A criação de Unidades de Conservação não se consuma apenas por edição do decreto, sendo imprescindível a desapropriação dos imóveis atingidos em até 5 anos a partir de sua criação, findo o qual incidirá o instituto da caducidade tornando atípica eventual infração ambiental por danos à unidade de conservação, conforme vamos explicar.
Pois bem. A Lei Federal 9.985 de 18 de julho de 2000 regulamentou o artigo 225, inciso III da Constituição Federal, instituindo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, popularmente chamada de Lei do SNUC, que estabelece critérios e normas para criação, implantação e gestão das unidades de conservação, as quais são divididas em Unidades de Conservação de Proteção Integral e Unidades de Conservação de Uso Sustentável.
As Unidades de Conservação – UCs de Proteção Integral tem o objetivo de preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, e dividem-se em:
- Estação Ecológica;
- Reserva Biológica;
- Parque Nacional;
- Monumento Natural; e,
- Refúgio da Vida Silvestre.
Já as Unidades de Conservação – UCs de Uso Sustentável, por sua vez, visam a compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais e abrange as categorias de:
- Área de Proteção Ambiental;
- Área de Relevante Interesse Ecológico;
- Floresta Nacional;
- Reserva Extrativista;
- Reserva de Fauna;
- Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e,
- Reserva Particular do Patrimônio Natural).
As unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público, geralmente através de decreto, e devem ser precedidas de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme dispõe o art. 22 da Lei Federal 9.985/00 regulamentado pelo Decreto 4.340/02.
Índice
Unidade de Conservação não desapropriada em 5 anos
O art. 225, § 1°, III, da Constituição Federal autoriza o Poder Público de definir em todas as unidades da Federação espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos através da edição de decretos.
Contudo, a criação de uma unidade de conservação que resultar na desapropriação ou limitação da área depende de recursos financeiros para indenizar ou compensar os seus proprietários ou posseiros, cujo prazo é de 5 anos contados da data do decreto de criação da unidade de conservação, findo o qual caducará, nos termos do art. 10 do Decreto-Lei 3.365/41.
Assim, ultrapassado mais de 5 anos da criação da unidade de conservação, se não houver qualquer iniciativa pelo Poder Público, no sentido do apossamento, desapropriação ou demarcação, e a área permanecendo no domínio pleno do particular, incidirá a figura da caducidade do decreto que criou a unidade de conservação, conforme previsto no art. 10 do Decreto-Lei 3.365⁄41.
Veja que referido artigo é muito claro ao dispor que a desapropriação de áreas declaradas como de utilidade pública deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de 5 anos, contados da data a expedição do respectivo decreto e finos os quais este caducará. Esse se aplica aos decretos expropriatórios de áreas inseridas em unidades de conservação.
Significa dizer que, ultrapassado o prazo de 5 anos sem que o Poder Público tenha efetivado o ato expropriatório ou praticado qualquer esbulho possessório, resulta inequívoca a caducidade do ato declaratório de utilidade pública, falecendo de tipicidade as infrações administrativas previstas no Decreto 6.514/08 relativas às unidades de conservação.
Infrações administrativas ambientais praticadas em Unidade de Conservação
O Decreto Federal 6.514/08 tratou de estabelecer uma subseção exclusiva para as infrações cometidas exclusivamente em Unidades de Conservação. Ao todo, são nove infrações ambientais:
Art. 84. Introduzir em unidade de conservação espécies alóctones:
Art. 85. Violar as limitações administrativas provisórias impostas às atividades efetiva ou potencialmente causadoras de degradação ambiental nas áreas delimitadas para realização de estudos com vistas à criação de unidade de conservação:
Art. 87. Explorar comercialmente produtos ou subprodutos não madeireiros, ou ainda serviços obtidos ou desenvolvidos a partir de recursos naturais, biológicos, cênicos ou culturais em unidade de conservação sem autorização ou permissão do órgão gestor da unidade ou em desacordo com a obtida, quando esta for exigível:
Art. 88. Explorar ou fazer uso comercial de imagem de unidade de conservação sem autorização do órgão gestor da unidade ou em desacordo com a recebida:
Art. 89. Realizar liberação planejada ou cultivo de organismos geneticamente modificados em áreas de proteção ambiental, ou zonas de amortecimento das demais categorias de unidades de conservação, em desacordo com o estabelecido em seus respectivos planos de manejo, regulamentos ou recomendações da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio:
Art. 90. Realizar quaisquer atividades ou adotar conduta em desacordo com os objetivos da unidade de conservação, o seu plano de manejo e regulamentos:
Art. 91. Causar dano à unidade de conservação:
Art. 92. Penetrar em unidade de conservação conduzindo substâncias ou instrumentos próprios para caça, pesca ou para exploração de produtos ou subprodutos florestais e minerais, sem licença da autoridade competente, quando esta for exigível:
Art. 93. As infrações previstas neste Decreto, quando afetarem ou forem cometidas em unidade de conservação ou em sua zona de amortecimento, terão os valores de suas respectivas multas aplicados em dobro, ressalvados os casos em que a determinação de aumento do valor da multa seja superior a este ou as hipóteses em que a unidade de conservação configure elementar do tipo.
