Ao proprietário de área rural é garantido o direito à conversão da vegetação nativa para o uso alternativo do solo, desde que observados os percentuais dispostos no Código Florestal. Por oportuno, o Código Florestal conceitua o uso alternativo do solo:
Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por: (…) VI – uso alternativo do solo: substituição de vegetação nativa e formações sucessoras por outras coberturas do solo, como atividades agropecuárias, industriais, de geração e transmissão de energia, de mineração e de transporte, assentamentos urbanos ou outras formas de ocupação humana;
Mas o que acontece se houver um desmatamento ilegal, ou seja, sem autorização, mas em área passível de conversão ao uso alternativo do solo? Vamos destrinchar este tema nos tópicos abaixo.
Índice
A infração ambiental em áreas de uso alternativo do solo
Ocorrida a infração ambiental de desmatamento ilegal, o natural é que haja a autuação, com aplicação de multa simples e lavratura do termo de embargo da área, a fim de que esta se regenere, nos termos do que dispõe o Código Florestal, em especial o art. 51 do Código Florestal.
Entretanto, o §1º do mesmo artigo dispõe que o embargo se restringe aos locais onde efetivamente ocorreu o desmatamento ilegal, não alcançando as atividades de subsistência ou as demais atividades realizadas no imóvel não relacionadas com a infração.
Regulamentando este artigo, o Decreto 6.514/2008, art. 16, §2º, dispõe que não se aplicará a penalidade de embargo de obra ou atividade, ou de área, nos casos em que a infração de que trata o caput se der fora da área de preservação permanente ou reserva legal.
No mesmo sentido, no Estado de Mato Grosso, dispõe o artigo 18, §1º, do Decreto Estadual nº 1.436/2022:
§1º Não se aplicará a penalidade de Embargo/Interdição de obra, atividade ou de área, nos casos em que a infração de desmatamento e queimada ocorrer fora da área de preservação permanente ou reserva legal.
O embargo ambiental deve atender a sua finalidade: regeneração
O Decreto nº 1.436/2022 do Estado do Mato Grosso, bem como o Decreto 6.514/2008, estabelecem que as infrações administrativas nele previstas estão sujeitas, dentre outras penalidades, ao embargo de obra ou atividade e suas respectivas áreas.
Não obstante, tal penalidade somente deve ser aplicada em situações em que há fundado risco de continuidade do dano ambiental e visando propiciar a regeneração do meio ambiente e dar viabilidade à recuperação da área degradada, com base no elemento finalidade do ato administrativo – artigo 16 do Decreto Estadual nº 1.436/2022 e artigo 108 do Decreto Federal nº 6.514/2008. Ipsis litteris:
Art. 16. O Embargo/Interdição de obra, atividade ou de suas respectivas áreas, tem por objetivo impedir a continuidade do dano ambiental e será aplicado sempre que a atividade estiver sendo executada em desacordo com as normas ambientais, sem prejuízo da aplicação da pena de multa.
Art. 108. O embargo de obra ou atividade e suas respectivas áreas tem por objetivo impedir a continuidade do dano ambiental, propiciar a regeneração do meio ambiente e dar viabilidade à recuperação da área degradada, devendo restringir-se exclusivamente ao local onde verificou-se a prática do ilícito.
As mencionadas normativas, apesar de não fazerem distinção, preveem dois tipos de embargos: o acautelatório, aplicado como medida administrativa cautelar; e, o sancionatório, aplicado quando do julgamento do processo administrativo, o qual observa o devido processo legal.
A diferença entre os dois tipos de embargos é muito bem delineada por Curt Trennepohl[1], ex-presidente do IBAMA e autor da obra “Infrações Ambientais”. Para o doutrinador, embargos acautelatórios são aqueles aplicados pelo agente de fiscalização no ato da constatação da irregularidade e servem para impedir a continuidade da infração. O exemplo clássico para imposição do embargo acautelatório é atividade ou estabelecimento que está funcionando sem o devido licenciamento ou autorização ambiental.
Já os embargos sancionatórios são definidos pelo referido doutrinador como sendo aqueles que dependem da confirmação do embargo acautelatório pela autoridade julgadora, após o devido processo legal e ampla defesa.
