Imagine uma fiscalização empreendida por órgão ambiental fiscalizador em uma ação de desmatamento irregular ou ilegal, por exemplo, que resulta na apreensão de bens de terceiro boa-fé que nada tem a ver com a infração ambiental.
Além de medida cautelar de embargo e sanção de multa a serem suportadas pelo verdadeiro responsável pela infração ambiental, por vezes é determinada pelo órgão fiscalizador a apreensão de maquinário que não é de propriedade do infrator ambiental, mas sim de terceiros de boa-fé.
Por terceiro de boa-fé aqui entende-se, por exemplo, aquele que desempenha atividade empresarial de locação de máquinas e equipamentos utilizados para supressão de vegetação e movimentação de terra (como tratores).
E, não só isso, firma contrato particular de prestação de serviços com o responsável pelo empreendimento que impõe a este o pleno cumprimento da legislação ambiental.
Na prática, o que muitas vezes acontece é que o maquinário deste terceiro de boa-fé é apreendido pelo órgão ambiental como se fosse de propriedade do infrator.
Além disso, confirmada a condenação por infração ambiental após transcurso do processo administrativo, a medida de apreensão é convertida em verdadeira sanção de perdimento dos bens.
E, pior de tudo, existem casos em que esse terceiro de boa-fé sequer consegue se defender no processo administrativo sancionador – afinal, não foi autuado.
Esse “déficit” na comunicação entre terceiros de boa-fé e órgão ambiental fiscalizador faz com que situações como a aqui descrita desemboquem no Poder Judiciário.
Índice
O que diz a jurisprudência
Felizmente, ao menos, o entendimento da jurisprudência tem sido pela ilegalidade de apreensão de maquinário nessas circunstâncias:
ADMINISTRATIVO. INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (IBAMA). INFRAÇÃO AMBIENTAL. APLICAÇÃO DE MULTA E APREENSÃO DO VEÍCULO TRANSPORTADOR DE MADEIRA PERTENCENTE A TERCEIRO. PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ DO PROPRIETÁRIO QUE NÃO CONCORREU PARA O ILÍCITO. RESTITUIÇÃO DO VEÍCULO. POSSIBILIDADE.
1. O veículo pertencente a terceiro, contratado para o serviço de transporte de madeira, somente pode ser apreendido, nos termos do art. 25, § 4º, da Lei 9.605/1998, quando for usado exclusivamente para o desempenho da atividade ilícita. Precedentes.
2. No caso, presume-se a boa-fé do proprietário do veículo que desempenha a atividade genérica de transporte de cargas. 3. Apelação e remessa oficial desprovidas. (TRF-1 – AC: 10000227520164013505, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ AMILCAR MACHADO, Data de Julgamento: 20/04/2021, SÉTIMA TURMA, Data de Publicação: PJe 28/04/2021 PAG PJe 28/04/2021 PAG)
REEXAME NECESSÁRIO COM RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – MANDADO DE SEGURANÇA – MAQUINÁRIO APREENDIDO EM AUTUAÇÃO DO ÓRGÃO AMBIENTAL ESTADUAL – PREVISÃO LEGAL – SUPERVENIENTE DEMONSTRAÇÃO DA LOCAÇÃO – BEM DE TERCEIRO – LIBERAÇÃO – BOA FÉ – RECURSO DESPROVIDO – SENTENÇA RATIFICADA.
Na hipótese dos autos, não há qualquer comprovação da participação do apelado (proprietário dos veículos) para o evento, o que permite concluir pela ocorrência de desvio de finalidade por excesso de poder da autoridade impetrada, ao apreender veículo de terceiro que, comprovadamente, agiu com boa-fé, consoante se extrai dos contratos de locação.
Ainda que o artigo 25 da Lei n. 9.605/98 autorize a apreensão de instrumentos utilizados na prática de infração ambiental, para adotar a medida contra bens de terceiros, faz-se necessário demonstrar que os proprietários ou prepostos dos referidos bens detinham conhecimento da prática de algum ilícito. (TJ-MT 00005378720168110087 MT, Relator: JOSÉ ZUQUIM NOGUEIRA, Data de Julgamento: 12/08/2020, SEGUNDA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO, Data de Publicação: 20/08/2020)
De fato, anda bem a jurisprudência. Não podemos perder de vista que estamos diante de direito administrativo sancionador, em que há necessidade de demonstração de responsabilidade subjetiva do infrator (entendimento este já consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça[1]).
Conclusão
Em um processo administrativo sancionador efetivamente balizado em nosso ordenamento jurídico, a Administração Pública tem de comprovar o dolo e/ou culpa do autuado para, daí sim, poder puni-lo com sanção de apreensão/perdimento.
Como não há dolo ou culpa em conduta de terceiro de boa-fé que apenas faz locação de maquinário, inviável que suporte repressão fiscalizatória por sua lícita atividade empresarial.
Na verdade, mais do que inexistência de dolo ou culpa, um terceiro de boa-fé em situações como as aqui descritas também não pode ser responsabilizado na via administrativa sancionadora simplesmente porque não é quem causa a conduta infracional (típica).
Enfim, apesar de que à primeira vista possa parecer juridicamente de fácil solução, o fato é que o contexto sobre o qual se discorre neste breve artigo é infelizmente repetido em muitos casos práticos por todo o país. Menos mal que o Poder Judiciário tenha dado solução adequada a essas questões.
De toda forma, aos que desenvolvem atividades de locação de maquinário a empreendedores que realizam ações potencialmente poluidoras devem ter extremo cuidado nos contratos de prestação de serviços que prestam, além de registrarem corretamente suas atividades.
Esse zelo pode vir a ser peça-chave para a recuperação de maquinário após uma ação de fiscalização, ainda que alcançado apenas na via judicial.
Quanto mais simples for para explicar que focinho de porco não é tomada, melhor… Em outro artigo falaremos sobre as possibilidades de fiel depositário.
Referências
[1] PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA SUBMETIDOS AO ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 2/STJ. EMBARGOS À EXECUÇÃO. AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO EM RAZÃO DE DANO AMBIENTAL. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. (…)
3. Ocorre que, conforme assentado pela Segunda Turma no julgamento do REsp 1.251.697/PR, de minha relatoria, DJe de 17/4/2012), “a aplicação de penalidades administrativas não obedece à lógica da responsabilidade objetiva da esfera cível (para reparação dos danos causados), mas deve obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ser cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano”.
4. No mesmo sentido decidiu a Primeira Turma em caso análogo envolvendo as mesmas partes: “A responsabilidade civil ambiental é objetiva; porém, tratando-se de responsabilidade administrativa ambiental, o terceiro, proprietário da carga, por não ser o efetivo causador do dano ambiental, responde subjetivamente pela degradação ambiental causada pelo transportador”.
(AgRg no AREsp 62.584/RJ, Rel. p/ Acórdão Ministra Regina Helena Costa, DJe de 7/10/2015). 5. Embargos de divergência providos. (EREsp n. 1.318.051/RJ, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 8/5/2019, DJe de 12/6/2019.)