Por não haver dano ambiental concreto decorrente da emissão de efluentes e por se tratar de crime ambiental de natureza formal que não se pode presumir, os acusados foram absolvidos.
O Ministério Público ofereceu denúncia contra a empresa e seus sócios, imputando-lhes a prática dos crimes previstos no art. 54, § 2º, V, e no art. 60, por duas vezes, ambos da Lei 9.605/1998,
Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:
§2º Se o crime:
V – ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos:
Pena – reclusão, de um a cinco anos.
Art. 60. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Segundo a denúncia, após coleta dos efluentes pelo órgão ambiental, foi constatado, pelo resultado dos relatórios de ensaio, que os denunciados lançaram efluentes no curso d’água, em desacordo com o Código Estadual do Meio Ambiente.
O resultado das análises feitas teria comprovado que os efluentes lançados pelos denunciados estavam em desacordo com a Resolução CONAMA 357/2005, com valores acima do permitido pela mencionada Resolução, nos parâmetros cádmio total, chumbo, cianeto, DBOs, ferro dissolvido, níquel total, óleos minerais, óleos vegetais e gorduras animais, cobre dissolvido, nitrogênio amoniacal e zinco (art. 14, inciso II).
Em seguida, fiscais ambientais fiscalizaram a empresa, constatando que os denunciados estavam operando atividade potencialmente poluidora em desacordo com as condicionantes impostas na Licença Ambiental de Operação, bem como haviam realizado obras de ampliação da estação de tratamento de efluentes sem a devida licença ambiental.
Recebida a denúncia e encerrada a instrução processual, sobreveio sentença que julgou parcialmente procedente a denúncia para condenar a acusada pessoa jurídica por ofensa ao tipo previsto no art. 54, § 2º, V, da Lei 9.605/98.
Também foram condenados os seus sócios por infração ao disposto no art. 54, § 2º, V, da Lei 9.605/98, à pena privativa de liberdade de 1 ano e 2 meses de reclusão.
Irresignados, os réus interpuseram recurso de apelação no qual pleitearam ser absolvidos quanto à imputação do crime previsto no art. 54, § 2º, V, da Lei 9.605/1998, ao argumento de que os laudos seriam inválidos porque não teriam sido respeitadas as regras procedimentais para sua elaboração, mormente no que tange à observação da cadeia de custódia.
Aventaram que a empresa acusada se encontraria distante do local da coleta e que havia várias industrias na mesma área que despejavam seus efluentes naquele córrego. Destacaram, ainda, que as amostras foram coletadas por um “cliente”, e não por um profissional com conhecimento técnico para tanto.
Alegaram, também, que a conduta dos acusados seria atípica, pois os efeitos para o meio ambiente foram qualificados em seus indexadores mínimos, ao passo que o tipo penal do art. 54, caput, da Lei 9.605/1998 exige a ocorrência de dano ambiental ou probabilidade de dano em níveis elevados.
Índice
Leia o voto que reformou a sentença e absolveu os réus por crime ambiental
Os acusados pleitearam ser absolvidos quanto à imputação do crime previsto no art. 54, § 2º, V, da Lei 9.605/1998. Adianta-se que o pleito absolutório merece prosperar.
[…]
Pois bem, a partir dos laudos constantes nos autos e dos depoimentos acima reproduzidos, verifica-se que há dúvida razoável a respeito da responsabilidade da ré pela poluição constatada no parecer do órgão ambiental.
Isso porque, segundo o auto de infração, apenas os relatórios de ensaio apresentaram alterações nos efluentes lançados pela ré na rede pluvial.
Os níveis de níquel, prata e zinco dos efluentes físico-químicos e o pH dos efluentes orgânicos analisados, no entanto, conforme afirmado pelo réu e pelas próprias fiscais ambientais, estava em desacordo tão somente com o Código Estadual do Meio-Ambiente, mas dentro dos limites estabelecidos na Resolução 430/2011 do CONAMA, como se pode confirmar a partir da leitura de seus art. 16, I e II.
Portanto, tendo em vista que o lançamento de efluentes pela empresa ré respeitava o regramento do órgão federal e considerando, ainda, que testemunhas relataram que havia, de fato, outras empresas na região que despejavam resíduos no córrego, gera-se significativa incerteza de que as atividades da ré é que tenham causado os níveis de poluição mencionados no parecer do órgão ambiental, até porque este se baseou justamente nos parâmetros preconizados pelo CONAMA.
