O crime ambiental de descumprir obrigação de relevante interesse ambiental somente ocorre quando a obrigação estiver prevista em Lei em sentido estrito.
O tipo penal descrito no art. 68 da Lei 9.605/98, restou assim delimitado pelo legislador:
Art. 68. Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental:
Pena – detenção, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano, sem prejuízo da multa.
São comuns os casos em que o Ministério Público suscita que o denunciado deixou de cumprir obrigação legal de relevante interesse ambiental, pelas mais diversas condutas, sobretudo, tais previstas em Instrução Normativa, Portaria e até mesmo Decreto.
Contudo, o dever legal referido no tipo penal deve ser entendido como aquele que provém de lei em sentido estrito, isto é, de norma ordinária aprovada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Poder Executivo, e não a obrigação decorrente de simples regulamentação administrativa.
Assim, o fato descrito em eventual denúncia que imputa ao réu o crime ambiental do art. 68 da Lei 9.605/98, quando não houver lei em sentido estrito, é atípico, pois somente configuraria o delito em tela o descumprimento de dever previsto em lei ou em contrato.
Não se está aqui afirmando a impossibilidade de complementação de normas penais em branco por ato normativo de hierarquia inferior, mas sim que, no caso do dispositivo legal previsto no art. 68 da Lei 9.605/98, o dever de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental a ser cumprida deve estar contida em lei ou em contrato.
Não havendo lei ou contrato que obrigue o acusado a cumprir a obrigação desatendida, não resta configurado o crime ambiental do art. 68 da Lei 9.605/98.
Índice
Crime de descumprir obrigação de relevante interesse ambiental
Trata-se da adoção de uma normatividade jurídica adequadamente compreensiva, apenas passível de ser enunciada mediante conceitos ou critérios indeterminados, exatamente a fim de que se mantenha aberta às exigências do juízo científico indicativo das melhores práticas protetivas do ambiente, em regra positivadas em atos administrativos, pelas razões já enunciadas.
E admite-se o recurso às normas administrativas regulamentares, para integrar os crimes ambientais, quando estiverem realizando a ‘fiel execução da lei’ (art. 84, IV, da CF), como modo de vedarem-se não apenas desvios como ainda a autonomia do regulamento em relação à lei penal, para que o Poder Executivo não seja o exclusivo legislador penal.
Da dicção da norma, percebe-se que ela é composta de duas partes: (1) a existência de um dever legal ou contratual que imponha o cumprimento de uma obrigação; e (2) o descumprimento de tal obrigação de relevante interesse ambiental.
O raciocínio é transversal, pois, ao passo que a parte “em branco” da norma é a segunda (“obrigação de relevante interesse ambiental”), a problemática está centrada na primeira (“dever legal ou contratual”).
Não há dúvidas de que um determinado elemento de uma lei penal possa, em certos casos, ser preenchido por outra norma do ordenamento jurídico.
Essa segunda norma, que colmata um claro deixado pela primeira, pode ser outra lei penal ou não, e, se não, tanto pode ser uma lei em sentido formal quanto uma lei em sentido apenas material.
No caso, é irrefragável que um regulamento emanado do Poder Executivo possa fazer as vezes de tal norma de colmatagem para as leis penais, como ocorre com a Lei de Drogas (art. 1º, parágrafo único, da Lei 11.343/06).
Embora seja por si só controverso que o Poder Executivo possa criar obrigações para os particulares com base em uma instrução normativa e, ao mesmo tempo, não extrapolar as limitações inerentes de seu poder regulamentar para “fiel execução da lei” – o que se torna muito mais controverso no âmbito penal, em que o princípio da legalidade é exacerbado -, ainda assim, não seria suficiente, para a configuração do delito previsto no art. 68 da Lei 9.605/98, a existência de obrigações de relevante interesse ambiental.
Não bastaria, tampouco, que tais obrigações estivessem consignadas em uma lei em sentido formal. Não bastaria, inclusive, que tais obrigações viessem consignadas na própria Lei de Crimes Ambientais.
Configuração do crime ambiental do artigo 68 da lei 9.605/98
Para a configuração do delito em questão, é necessária a conjugação de dois dispositivos: um, que defina obrigações de relevante interesse ambiental, e, outro, que imponha a um determinado sujeito o dever legal de cumprimento dessas obrigações de relevante interesse ambiental.