No exemplo clássico, a confirmação do embargo acautelatório à atividade ou estabelecimento em funcionamento sem o licenciamento legal, implicaria na sanção de suspensão total ou parcial da atividade confirmada pela autoridade julgadora administrativa.
Pois bem. Após explanadas as premissas básicas, é hora de chegar ao ponto nevrálgico do presente artigo.
Se a área é passível de regularização, o embargo é medida desarrazoada
O fato é que em eventual desmate que deixe remanescente de vegetação nativa, respeitando o percentual mínimo exigido pelo Código Florestal de reserva legal para o respectivo bioma, e não sendo em área de preservação permanente, esse desmate não é passível de embargo, pois a lei assim determina. É que se é possível regularizar a área, não é razoável que o Estado se utilize de medida tão gravosa ao particular.
O embargo em questão não terá utilidade, notadamente porque encontra-se em área passível de uso alternativo do solo e a propriedade permanecerá respeitando o percentual de reserva legal exigido pelo Código Florestal, motivos pelos quais não seria crível exigir a recuperação da vegetação suprimida, já que é passível de regularização no âmbito do CAR.
Além do mais, é incongruente o embargo de áreas passíveis de conversão, na medida em que o embargo administrativo, como medida de polícia, é destinado à satisfação de finalidades específicas, conforme os artigos 16 e 18 do Decreto Estadual nº 1.436/2022, bem como o artigo 101, § 1º, do Decreto Federal nº 6.514/08 e o artigo 51 do Código Florestal, que dispõem:
Art. 101. Constatada a infração ambiental, o agente autuante, no uso do seu poder de polícia, poderá adotar as seguintes medidas administrativas: (…)
II – embargo de obra ou atividade e suas respectivas áreas; (…)
§1º As medidas de que trata este artigo têm como objetivo prevenir a ocorrência de novas infrações, resguardar a recuperação ambiental e garantir o resultado prático do processo administrativo.
Art. 51. O órgão ambiental competente, ao tomar conhecimento do desmatamento em desacordo com o disposto nesta Lei, deverá embargar a obra ou atividade que deu causa ao uso alternativo do solo, como medida administrativa voltada a impedir a continuidade do dano ambiental, propiciar a regeneração do meio ambiente e dar viabilidade à recuperação da área degradada.
Como é possível notar, a lei aponta os pressupostos de fato que autorizam a adoção das medidas de polícia elencadas no artigo 101, bem como indica sua finalidade específica no § 1º, o que significa que, ocorrida a infração ambiental, a adoção dessas medidas não é automática; deve estar presente o motivo de fato que permita ou exija a prática dos atos elencados no dispositivo legal, sendo imprescindível que esses atos estejam voltados à efetivação das finalidades descritas no § 1º.
Se não houver correspondência entre as medidas de polícia em questão e a finalidade para a qual foram criadas, alguns pressupostos de validade do ato administrativo não estarão preenchidos, pois as medidas elencadas no referido artigo devem ser destinadas a promover consequências no mundo fático de acordo com os escopos assinalados naquele parágrafo.
Com efeito, é pressuposto de validade do ato a pertinência entre seu objeto – que, no caso em tela, é a restrição incidente sobre a propriedade do demandante – e o resultado, previsto em lei, que se espera com a prática desse ato. Essa é a lição de Fernanda Marinela:
Todavia, o ato administrativo, além da finalidade geral que é o interesse coletivo, deve também observar a finalidade específica, prevista pela lei, tendo em vista que, para cada propósito que a Administração pretende alcançar, existe um ato definido em lei, porque, conforme veremos em tópico seguinte, o ato administrativo caracteriza-se por sua tipicidade, atributo pelo qual o ato administrativo deve corresponder às figuras previamente definidas em lei, como aptas a produzirem determinado resultado. (Marinela, Fernanda. Direito administrativo. 4. ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 253).
Dessa forma, só estará autorizada intervenção tão drástica se adotada com o fito de prevenir a ocorrência de novas infrações, resguardar a recuperação ambiental e garantir o resultado prático do processo administrativo, na forma estabelecida no § 1º do artigo 101 do Decreto Federal nº 6.514/08 e no artigo 51 do Código Florestal.
