Como se sabe, a decisão que recebe a denúncia por crime ambiental prescinde de fundamentação exauriente, notadamente quando manifesta a aptidão formal e material da incoativa, e presença de indícios suficientes de autoria e materialidade dos delitos pelos quais foi o indivíduo é denunciado.
Contudo, a deficiência de fundamentação na decisão que recebe a denúncia por crime ambiental, limitando-se apenas a menções genéricas e padronizadas acerca da existência de autoria e materialidade ou, quando deixar de analisar as teses defensivas, caracteriza a sua nulidade.
Isso porque, o despacho de recebimento da denúncia deve ser motivado e fundamentado com análise de todas as teses defensivas, ainda que suscitamente, não podendo se limitar a mera repetição de expressões genéricas da lei, sem sequer declinar os motivos do porquê a denúncia foi recebida.
Quando a decisão não atender à garantia da motivação das decisões judiciais estampada no art. 93, incoso IX, da Constituição Federal, tem-se por inadimíssivel a decisão que recebe a denúncia, ainda que se caracterize como decisão de natureza interlocutória.
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Processo penal já é uma pena
O processo penal, por sua simples instauração, já é bastante danoso à pessoa que nele figura como acusada, gerando efeitos negativos de ordem física, psíquica e moral.
O dano que o mero início de uma ação penal acarreta para o indivíduo, ainda mais em casos com destaque midiático que muitas vezes geram os crimes ambientais, pode agravar a estigmatização com que o processo penal vinca aquele contra quem é direcionado.
Neste sentido, ao se decidir se uma persecução penal possui ou não os elementos essenciais para o seu manejo, o juiz deve ao menos demonstrar – ainda que de forma contida – a existência dos seus pressupostos de legitimidade.
Com efeito, os pressupostos processuais são: demanda judicial (denúncia); jurisdição (competência e imparcialidade do juízo); capacidade processual das partes; bem como as condições da ação, ou seja, possibilidade jurídica do pedido (tipicidade), legitimidade (Ministério Público x acusado) e interesse de agir (necessidade da ação).
Descabido é o entendimento de que a decisão de recebimento da denúncia não teria pleno caráter decisório, tampouco que sobre ela não incide o princípio da motivação obrigatória das decisões (artigo 93, IX, da Constituição Federal), que é taxativo quanto à exigência de cumprida fundamentação das decisões proferidas pelo Poder Judiciário.
Vale lembrar que o Direito Penal é a ultima ratio, devendo sempre ser evitada e desta forma, frente a qualquer dúvida, prima-se pela liberdade do indivíduo denunciado.
O que diz a jurisprudência e doutrina
A ausência de fundamentação da decisão que recebe denúncia tem sido recorrentemente nos Tribunais:
“É até intuitivo que, diante do comando legal, a admissão da acusação somente se viabilizasse mediante decisão fundamentada. Na hipótese, a motivação cumpre o papel fundamental de legitimação do processo penal, mecanismo de intervenção tão gravoso. E veja que, pouco a pouco, com o palmilhar de nossa jovem democracia, tal concepção foi se generalizando, independentemente da natureza do delito. São exemplos dessa nova perspectiva, o rito sumaríssimo trazido pela Lei 9.099/95, o procedimento da anterior legislação de drogas, Lei 10.409/02, e, o da atual, Lei 11.343/06. E, para coroar tal compreensão, as recentes reformas do Código de Processo Penal cristalizaram, de modo amplo, a necessidade de que o magistrado, antes de empolgar a ação penal, zele pela sua higidez, justificando-se o processo apenas diante de comprovado embasamento – formal e material” (STJ – HC: 76319 SC, 6ª Turma, Relator: Ministro NILSON NAVES, 11/12/2008)
O percuciente entendimento de AURY LOPES JR. e Alexandre Moraes da Rosa[1] também é digno de ser trazido à colação:
“Além da sentença, a decisão que recebe a denúncia é a mais importante. Com toda a problemática que possa apresentar, pelo menos reconhece as condições da ação (já criticamos em nossos livros a apropriação da Teoria Geral do Processo, para onde remetemos o leitor) e a existência de justa causa (elementos mínimos de autoria e materialidade). Por ela, então, o Estado-Juiz diz que há possibilidade da persecução penal. E isso não é pouco diante de toda a estigmatização decorrente do fato de se ocupar o lugar de acusado. Ausente qualquer pressuposto, condição ou justa causa, deve ser rejeitada (CPP, artigo 395). Para que o acusado submetido ao processo penal possa entender as razões da instauração da ação penal o Estado precisa dizer os fundamentos. O acusado ou seu advogado não podem adivinhar a motivação que, em qualquer democracia, não pode ser implícita. Há de existir transparência e fundamentação (…)”.
Idêntica é a posição doutrinária de Rogerio Lauria Tucci[2], para quem:
“É, portanto, mediante a motivação que o magistrado pronunciante de ato decisório mostra como apreendeu os fatos e interpretou a lei que sobre eles incide, propiciando, com as indispensáveis clareza, lógica e precisão, a perfeita compreensão da abordagem de todos os pontos questionados e, conseqüente e precipuamente, a conclusão atingida(…) Daí, a afirmada imprescindibilidade da motivação de todos os atos dos órgãos jurisdicionais que tenham conteúdo decisório, consubstanciado no dever funcional de justificação do comportamento profissional dos agentes do Poder Judiciário, que, pela sua natureza, inadmite qualquer limitação” “não se pode falar em fundamentação hábil quando a decisão de recebimento da denúncia ou da queixa limita-se à afirmação da co-existência de fumus boni júris (fundamento razoável da acusação) e do legítimo interesse de agir do acusador, público ou privado: é absolutamente necessário que o órgão jurisdicional justifique-os, em consonância e perfeita harmonia com os elementos colhidos nos autos de investigação criminal ou constantes das peças de informação”.
