O auto de infração ambiental lavrado sob a acusação de destruir floresta amazônica, objeto de especial preservação sem autorização do órgão ambiental competente, tipificado no artigo 50 do Decreto 6.514/08 é nulo se o agente de fiscalização não comprovar o tipo de vegetação ou floresta considerado de especial preservação.
Isso porque, o bem tutelado pelo artigo 50 do Decreto 6.514/08 são as florestas e demais formas de vegetação nativa objeto de especial preservação, ou seja, que possuem um regime jurídico próprio, a exemplo da Mata Atlântica, APPs, Reserva Legal e Unidade de Conservação.
Dito de outra forma, por força do principio da legalidade, não é toda e qualquer tipo de vegetação ou floresta protegia pelo artigo 50, veja-se:
Art. 50. Destruir ou danificar florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, objeto de especial preservação, sem autorização ou licença da autoridade ambiental competente:
Multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por hectare ou fração.
§1º A multa será acrescida de R$ 500,00 (quinhentos reais) por hectare ou fração quando a situação prevista no caput se der em detrimento de vegetação secundária no estágio inicial de regeneração do bioma Mata Atlântica.
§2º Para os fins dispostos no art. 49 e no caput deste artigo, são consideradas de especial preservação as florestas e demais formas de vegetação nativa que tenham regime jurídico próprio e especial de conservação ou preservação definido pela legislação.
Embora seja comum que o órgão ambiental considere qualquer área desmatada como de especial preservação, tal premissa é totalmente equivocada se o agente de fiscalização no momento da lavratura do auto de infração ambiental não indicar a legislação que a qualifica como tal.
Índice
Bioma Amazônico não é de especial preservação
Sabe-se que a intenção do legislador é punir com maior severidade aquele que desmata áreas especificamente definidas em lei como de especial preservação, com regime jurídico próprio e especial de conservação.
Contudo, a Floresta Amazônica per si, não é objeto de especial preservação. Entendimento contrário revela-se extremamente inadequado, como se demonstrará.
É que a Constituição Federal, em seu art. 225, §1º, inciso III, regulamenta a proteção dispensada ao meio ambiente, inclusive dando ao legislador infraconstitucional a incumbência de definir, em todas as Unidades da Federação, espaços territoriais a serem especialmente protegidos a fim de assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Paulo Affonso Leme Machado[1] sustenta que, segundo a Constituição, os espaços territoriais especialmente protegidos podem ser criados através de resolução, decreto, lei ou portaria.
Também afirma que não há uma limitação nos nomes ou regimes jurídicos das áreas a serem protegidas, desde que sejam reconhecidas como tal.
Na opinião do autor, as áreas a serem especialmente protegidas são: as Unidades de Conservação, a Reserva Legal e as Áreas de Preservação Permanente.
Amazônia não pode ser considerada de especial preservação
Tais espaços são definidos de forma específica, para que a exploração econômica dos mesmos, bem como qualquer forma de supressão de vegetação destes se dê de forma excepcionalíssima, observado o caso concreto, a necessidade do empreendimento e os potenciais danos ao meio ambiente.
É descabido incluir todo o bioma amazônico em tal categoria, posto que não é qualquer porção de terra na Amazônia brasileira que deve ser tão rigorosamente preservado, mas somente aqueles de extrema relevância ambiental, cultural ou histórica.
Não fosse assim, o Código Florestal não se preocuparia em estabelecer áreas de Reserva Legal na Amazônia ou mesmo APPs, tampouco a legislação específica estabeleceria Unidades de Conservação, pois todo o bioma já seria área de excepcional preservação.
Julgamento da ADI 3540
Corroborando tal interpretação, vale trazer à baila a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 3540 – DF.
Embora não tenha sido instado a se manifestar especificamente sobre o conceito aqui discutido, a decisão da Corte Suprema já traz, em si, o pressuposto de que espaços especialmente protegidos são áreas especificamente destinadas em lei como tal, e não a Amazônia, genericamente, em sua totalidade.
Explica-se: o Ministério Público Federal ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade em face do artigo 1° da Medida Provisória 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, que alterou o art. 4º do Código Florestal vigente à época para permitir ao Poder Público que autorizasse a supressão em área de APP sem prévia edição de lei, mas tão somente por meio de ato administrativo, desde que devidamente fundamentado e com realização de procedimento administrativo próprio.
Entendeu o MPF que a nova redação do Código violava a Constituição Federal, pois esta teria expressamente previsto a necessidade de edição de lei para autorizar supressão de vegetação em espaços especialmente protegidos.
Temia ainda o Procurador da República que a supressão em APP, que deve ser ato excepcional, se tornasse atividade corriqueira da administração Pública.
De plano já se percebe o entendimento jurídico acerca do termo “espaço especialmente protegido”.