Ademais, quanto à materialidade do tipo penal em questão, Renato Marcão leciona que “[é] imprescindível para a conformação típica que a poluição causada atinja níveis que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.” (MARCÃO, Renato. Crimes ambientais: anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei 9.605, de 12-2-1998. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 352).
No mesmo sentido, orienta Luiz Regis Prado[1]:
Tipicidade objetiva e subjetiva: a conduta incriminada no caput do art. 54 da Lei 9.605/1998 consiste em causar (originar, produzir, provocar, ocasionar, dar ensejo) poluição de qualquer natureza, em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade dos animais ou a destruição significativa da flora.
Por poluição, em sentido amplo, compreende-se a alteração ou degradação de qualquer um dos elementos físicos ou biológicos que compõem o ambiente.
Entretanto, não se pune toda emissão de poluentes, mas tão somente aquela efetivamente danosa ou perigosa para a saúde humana, ou aquela que provoque a matança de animais ou destruição (desaparecimento, extermínio) significativa da flora.
Exige-se então a real lesão ou risco provável de dano à saúde humana, extermínio de exemplares da fauna local ou destruição expressiva de parcela representativa do conjunto de vegetais de uma determinada região.
Nesse sentido, afirma-se que apenas devem ser consideradas como poluentes as substâncias presentes em concentrações bastantes para produzir um efeito mensurável sobre o homem, os animais, os vegetais ou os materiais.
Assevera Ramón Martín Mateo que “o conceito de contaminação não pode se basear em categorias absolutas. Trata-se, ao contrário, de uma ideia relativa que parte de modificações não admissíveis das características da água. Não pode ser considerado como poluição qualquer tipo de alteração, esquecendo-se de que a água em toda sua pureza não existe sequer na natureza e que um certo nível de tolerância é admissível (…)”. […].
Portanto, vem a ser indispensável a realização de perícia técnica para comprovação da materialidade do delito de poluição em qualquer um dos resultados previstos: perigo de danos à saúde pública ou significativa destruição de fauna e flora, mesmo que tais elementos sejam demasiadamente imprecisos e relativos.
Com efeito, é pertinente reiterar que o crime de poluição no que se refere à saúde humana não deixa de ser um crime de resultado (resultado de perigo).
O perigo concreto, diferentemente do que ocorre nos delitos de perigo abstrato, deve ser efetivamente demonstrado, para o que se revela insuficiente a indicação de mera potencialidade de danos à saúde humana.
No presente caso, porém, as testemunhas foram unânimes em relatar que não se observou qualquer dano concreto decorrente da emissão de efluentes pela acusada. Inclusive, tanto o já referido parecer do órgão ambiental quanto o relatório de fiscalização descreveram a existência apenas de danos potenciais à saúde humana.
Ademais, ainda que não se ignore que o Superior Tribunal de Justiça[2] tenha passado a entender que o delito em questão é considerado de natureza formal, é relevante notar que a única perícia realizada nos efluentes tratados na empresa ré revela que estes estavam de acordo com a Resolução pertinente do CONAMA.
Além disso, não se pode presumir que o órgão federal permitiria a emissão de resíduos em níveis tais que pudessem resultar em danos potenciais à saúde humana ou que provocassem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora, como disposto no art. 54, caput, da Lei 9.608/1998.
Denota-se, dessa forma, que, além de a autoria da poluição constatada na amostra do córrego ser incerta, não está suficientemente demonstrada a elementar do crime consistente em “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora” em relação aos efluentes emitidos pela empresa ré.
A propósito, colhe-se da jurisprudência:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE. ARTIGOS 54, § 2º, INCISO V C/C 2º E 3º, TODOS DA LEI 9.605/98. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. INSURGÊNCIA MINISTERIAL. PLEITO CONDENATÓRIO. PRESCINDIBILIDADE DO LAUDO PERICIAL. EXISTÊNCIA DE MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVA EM OUTROS ELEMENTOS DE PROVAS COLHIDOS DURANTE A INSTRUÇÃO PROCESSUAL. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE LAUDO TÉCNICO REFERENDADO POR EXPERT NA ÁREA EM MENSURAR O GRAU DE DANO OU RISCO À SAÚDE HUMANA, MORTANDADE DE ANIMAIS OU DESTRUIÇÃO SIGNIFICATIVA DE FLORA. ELEMENTARES DO TIPO NÃO COMPROVADAS. PRECEDENTES. IN DUBIO PRO REO. CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA.