Nessa perspectiva, o embargo de área irregularmente explorada tem como pressuposto de validade que a medida tenha por efeito prático propiciar a recuperação da mata nativa, ou seja, quando o proprietário estiver obrigado a viabilizar a regeneração do meio ambiente e dar viabilidade à recuperação da área degradada, obviamente, nos casos em que por lei for exigida tal recuperação. Em outras palavras, havendo degradação em área passível de conversão ao uso alternativo do solo, não há se falar em aplicação embargo.
É certo que a supressão de vegetação nativa, ainda que inserida em área passível de conversão para uso alternativo do solo, necessita de prévia autorização do órgão ambiental competente. Mas o fato é que, não estando inserida nos limites da reserva legal ou da área de preservação permanente, inexiste interesse acautelatório apto a justificar o embargo administrativo. É dizer: um dos elementos do ato administrativo não está presente, qual seja a finalidade.
Assim, não é razoável lançar mão da medida de embargo se a fração de terra for passível de conversão em área de uso alternativo do solo, já que, se promovido o licenciamento do imóvel, o interessado poderá explorar a porção de terras embargada.
A visão do judiciário sobre embargo fora de reserva legal e APP
Como visto acima, o embargo ambiental deve estar atrelado ao efeito prático de garantir a regeneração da área em caso de desmate de mata nativa, sendo a pertinência entre a medida de polícia e a finalidade específica citada acima pressuposto de validade desse ato administrativo.
Todavia, se a área desmatada corresponde à área de uso alternativo do solo, exigir sua regeneração por parte do proprietário do imóvel rural não é razoável, tendo em vista que faz parte da fração do imóvel passível de exploração futura, quando preenchidos os requisitos para tanto.
Dessa ponderação de direitos, resta clarividente a ausência de interesse na manutenção do embargo sobre área passível de conversão, não sendo razoável se impor ao particular uma restrição administrativa desprovida de necessidade prática.
Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso tem decidido pelo levantamento do embargo ambiental:
[…] Com efeito, desde que respeitados os percentuais mínimos de reserva legal, o restante da propriedade é passível de supressão de vegetação nativa, por expressa autorização legal. Por seu turno, é certo que o desrespeito às normas aplicáveis à supressão de vegetação nativa em área passível de exploração configura infração administrativa, de modo que, legitima a lavratura do auto de infração com a finalidade de punir a conduta ilegal praticada. No entanto, ao meu ver, não se mostra razoável aplicação de termo de embargo sobre área, como feito neste caso, se a fração de terra desmatada for passível de conversão em uso alternativo do solo, porquanto que, se promovido o licenciamento ambiental do imóvel, poderá o proprietário explorar a fração de 20 % da propriedade. Partindo dessa premissa, nesta análise de cognição sumária, ao meu ver, não há se falar em manutenção dos efeitos do embargo administrativo sobre área em questão, já que a propriedade rural possui área total de 1.061,9306 hectares e o embargo administrativo se limita a 187,69 hectares, o que corresponde a fração inferior aos 20% do perímetro passível de conversão ao uso alternativo do solo, ou seja, ao exercício de atividade produtiva de agricultura/pecuária. Sendo assim, não é razoável exigir do proprietário/arrendatário neste momento a regeneração da área embarga que ao que tudo indica faz parte da fração do imóvel passível de exploração, o que evidencia a probabilidade do direito alegado. […] (Agravo de Instrumento 1017920-21.2022.8.11.0000, Desa. Maria Aparecida Ferreira Fago, TJMT, dia 13/09/2022)
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por sua vez, tem decidido:
ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO AMBIENTAL. DESMATAMENTO FORA DE RESERVA LEGAL. TERMO DE EMBARGO DE ÁREA. DESCONSTITUIÇÃO. AUSÊNCIA DE PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. TERMO DE COMPROMISSO. CELEBRAÇÃO. ÁREA DE RESERVA LEGAL PRESERVADA. OBTENÇÃO DE APF – AUTORIZAÇÃO PROVISÓRIA DE FUNCIONAMENTO. SEMA/MT. REGULARIDADE DO IMÓVEL. LEVANTAMENTO DO TERMO DE EMBARGO. CABIMENTO. SENTENÇA MANTIDA. […] 2. Afigura-se desproporcional e sem razoabilidade manter o termo de embargo que incide sobre a área, considerando que a intervenção se deu fora de área destinada a reserva legal ou preservação permanente, e não incidiu sobre mata nativa, nos estritos termos do disposto no § 2º do art. 16 do Decreto Federal nº 6.514/2008; atentando-se, ainda, à preservação de percentual superior ao exigido pela lei para o imóvel (80%), mesmo se situando na Amazônia Legal, região onde se permite o uso alternativo do solo, embora em percentual reduzido (20%). 3. Reforça o direito líquido e certo do impetrante o esvaziamento da finalidade do termo de embargo, medida acautelatória que se presta a “impedir a continuidade do dano ambiental, propiciar a regeneração do meio ambiente e dar viabilidade à recuperação da área degradada” (art. 108 do Decreto nº 6.514/2008), não só pela emissão em seu favor de Autorização Provisória de Funcionamento – APF pela SEMA/MT, como também pela celebração de Termo de Compromisso, em especial porque não há passivo de reserva legal, além de a lei garantir a suspensão das sanções aplicadas em caso de celebração de Termo de Compromisso, conforme comprovado pelo impetrante na hipótese. 4. A desconstituição do Termo de Embargo guarda consonância, ainda, com as disposições da Lei Complementar nº 140/2011, que além de atribuir competência apenas supletiva ao IBAMA (art. 15), indica a prevalência do ato de fiscalização do órgão licenciador, no caso o SEMA/MT (art. 8º, XIV e XV). Ou seja, havendo incompatibilidade entre a APF – Autorização Provisória de Funcionamento, emitida pela SEMA/MT, e o Termo de Embargo lavrado pelo IBAMA, haverá de prevalecer o primeiro (art. 17, § 3º, da LC 140/2011), notadamente por sua feição de compatibilidade com as normas que regem a matéria em discussão. 5. Demonstrado o direito líquido e certo do impetrante, inclusive tendo opinado o Ministério Público Federal pelo não provimento do apelo, é de se impor a concessão da segurança reclamada. 6. Remessa necessária e apelação do IBAMA a que se nega provimento, mantendo a sentença de primeiro grau. (TRF1 – Apelação Cível 1000041-44.2017.4.01.3603, Desembargadora Federal Daniele Maranhão, PJe, 15/06/2020).
Conclusão
E mais. Sabe-se que o embargo é necessário para impedir a continuidade do dano ambiental. Ocorre que os órgãos ambientais usam a ferramenta sem critério. Como sabem que o processo sancionador ambiental é lento, que demora tempo considerável para que se tenha decisão definitiva sobre multas e outras sanções, usam o embargo cautelar como uma forma de sanção sem processo administrativo prévio. Isso é inaceitável!
Em grande parte, embargam todo o imóvel no qual se localiza a obra ou atividade, situação que, entre outros efeitos, inviabiliza o crédito rural para outros empreendimentos. Entendemos que apenas a área com irregularidade pode ser embargada.
Veda-se, portanto, o embargo de atividade agrossilvipastoril em imóvel rural nos casos em que a infração se der fora da área de preservação permanente ou reserva legal. Se a área potencialmente pode ser objeto de conversão para uso alternativo do solo, não se justifica o embargo. Podem ser aplicadas outras sanções administrativas.
Logo, não pode prosperar a manutenção do termo de embargo em área passível de conversão ao uso alternativo do solo, pois, conforme explica Curt Trennepohl[2], se a supressão é autorizável, o órgão ambiental não deve exigir a recuperação da vegetação suprimida irregularmente para, a posteriori, o autuado solicitar ao órgão a autorização para o desmatamento da mesma área.
[1] TRENNEPOHL, Curt. Infrações ambientais: comentários ao Decreto 6.514/2008 / Curt Trennepohl, Terence Trennepohl, Natascha Trennepohl. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. Página 87.
[2] TRENNEPOHL, Curt. Infrações ambientais: comentários ao Decreto 6.514/2008 / Curt Trennepohl, Terence Trennepohl, Natascha Trennepohl. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. Página 232.