STF afastou o caráter especial da Floresta Amazônica
De forma alguma pode ser entendido como toda a Floresta Amazônica, posto que nem mesmo se cogita a necessidade de edição de lei para autorizar qualquer exploração econômica na Amazônia, inclusive fora da Reserva Legal.
Sabe-se que o mesmo se dá por ato administrativo, nos termos da legislação ambiental.
Assim foi que o Supremo Tribunal Federal acabou por julgar improcedente a ADI, interpretando o dispositivo constitucional no sentido de que o regime jurídico das áreas especialmente protegidas é que se submete ao princípio da reserva legal.
E mais, disse o STF que tal só pode ser alterado por lei, mas que as supressões e alterações na vegetação destes espaços podem ser autorizadas por ato administrativo, desde que em conformidade com os ditames constitucionais.
Ausência de especial proteção da floresta ou vegetação amazônica
Evidente que não é toda a Floresta Amazônica brasileira que se enquadra como “espaço especialmente protegido”, posto que, à evidência, não é toda ela que se encaixa em regime jurídico especial de proteção.
Ou seja, apenas as áreas definidas na legislação, como as Unidades de Conservação, regulamentadas pelo regime especial da Lei 9.985, as APPs, reguladas de forma específica nos arts. 7º ao 9º do Código Florestal, e assim por diante, é que são objeto de especial preservação.
Até o presente momento, o único bioma que atendeu à especificação constitucional é a Mata Atlântica, que se encontra regulada pela Lei 11.428/2006, onde, além da regulação específica, ainda há o estabelecimento de normas gerais acerca da proteção da vegetação, das áreas de preservação permanente e reserva legal pela Lei n. 12.651/2012 (Código Florestal).
As áreas da Floresta Amazônica que seriam objeto de especial preservação são as áreas de preservação permanente e as de reserva legal, assim como as unidades de conservação concebidas nomodelo da legislação.
Somente essas áreas é que têm regime jurídico próprio e especial, de forma que não há regime jurídico especial para as áreas particulares situadas na Amazônia, onde é permitido o uso alternativo do solo.
Atipicidade da infração ambiental do artigo 50 do Decreto 6.514/08
É claro que seria muito “melhor” se houvesse lei impondo sanção à infração praticada em área destituída de “especial proteção” (lege ferenda).
Do mesmo modo, seria de todo recomendável que o legislador, em cumprimento ao comando constitucional, houvesse definido em lei os termos da proteção conferida ao bioma amazônico, pois tal ausência implica riscos ao meio ambiente, às pessoas que nela vivem e dela dependem, além de insegurança jurídica sobre a questão.
Todavia, o ato normativo (Decreto 6.514/08) não permite tal punição (lege habemus), ou seja, não autoriza que qualquer desmatamento ou supressão de vegetação na região da Amazônia seja considerada infração administrativa ambiental.
Assim, considerando a ausência de tipificação da conduta, é nulo o auto de infração lavrado pela autoridade administrativa, bem como do termo de embargo que enquadro a conduta no artigo 50 do Decreto 6.514/08 sem demonstrar que a área afetada é de especial preservação.
Desse modo, deve-se considerar a ausência de tipificação da conduta como causa de nulidadedo auto de infração, bem como de eventual termo de embargo, uma vez que se não há regulamentação da conduta de destruir ou danificar floresta localizada fora de área especialmente protegida, não há infração ambiental.
Com isso, depreende-se como consequência que a conduta de destruir ou danificar floresta amazônica é atípica até que sobrevenha regulamentação.
Essa inexistência de regulamentação, por ora, impede a aplicação de sanção administrativa, haja vista que a imposição de penalidade somente se tornar legítima quando o ato praticado pelo administrado estiver definido por lei como infração administrativa anteriormente.
Conclusão
Deste modo, para a verificação de correspondência de infração ambiental ocorrida em área situada na Amazônia Legal, é necessário que haja delimitação dessas áreas (preservação permanente e reserva legal) dentro da área total do imóvel, para que, então, seja aplicada a legislação pertinente.
Assim, conclui-se que a Floresta Amazônica não é bem de especial proteção ou preservaçãode per si,uma vez que tal qualificação não decorre da disposição constante da Constituição Federal acerca dos biomas considerados patrimônio nacional, nem tampouco das normas do Código Florestal.
Nesse sentido, se o agente de fiscalização indicar o artigo 50 do Decreto 6.514/08 como norma infringida, porém, deixar de demonstrar qual é a vegetação ou floresta especialmente protegida, o auto de infração ambiental será nulo por erro na tipificação.
A descrição equivocada dos fatos e a capitulação equivocada constitui-se em vício insanável, posto que a mera desclassificação para outro dispositivo legal e manutenção do mesmo auto de infração cercearia o direito de defesa do autuado, violando frontalmente o princípio constitucional do contraditório e ampla defesa, de forma que o auto de infração e eventual embargo são nulos.
[1] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19a Edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2011.