Para a configuração do crime de poluição descrito no art. 54 da Lei 9.605/98, não basta somente a comprovação de lançamento de resíduos líquidos ou sólidos ao solo ou a curso d’água, em desacordo com as exigências e normas legais.
Necessária se faz a realização de prova pericial de que do fato tenha resultado prejuízo à saúde humana, ou a destruição da flora ou a mortandade de animais. A ausência de laudo pericial sobre “níveis da poluição” impõe a absolvição […] (Apelação Criminal 2012.014046-6, de Concórdia, rel. Des. Newton Varella Júnior, Primeira Câmara Criminal, j. 19-03-2013).
É cediço que os crimes que deixam vestígios exigem para comprovação da materialidade, conforme artigos 158 e 159 do Código de Processo Penal, a elaboração do exame de corpo de delito por perito oficial, o qual não pode ser suprido sequer pela confissão do acusado e, portanto, nos crimes ambientais não basta a confecção de relatório por um dos membros da Polícia Ambiental, sem qualquer notícia sobre a qualificação técnica de tais profissionais, incumbindo ao órgão estatal, ao verificar a ocorrência do dano ambiental, requerer a realização do laudo pericial a ser confeccionado por meio de expert.
(TJSC, Apelação Criminal n. 2013.050900-3, de Criciúma, rel. Des. Jorge Schaefer Martins, Quarta Câmara Criminal, j. 26-09-2013) (TJSC, Apelação Criminal n. 0013723-08.2008.8.24.0020, de Criciúma, rel. Des. Luiz Neri Oliveira de Souza, Quinta Câmara Criminal, j. 04-04-2019).
Como se sabe, no processo penal, uma condenação deve estar alicerçada em provas robustas e indubitáveis da prática do crime.
Caso contrário, havendo qualquer incerteza a respeito da materialidade ou da autoria dos fatos – o que se observa na presente hipótese – a absolvição é medida imperativa, em respeito à presunção de inocência e ao princípio do in dubio pro reo.
Diante disso, é de rigor a absolvição dos acusados, com fulcro no art. 386, VII, do Código de Processo Penal, em razão da insuficiência de provas da materialidade e da autoria do crime.
Ementa do julgado que absolveu os acusados de crime ambiental de poluição
APELAÇÕES CRIMINAIS. CRIMES AMBIENTAIS. CAUSAR POLUIÇÃO QUE POSSA CAUSAR DANOS À SAÚDE HUMANA, QUALIFICADO PELO LANÇAMENTO DE RESÍDUOS EM CURSO D’ÁGUA (LEI N. 9.605/1998, ARTS. 54, § 2º, V) E FAZER FUNCIONAR ESTABELECIMENTO POTENCIALMENTE POLUIDOR CONTRARIANDO AS NORMAS REGULAMENTARES PERTINENTES (LEI N. 9.605/1998, ART. 60). SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. CONDENAÇÃO APENAS PELO CRIME DE POLUIÇÃO. RECURSO DA DEFESA E DA ACUSAÇÃO.
