pertinente.
Para corroborar a aplicação desse princípio, o fato de que o bem jurídico efetivamente ofendido não foi a fé pública, mas o meio ambiente, em decorrência da comercialização de madeira.
Portanto, o entendimento de que o crime de uso de documento falso (art. 304 do Código Penal) é absorvido pelo crime ambiental (art. 46 da Lei 9.605/98) cosiste no fato de que o primeiro serviu como meio necessário para a execução do segundo por força do princípio da consunção.
[1] GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral, Volume I, Rio de Janeiro: Impetus, 12ª Ed., 2010, p. 29.
[2] Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 135