Todos esses dispositivos são normas penais em branco que exigem para sua tipificação a existência de “Unidade de Conservação”, a qual somente pode ser assim qualificada se criada em estrita observância aos requisitos da Lei 9.985/00, ou seja, desapropriada e indenizada em até 5 anos após a sua criação.
Note-se que a infração ambiental prevista no artigo 93 estende-se a todas as demais tipificações previstas no Decreto 6.514/08 quando afetarem Unidades de Conservação ou sua zona de amortecimento.
Contudo, se a unidade de conservação foi criada há mais de 5 anos sem que tenha ocorrido a expropriação da área com pagamento de justa indenização, referidas infrações são atípicas em razão da caducidade do seu decreto de criação.
Decreto que cria Unidade de Conservação caduca e impede autuação
Conforme visto, se a declaração de utilidade pública ocorreu há mais de 5 anos da data da lavratura do auto de infração, e sem que tenha sido realizada a desapropriação, resta evidente a caducidade do decreto de criação da unidade de conservação para utilidade pública, afastando, pois, quaisquer restrições sobre o uso da área.
Significa dizer que normas punitivas que tragam a categoria “unidade de conservação” como elemento objetivo de caracterização da tipicidade da conduta são inaplicáveis aos titulares de domínio. Ora. Nenhuma unidade de conservação pode se erigir à custa de particulares.
A esses proprietários que deveriam ser expropriados e indenizados, mas não foram, sujeitam-se unicamente às sanções de direito comum, aqui entendidas como aquelas incidentes frente a qualquer proprietário, independentemente de seu imóvel encontrar-se ou não dentro de unidade de conservação, como por exemplo, as normas que tutelam as áreas de preservação permanente, vegetação nativa, etc.
As restrições impostas à propriedade particular situada dentro da unidade de conservação transpõem às raias de meras limitações administrativas, tem-se uma aniquilação ao direito de propriedade a legitimar o confisco, o que é dedado pela própria Constituição Federal.
Desse modo, se juridicamente inexistente a almejada “unidade de conservação”, o elemento objetivo-descritivo do tipo administrativo carece de tipicidade, ou seja, qualquer auto de infração ambiental lavrado por suposta conduta ilícita ao proprietário ou posseiro inserido dentro dessa área será nulo.
Enquanto não houver a imissão na posse pelo Poder Público mediante desapropriação e justa indenização, o proprietário pode usar, gozar e dispor do imóvel objeto de decreto expropriatório, conforme prevê o art. 1.228 do Código Civil:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
A simples declaração de utilidade pública, para fins de desapropriação, não retira do proprietário do imóvel o direito de usar, gozar e dispor do seu bem, podendo até aliená-lo.
Enquanto não deferida e efetivada a imissão de posse provisória, o proprietário do imóvel continua responsável pela área e pode utilizá-la sem que isso configure infração ambiental.
Jurisprudência sobre caducidade do decreto que cria UC
A ausência de ilícito ambiental quando não efetiva a desapropriação é questão sedimenta pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ.
Segundo o STJ, embora se refira ao crime ambiental do art. 40 da Lei 9.605/98 aplicável às infrações administrativas praticadas em unidades de conservação —, não efetivada a desapropriação pelo Poder Público em até 5 anos após a edição do decreto de criação da unidade de conser4vação, a propriedade será considerada privada, afastando a tipicidade da infração:
PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ART. 40 DA LEI 9.605/98. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. UNIDADE DE CONSERVAÇÃO FEDERAL. DECRETO FEDERAL EDITADO EM 1972. DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA NUNCA CONSUMADA. CADUCIDADE DO DECRETO ORIGINAL. PERMANÊNCIA DA ÁREA SOB PROPRIEDADE DO PARTICULAR. IMPOSSIBILIDADE DE SE LIMITAR O DIREITO DE PROPRIEDADE CONFERIDO CONSTITUCIONALMENTE. TIPICIDADE AFASTADA QUANTO AO DELITO DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. Discute-se se o dano causado ao Parque Nacional da Serra da Canastra – Unidade de Conservação Federal (UCF) instituída pelo Decreto 70.355, de 3/4/72 -, narrado na peça acusatória, configura o delito descrito no art. 40 da Lei n. 9.605/98, com competência da Justiça Federal, mesmo em se tratando de propriedade privada, pois não efetivada a desapropriação pelo Poder Público.