Além disso, por óbvio, é necessário o dispositivo que comine sanções penais para o descumprimento dessas obrigações (o art. 68 da Lei de Crimes Ambientais).
Isso não quer dizer que os particulares não devam observância às obrigações dispostas em instruções, portarias ou decretos, mas quer dizer, tão somente, que, caso o devam (o que é por si mesmo controverso, conforme já exarado), tal dever não é de natureza legal, mas sim regulamentar.
Existe, pois, apenas um dever regulamentar de cumprir tais obrigações de relevante interesse ambiental, por força da própria instrução normativa.
Em suma, ainda que uma instrução, portaria ou decreto possa colmatar a segunda parte do art. 68 da Lei 9.605/98, a dificuldade em aplicá-la está na primeira parte daquela norma penal.
Por isso, eventual pleito condenatório é oblíquo, pois a aceitação ou não das chamadas normas penais em branco parte do acolhimento absconso da premissa de que por “dever legal” pode ser entendido “dever regulamentar”.
O que diz a jurisprudência
Vale destacar o seguinte acórdão:
PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO AMBIENTAL. CONCESSÃO DE LICENÇA, AUTORIZAÇÃO OU PERMISSÃO EM DESACORDO COM AS NORMAS AMBIENTAIS. ART. 67 DA LEI 9.605/98 NORMA PENAL EM BRANCO. COMPLEMENTARIDADE EM REGRAMENTOS EXTRAPENAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (TAXATIVIDADE). CONCESSÃO IRREGULAR DE LAUDOS DE VISTORIA. ART. 69-A, DA LCA. CONDUTA ATÍPICA HÁ ÉPOCA DOS FATOS. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE DA LEI PENAL.
A norma incriminadora disposta no art. 67, da Lei 9.605/98, contempla a conduta do funcionário público que concede ilegalmente licença, autorização ou permissão para obras e serviços. Trata-se de norma penal em branco, sendo, por isso, relativamente dependente de normativas de cunho administrativo.
Em tal integração, é inviável que conceitos extrapenais com terminação jurídica própria sejam interpretados ampliativamente em prejuízo ao acusado, sob pena de violação da garantia da legalidade.
Da mesma forma, a limitação imposta pelo princípio da taxatividade da lei penal, em específico, impede o uso da analogia e dos costumes da Administração para fins de alteração do preceito incriminador in malam partem.
Por conta desse raciocínio, os laudos de vistoria – cujo conteúdo diz com a viabilidade técnica para a implementação de obras e serviços – não se inserem no conceito de licença, permissão ou autorização disposto no tipo, pois não se revestem do poder concessivo ínsito a esses atos administrativos. (…)” (ACR 2004.72.02.003590-1, 7ª Turma, Des. Federal Tadaaqui Hirose, D.E. 01-10-2010).
Conclusão
Conclui-se, que não se configura o crime ambiental previsto no art. 68 da Lei 9.605/98 por descumprimento de dever regulamentar, quando
(1) o texto penal utiliza a expressão “dever legal ou contratual”;
(2) para fins penais, é vedado ao intérprete ampliar o sentido do texto legal de modo a prejudicar o acusado (interpretação extensiva in malam partem).
Não se quer dizer que os particulares não devam anuência às disposições de relevante interesse ambiental contidas na referida instrução normativa, portarias ou normas complementares, e, portanto, em tese podem ser responsabilizados na esfera administrativa.
Mas, tão somente que não o devem, segundo o art. 68 da Lei 9.605/98 (e, portanto, não podem, sequer em tese, ser responsabilizados na esfera penal, sendo atípica a sua conduta).
Quanto à forma de interpretação e integração dos tipos penais em branco, no que concerne aos crimes ambientais, mister referir que, ao instituir o art. 68 da Lei 9.605/98, o Legislador criou um tipo penal aberto, sem delimitação expressa da conduta punível, o que sempre mereceu severas críticas dos doutrinadores.
Por fim, vale lembrar que essa característica entra em conflito com o postulado basilar do Direito Penal da ‘lex certa’ que ‘diz com a clareza dos tipos que não devem deixar margem a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios’. (Francisco de Assis Toledo, in Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª ed., SP, Saraiva, 2000, p. 29).