Acerca do caráter inevitavelmente corrosivo, para a pessoa do acionado, da persecução penal, cujo início não é mera instrumentalidade, Ada Pellegrini Grinover[3] leciona com a propriedade de sempre:
“O processo penal não pode ser entendido, apenas, como instrumento de persecução do réu. O processo penal se faz também – e até primacialmente – para a garantia do acusado. (…) Por isso é que no Estado de direito o processo penal não pode deixar de representar tutela da liberdade pessoal; e no tocante à persecução criminal deve constituir-se na antítese do despotismo, abandonando todo e qualquer aviltamento da personalidade humana. O processo é uma expressão de civilização e de cultura e consequentemente se submete aos limites impostos pelo reconhecimento dos valores da dignidade do homem.”
Por isso, quando o despacho que recebe a denúncia é genérico, padronizado, não analisa as teses defensivas e serviria para qualquer outro processo, ter-se-á caracterizado a sua nulidade visto que carente do requisito fundamental insculpido no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal.
Ausência de fundamentação da decisão que recebe a denúncia por crime ambiental
A jurisprudência tem entendido que a decisão que recebe a denúncia (art. 396, CPP) e aquela que analisa a resposta à acusação (art. 397, CPP) não demandam motivação e fundamentação exauriente.
É que de acordo com o entendimento jurisprudencial, a decisão que recebe a denúncia tem natureza interlocutória e por isso prescinde de análise profunda, sob pena de indevida antecipação do juízo de mérito, que somente poderá ser proferido após o desfecho da instrução criminal, com a devida observância das regras processuais e das garantias da ampla defesa e do contraditório.
Isso significa que não se exige que o julgador rebata, de forma exaustiva, todas as alegações apresentadas pelo denunciado para concluir que não estão presentes as hipóteses de absolvição sumária ou que a inicial acusatória não está apta para dar início à ação penal.
Contudo, embora não seja necessária extensa fundamentação na decisão que recebe a denúncia por crime ambiental, não se admite concisão tamanha que sugira a própria ausência de exame da resposta à acusação ou análise dos pressupostos da ação, circunstância que viola o dever de fundamentação das decisões judiciais.
Decisão genérica e padronizada de recebimento da denúncia é nula
É nula a decisão que recebe a denúncia se mostra demasiadamente genérica e padronizada sem identificar o que as alegações do denunciado que está sendo refutado.
Com efeito, decisão padrão, que poderia ser aplicável a qualquer caso, é diferente de decisão de recebimento de denúncia que prescinde de fundamentação exaustiva.
Isso porque, ainda que não se exija a incursão aprofundada no recebimento da denúncia, é necessário que o ato seja minimamente motivado de forma que possibilite ao acusado tomar conhecimento dos elementos que levaram o magistrado a decidir pelo prosseguimento do feito, a teor do disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal.
Certo é que a decisão que serve para qualquer hipótese acaba por não analisar de forma individualizada o pleito do acusado, a denotar nulidade por ausência de fundamentação.
Ora, como assentado pelo STJ no HC 375.180, “é essencial que o julgador demonstre que conhece os autos e os pleitos das partes. Não se admite decisão teratológica, genérica ou desvinculada da realidade processual. O exame detido do processo é pré-requisito para um julgamento justo e equânime”.
Conclusão
A decisão que recebe a denúncia será nula quando carecer de fundamentação idônea, padronizada, genérica ou não analisar minimamente as teses defensivas postas na resposta à acusação, quando for o caso.
Embora permaneça a jurisprudência no sentido de não se exigir, na análise da resposta à acusação, uma cognição plena da matéria elencada pela defesa, não se pode confundir fundamentação concisa com ausência de fundamentação.
Assim, sempre que o magistrado proferir decisão padrão e genérica, fazendo menção tão somente ao fato de que as hipóteses de absolvição sumária não se encontravam presentes ou que há meros indícios de autoria e materiadade, seguida de designação de data para a audiência de instrução, cabível a sua nulidade.
Por fim, vale lembrar que que a jurisprudência, há muito se firmou no sentido de que a declaração de nulidade exige a comprovação de prejuízo, em consonância com o princípio pas de nullité sans grief, consagrado no art. 563 do Código de Processo Penal, cabendo ao acusado demonstrá-lo.
No caso de decisão de recebimento de denúncia proferida de forma genérica e padronizada, o prejuízo consistirá no fato de que, caso melhor analisada a denúncia e seus elementos haveria rejeição ou, caso acolhida as teses lançadas na resposta à acusação, haveria a possibilidade de absolvição sumária.
Para concluir, ainda que não seja o caso de acolhimento das alegações do denunciado, estas devem ser apreciadas e afastadas pelo magistrado, com fundamentação suficiente, mesmo que concisa, sob pena de a decisão que receber a denúncia ser anulada.
[1] “Quando o acusado é VIP, o recebimento da denúncia é motivado”. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-vip-recebimento-denuncia-motivado/
[2] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 3º edição, 2009, pp. 189, 193 e 203.
[3] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal, 2ª. edição, 1982, pp. 20 e 52.