2. Firmou este Tribunal compreensão de que, por se tratar de área de preservação permanente de domínio da União, embora em propriedade privada, seria considerado de interesse do ente federal, nos termos do que dispõe o art. 20, III, da CF/88.
3. Na hipótese, no entanto, o Decreto Federal foi editado em 1972 e a desapropriação jamais se consumou, permanecendo a área sob a propriedade do particular, assim como diversas outras no País que, “criadas no papel”, acabam não se transformando em realidade concreta.
4. O art. 10 do Decreto-Lei n. 3.365, de 21/6/41, o qual dispõe sobre as desapropriações por utilidade pública, estabelece que referida expropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do decreto e findos os quais este caducará.
5. Da peça acusatória consta que os acusados teriam suprimido vegetação nativa para plantio de capim em área de preservação permanente (margens de curso d’água afluente do ribeirão Babilônia), bem como construíram um poço, no interior da cognominada “Fazenda Vale Formoso”, Delfinópolis/MG, causando dano direto ao Parque Nacional da Serra da Canastra (unidade de conservação de proteção integral).
6. Ocorre que a constatação da referida supressão, a qual teria dado causa aos danos indicados, deu-se apenas em julho de 2008, quando já operada a caducidade do Decreto original (e não se tem nos autos qualquer notícia de sua reedição).
7. Superada a caducidade do Decreto Federal há tempos, não há como limitar-se o direito de propriedade conferido constitucionalmente, sob pena de se atentar contra referida garantia constitucional, bem como contra o direito à justa indenização, previstos nos incisos XXII e XXIV do art. 5º da CF.
8. Tipicidade do fato afastada no que se refere ao delito de competência da Justiça Federal (art. 40 da Lei n. 9.605/98). 9. Agravo regimental improvido. (STJ – AgRg no AREsp: 611366 MG 2014/0299347-4, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 12/09/2017, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/09/2017).
Conforme se extrai da jurisprudência do STJ, tendo sido superada a caducidade do Decreto Federal há tempos, não haveria razão para limitar o direito de propriedade conferido constitucionalmente, sob pena de se atentar contra referida garantia constitucional, bem como contra o direito à justa indenização, previstos nos incisos XXII e XXIV do art. 5º da Constituição Federal.
Conclusão
Embora a legislação determine a desapropriação de áreas inseridas na poligonal do decreto que cria as Unidades de Conservação, a Administração Pública, ao invés de desapropriar e quitar as indenizações, tem adotado posturas conducentes a sufocar e aniquilar proprietários e posseiros que estão nestas áreas através de imposição diuturna de embargos, interdições e multas, etc.
Não é demais repetir o entendimento do STJ de que a criação de uma unidade de conservação por ato unilateral da administração, sem indenização, afronta ao art. 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal, o qual determina que a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro.
Não se ignora que a necessidade de preservação do meio ambiente ou da criação de unidades de conservação. Contudo, essa preservação ambiental não pode se dar ao arrepio da lei, por mero voluntarismo da Administração.
Ora. É inviável impor aos proprietários um regime jurídico de restrição sobre suas áreas, sem que tenha havido desapropriação ou pagamento de prévia e justa indenização, e muito considerar qualquer ato do proprietário como dano à unidade de conservação, que aliás, só existe no papel.
Dito de outra forma, não se pode admitir a eficácia do regime jurídico de uma unidade de conservação sobre os imóveis por ela abrangidos após a caducidade do seu decreto de criação.
Isso porque, se não efetuada a contrapartida, qual seja, a indenização expropriatória, qualquer infração administrativa imputada ao proprietário é atípica por não estar ele submetido ao regime jurídico especial decorrente de sua criação.
Portanto, é nulo o auto de infração ambiental lavrado contra o proprietário ou posseiro por suposta infração ambiental em Unidade de Conservação que ainda não foi expropriadas e indenizada em razão da atipicidade, ressalva as infrações que podem ser praticadas por qualquer proprietário, independentemente de seu imóvel encontrar-se ou não dentro de unidade de conservação.