O crime de molestar intencionalmente espécie de cetáceo – mamíferos aquáticos como as baleias e os golfinhos – nas águas jurisdicionais brasileiras está previsto nos artigos 1° e 2° da Lei 7.643/87, verbis:
Art. 1º Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras.
Art. 2º A infração ao disposto nesta lei será punida com a pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) Obrigações do Tesouro Nacional – OTN, com perda da embarcação em favor da União, em caso de reincidência.
O crime em questão proíbe a pesca ou qualquer forma de molestamento intencional de “cetáceos”. Anote-se desde já, que a conduta punível é aquela atinente a intenção deliberada do agente em praticar algum ato que e enquadre em molestar.
Pois bem. Especificamente à intenção de “molestar” para fins de adequação ao tipo penal, esta caracteriza-se pelo ato de causar incômodo, prejudicar, agredir, maltratar, importunar ou ofender com intenção, vontade ou desejo.
Isto é, o tipo penal explicita o dolo como elemento subjetivo obrigatório para consumação do crime, de modo que inexistente o dolo consistente em “molestar” cetáceos (baleia), não há se falar em conduta típica.
Condutas como filmar ou fotografar cetáceos (baleias); estar com embarcação próxima aos animais, principalmente nos casos em que foi o animal que apareceu repentinamente perto da embarcação; mergulhar perto de cetáceos (baleias), dentre outras condutas que não oferecem riscos aos animais, mas sim, mera admiração, não pode ser considerado “molestamento intencional de cetáceos”.
Um ponto importante a ser observado, é que a norma penal em análise não remete para nenhuma norma complementar, limitando-se a proibir a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras, conforme prevê o art. 1º da Lei 7.643/87.
Já o art. 2º fixa de 2 a 5 anos de reclusão, multa de 50 a 100 OTN e a perda da embarcação no caso da prática do crime previsto no art. 1º. Ou seja, a própria Lei prevê o crime, especifica a conduta e indica o quantum da pena, não remetendo a qualquer outra norma. Logo, não pode ser considerada norma penal em branco, uma vez que independente de norma para ser complementada.
Índice
Ilegalidade da Portaria 117/96 IBAMA ao ampliar as hipóteses de crime de molestar cetáceo (baleia)
A matéria foi objeto de regulamentação pelo IBAMA através da Portaria 2.306, de 22 de novembro de 1990, posteriormente reformulada pela Portaria 117, de 26 de dezembro de 1996, que previu infração sujeita às penalidades determinadas pela Lei 7.643/87 em caso de molestamento intencional de baleia:
Art. 1° Fica definido o presente regulamento visando prevenir e coibir o molestamento intencional de cetáceos encontrados em águas jurisdicionais brasileiras, de acordo com a Lei n° 7.643, de 18 de dezembro de 1987.
Art. 9° Os infratores das normas estabelecidas nesta Portaria estarão sujeitos às penalidades determinadas pela Lei n° 7.643, de 18 de dezembro de 1987, e demais normas legais vigentes.
Referida portaria ainda elenca no art. 2º as proibições para embarcações cuja violação importa na infração punida com as sanções da Lei 7.643/87:
Art. 2° É vedado a embarcações que operem em águas jurisdicionais brasileiras:
a) aproximar-se de qualquer espécie de baleia (cetáceos da Ordem Mysticeti; cachalote, Physeter macrocephalus, e orca, Orcinus orca) com motor ligado a menos de 100m (cem metros) de distância do animal mais próximo;
b) religar o motor antes de avistar claramente a (s) baleia (s) na superfície ou a uma distância de, no mínimo, de 50m (cinqüenta metros) da embarcação;
c) perseguir, com motor ligado, qualquer baleia por mais de 30 (trinta) minutos, ainda que respeitadas as distâncias supra estipuladas;
d) interromper o curso de deslocamento de cetáceo (s) de qualquer espécie ou tentar alterar ou dirigir esse curso;
e) penetrar intencionalmente em grupos de cetáceos de qualquer espécie, dividindo-o ou dispersando-o;
f) produzir ruídos excessivos, tais como música, percussão de qualquer tipo, ou outros, além daqueles gerados pela operação normal da embarcação, a menos de 300 (trezentos metros) de qualquer cetáceo;
g) despejar qualquer tipo de detrito, substância ou material a menos de 500m (quinhentos metros) de qualquer cetáceo, observadas as demais proibições de despejos de poluentes em Lei.
Por seu turno, o art. 3º dispõe especificamente da prática de mergulho ou natação realizada próximo às baleias:
Art. 3° É vedada a prática de mergulho ou natação, com ou sem auxílio de equipamentos, a uma distância inferior a 50m (cinquenta metros) de baleia de qualquer espécie.
Veja-se que a Portaria 117/96 expressamente remete às penas previstas na Lei 7.643/87, o que leva a conclusão lógica de que referido ato normativo ampliou as hipóteses para o tipo penal de molestar baleia, o que é vedado na seara penal e fere o princípio da legalidade.