RECURSO DA DEFESA. CRIME PREVISTO NO ART. 54, § 2º, V, DA LEI N. 9.605/2012. PLEITEADA ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA (CP, ART. 386, VII). POSSIBILIDADE. EMPRESA DE TRATAMENTO DE EFLUENTES QUE LANÇAVA OS RESÍDUOS LÍQUIDOS TRATADOS EM CÓRREGO QUE DESEMBOCAVA NO RIO ITAPOCUZINHO. PARECER DA FUNDAÇÃO MUNICIPAL DO MEIO AMBIENTE SOBRE LAUDO DE AMOSTRA DE ÁGUA DO CÓRREGO QUE CONSIGNAVA QUE ESTE APRESENTAVA POLUIÇÃO EM NÍVEIS ACIMA DOS ACEITÁVEIS PELA RESOLUÇÃO N. 357/2005 DO CONAMA. AUTO DE INFRAÇÃO ELABORADO PELA FATMA (IMA), CONTRA A EMPRESA RÉ, EM RAZÃO DA EMISSÃO DE EFLUENTES EM DESACORDO COM O CÓDIGO ESTADUAL DO MEIO-AMBIENTE. AUTUAÇÃO DA FATMA (IMA) QUE SE BASEOU EM LAUDOS EMITIDOS PELA PRÓPRIA ACUSADA, QUE DEMONSTRAVAM QUE OS EFLUENTES TRATADOS TINHAM NÍVEIS DE NÍQUEL, PRATA, ZINCO E PH POUCO ACIMA DOS PERMITIDOS PELA LEI ESTADUAL N. 14.675/2009. DÚVIDA RELEVANTE A RESPEITO DA AUTORIA DO CRIME. TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO E DE DEFESA QUE RELATARAM QUE A EMPRESA LOCALIZAVA-SE EM ÁREA INDUSTRIAL E QUE OUTROS ESTABELECIMENTOS DA REGIÃO LANÇAVAM EFLUENTES, NO MESMO CÓRREGO, DE FORMA IRREGULAR. EFLUENTES LANÇADOS PELA EMPRESA RÉ QUE ESTAVAM EM CONSONÂNCIA COM OS PARÂMETROS ESTABELECIDOS NA RESOLUÇÃO N. 430/2011 DO CONAMA E, POR CONSECTÁRIO LÓGICO, NÃO PODERIAM CAUSAR OS NÍVEIS DE POLUIÇÃO ACIMA DOS LIMITES DETERMINADOS POR ESTE MESMO ÓRGÃO CONSULTIVO, SEGUNDO CONSTATADO PELA FUNDAÇÃO MUNICIPAL. ADEMAIS, EMISSÃO DE EFLUENTES ESTAR EM CONFORMIDADE COM OS PADRÕES DO CONAMA QUE GERA INCERTEZA QUANTO À POTENCIALIDADE DE CAUSAR DANO À SAÚDE HUMANA, À FLORA OU À FAUNA. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO REO. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE (CPP, ART. 386, VII).
RECURSO DA ACUSAÇÃO. CRIME PREVISTO NO ART. 60 DA LEI N. 9.605/1998. PRETENDIDA CONDENAÇÃO DOS ACUSADOS PELA PRÁTICA DO DELITO, POR DUAS VEZES, PORQUE TERIAM RECEBIDO EFLUENTES NÃO DESCRITOS NA LICENÇA AMBIENTAL E PORQUE TERIAM AMPLIADO A CAPACIDADE DE TRATAR EFLUENTES PARA ALÉM DAQUELA AUTORIZADA PELA FATMA. NÃO CABIMENTO. ACUSADOS QUE REQUERERAM AO ÓRGÃO AMBIENTAL ESTADUAL A DECLARAÇÃO DE CIÊNCIA PARA TRATAREM EFLUENTES CLASSE II DA NBR 10.004, ORIUNDOS DE EMPRESAS DIVERSAS, E QUE RECEBERAM O “DE ACORDO” DO GERENTE DA INSTITUIÇÃO. LICENÇA AMBIENTAL QUE EXIGIA A ANUÊNCIA DA FATMA EM CASO DE ALTERAÇÃO NAS ATIVIDADES. EXIGÊNCIA DEVIDAMENTE CUMPRIDA PELOS RÉUS. CONDUTA TÍPICA NÃO CONFIGURADA. ACUSADOS QUE TROCARAM O TANQUE DE TRATAMENTO DE EFLUENTES FÍSICO-QUÍMICOS POR UM DE MAIOR CAPACIDADE. AUSÊNCIA, NO ENTANTO, DE PROVA PERICIAL QUE DEMONSTRE QUE A VAZÃO DE EFLUENTES TRATADOS PELA EMPRESA RÉ, E NÃO APENAS O TAMANHO DO TANQUE, TENHA SIDO AUMENTADA. EVIDÊNCIAS INSUFICIENTES DA AMPLIAÇÃO DAS ATIVIDADES DA EMPRESA. MATERIALIDADE DOS CRIMES NÃO DEMONSTRADA. MANUTENÇÃO DA ABSOLVIÇÃO QUE É DE RIGOR. RECURSO DA DEFESA CONHECIDO E PROVIDO.