Isso porque, por se tratar de ato normativo administrativo e infralegal, portarias não têm o condão de incluir tipo penal que não esteja previsto em Lei, no caso, na Lei 7.643/87.
Somado a isso, a conduta de molestar intencionalmente cetáceo (baleia), além de ser doloso (por isso o intencional), tem que ter certa potencialidade a causar alguma agressão ao animal marinho, com potencialidade lesiva análoga ou com certa pertinência à lesividade da pesca que, para fins do tipo penal, refere-se à pesca predatória, agressiva ou dizimadora.
Infração administrativa de molestar cetáceo (baleia)
De fato, existe infração administrativa ambiental de molestar cetáceo (baleia) que não é a da Portaria 117/96, e sim a do art. 30 do Decreto Federal 6.514/2008, punível com multa ambiental de R$ 2.500,00:
Art. 30. Molestar de forma intencional qualquer espécie de cetáceo, pinípede ou sirênio em águas jurisdicionais brasileiras: Multa de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais).
A leitura atenta ao dispositivo revela que a norma exige o elemento volitivo para a configuração da infração, ou seja, a consciência, a vontade de querer realizar o tipo objetivo e capaz de causar dano.
Não há dúvidas de que, para a tipificação da infração administrativa de molestar intencionalmente cetáceo (baleia), assim como o crime acima analisado, exige-se o elemento objetivo com o elemento subjetivo.
Se um dos elementos da infração (ou do crime) não restar demonstrado, a exemplo da ausência de demonstração de efetivo molestamento de cetáceo (baleia) ou de que o pretenso infrator não tinha a intenção de molestar o animal, não há o que se falar em penalidade.
Aliás, como bem aponta a doutrina de Cléber Masson[1], sempre que o tipo penal alojar em seu bojo um elemento subjetivo, será necessário que o agente, além do dolo de realizar o núcleo da conduta, possua ainda a finalidade especial indicada expressamente pela descrição típica.
Diferença entre elemento objetivo e subjetivo
Vale lembrar a diferença entre o elemento objetivo e subjetivo do crime, a qual também estende-se ao Direito Administrativo por se tratar de Direito Punitivo.
Enquanto o elemento objetivo refere-se à uma ação ou omissão e divide-se em descritivos (definição da conduta considerada ilícita) e normativos (que considera o contexto em que realizada a conduta), o elemento subjetivo está ligado ao dolo ou à culpa do agente que pratica o ato.
O elemento subjetivo da infração administrativa ambiental em questão caracteriza-se pelo animus de molestar que precisa ser apreciado com cautela, sobretudo em razão de se tratar de baleia cujas movimentações na água, força da maré e até dos ventos são alheias à vontade do agente.
É necessário que haja, quanto ao agente, um ato intencional de “molestar o cetáceo (baleia), como por exemplo, causar incômodo, prejudicar, agredir, maltratar, importunar ou ofender com intenção, vontade ou desejo, ao passo que em casos de mera aproximação de um com o outro não é capaz de ensejar a infração administrativa ambiental e muito menos o crime previsto na Lei 7.643/87.
Portanto, ausente o elemento objetivo relativo à intenção de molestar cetáceo (baleia), bem como o elemento subjetivo referente à unidade de desígnios, a hipótese é de reiteração criminosa e não de continuidade delitiva
Conclusão
Embora a Portaria 117 tenha reformulado a Portaria 2.306, de 22 de novembro de 1990, define normas para evitar o molestamento intencional de cetáceos em águas jurisdicionais brasileiras, de forma a possibilitar sua aplicação a toda espécie de cetáceo, sua aplicabilidade é ilegal.
Isso porque, conforme visto, a Portaria 117/96 − ato normativo mais baixo da Pirâmide de Kelsen −, ampliou as hipóteses de crime previsto na Lei 7.643/87 ao prever em seu art. 9º que os infratores das normas nela estabelecidas estariam sujeitos às penalidades determinadas pela Lei 7.643/87.
Já em relação ao crime específico de molestar intencionalmente cetáceos (baleia), exige-se a demonstração de dolo do agente, consistente em causar incômodo, prejudicar, agredir, maltratar, importunar ou ofender com intenção, vontade ou desejo.
Mas não basta só isso. É necessário que a conduta de molestar intencionalmente cetáceo (baleia), além de dolosa, tenha potencialidade de causar algum dano ao animal.
Por fim, não custa lembrar que o Direito Penal é subsidiário e somente deve ser acionado quando os demais ramos do Direito não se prestam para resolver a questão, ou seja, o Direito Penal é a ultima ratio, não devendo se ocupar de questões que encontram resposta no âmbito extrapenal, enquanto nesta não bastam condutas minimamente ofensivas desprovidas da demonstração do elemento objetivo e subjetivo da infração.
[1] MASSON, Cléber. Código Penal Comentado. São Paulo: Método, 2014.