No exercício da função administrativa e, principalmente, do poder de polícia a ela inerente, a Administração Pública possui o dever legal de motivar adequadamente os atos por ela praticados, isto é, justificar os seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes.
Aliás, a Administração Pública deve atuar em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público e motivação dos atos administrativos.
Hely Lopes MEIRELLES esclarece que “pela motivação o administrador público justifica sua ação administrativa, indicando os fatos (pressupostos de fato) que ensejam o ato e os preceitos jurídicos (pressupostos de direito) que autorizam sua prática.”[1]
É nesse contexto que, se houver discrepância na fundamentação jurídica do auto de infração ambiental, ou seja, fundamentado em norma federal quando o próprio Estado ou Município possui legislação própria, estar-se-á diante de ato administrativo da mais absoluta nulidade.
Índice
1. Auto de infração ambiental com vício de motivação
Quando o auto de infração ambiental é lavrado pelo órgão ambiental de fiscalização estadual ou municipal, com a preocupação fundamental de preservar o meio ambiente, ainda que no poder de polícia administrativa no Estado, deve-se observar a legislação vigente no âmbito de sua competência.
Com efeito, a legislação de imposição de sanções pelo seu descumprimento, legitima o exercício do poder de polícia pelas entidades competentes para tanto (órgão ambiental).
Nos dizeres de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a “competência particularizante” que lhe foi atribuída pela Constituição Federal de 1988, no art. 24, incisos VI e VII:
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: […] – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; – proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;”
Visto isso, importa observar que eventual recurso às normas de cunho federal que regem o tema, em se tratando de competência concorrente, somente pode se dar em caso de inexistência ou lacuna na norma estadual que rege o mesmo assunto.
Nesse sentido, o entendimento de Nicolao Dino:
“Assim, as disposições de caráter geral constantes da Lei 9.605/98 e sua respectiva regulamentação, no que tange às infrações administrativas, serão plena e diretamente aplicáveis no âmbito dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios, em relação aos ilícitos administrativos ambientais que se encartarem em suas respectivas competências, se e enquanto cada um desses entes políticos não houver exercitado sua competência particularizante.”[2]
A esse respeito, se o órgão ambiental estadual ou municipal possui regulamentação própria, ou seja, se existem diplomas legais que tratam tanto do processo administrativo quanto das infrações administrativas ambientais, não poderá utilizar norma federal para motivar e aplicar auto de infração ambiental.
2. Norma federal para lavrar auto de infração ambiental
Quando o órgão ambiental estadual ou municipal utiliza norma federal para lavrar auto de infração, mesmo possuindo legislação própria, estará violando as regras constitucionais de competência, estabelecidas exatamente para garantir ao administrado a segurança jurídica necessária ao conhecimento do arcabouço legal ao qual se vincula.
Vale destacar, que o Decreto Federal 6.514/2008 dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal.
Isso porque, não é aceitável a aplicação da legislação federal em detrimento da estadual ou municipal, pois a legislação federal não atende ao repartimento de competências, mormente quando ausente lacunas na legislação estadual ou municipal.
Ademais, lacunas na legislação ambiental estadual ou municipal não se prestam a autorizar a aplicação de sanções na ocorrência de infrações administrativas ambientais, porque no âmbito de sua competência, o que o legislador não previu não pode ser considerado como lacuna para se utilizar norma do ente federal.
3. Inexistência de lacuna capaz de autorizar o Estado a desconsiderar a sua própria legislação
Com efeito, não pode a administração pública estadual ou municipal ignorar – pura e simplesmente – as leis que regem sua atuação no Estado, fundamentando-se em diplomas alheios à sua esfera de competência, sob pena de grave violação às regras de competência estabelecidas na Constituição Federal de 1988.
E mais: não é dado à órgão ambiental o poder de optar pela legislação aplicável no exercício do seu poder de polícia, de forma arbitrária e descompassada, como ocorre comumente nos Estados e Municípios.
Isso implica dizer que, quando Estados e Municípios, mesmo possuindo legislação própria se utilizam de norma federal para impor sanções administrativas, estará incorrendo em arbitrariedade cujos atos estarão eivados de ilegalidade.
Tal postura revela, de forma evidente, nítida intenção de penalizar o infrator de forma desigual, desproporcional e desarrazoada, sem qualquer motivação/justificativa fática ou jurídica para tanto.
Ora, o simples cotejo de enquadrar infrações ambientais em norma diversa, evidencia de forma clara e indene de dúvida a inexistência de critérios objetivos para o exercício do poder de polícia no âmbito dos Estados e Municípios.
Trata-se, pois, de uso de “dois pesos e duas medidas” para impor sanções em hipóteses semelhantes de forma arbitrária e injustificada, em evidente violação aos princípios da igualdade/isonomia dos administrados em face da Administração e da segurança jurídica, se o Estado/Município possui legislação própria que pode ser utilizada por outro agente para caracterizar a mesma infração.
Vale destacar que a maioria das Constituições Estaduais, são claras ao estabelecer que nos procedimentos administrativos, observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a igualdade entre os administrados e o devido processo legal, especialmente quanto à exigência da publicidade, do contraditório, da ampla defesa e do despacho ou decisão motivados.
Decorre da necessária observância do princípio da igualdade/isonomia a regra de que a Administração:
“não pode desenvolver qualquer espécie de favoritismo ou desvalia em proveito ou detrimento de alguém. Há de agir com obediência ao princípio da impessoalidade”[3].
E mais:
“Não sendo o interesse público algo sobre que a Administração dispõe a seu talante, mas, pelo contrário, bem de todos e de cada um, já assim consagrado pelos mandamentos legais que o erigiram à categoria de interesse desta classe, impõe-se, como consequência, o tratamento impessoal, igualitário e isonômico que deve o Poder Público dispensar a todos os administrados”.
4. Violação ao princípio da segurança jurídica e exemplo prático
O princípio da segurança jurídica, no contexto ora em estudo, demanda o efetivo conhecimento pelo administrado da ordem jurídica que rege a vida em sociedade e, desta forma, molda os comportamentos perante a Administração.
A ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar e saber o que podem ou não fazer, tendo em vista as consequências imputáveis a seus atos.
Sobre o tema em exame, vale lançar mão dos lúcidos argumentos deduzidos pelo Prof. Paulo de Bessa Antunes, em artigo publicado no site Conjur[4], abaixo transcritos, que trata do Estado de São Paulo que escolhe qual legislação aplicar no momento da lavratura do auto de infração ambiental:
“O fato é que, quando ocorrem incidentes de poluição industrial, sem qualquer base legal, o órgão ambiental tem aplicado a Lei Federal 9.605/1998 e o seu regulamento administrativo estabelecido pelo Decreto Federal 6.514/2008.
Alega a órgão ambiental que a lei estadual está defasada no tempo e que a lei federal é mais condizente com a realidade atual. Entretanto, vale o registro de que a infração administrativa de poluição no decreto federal é punida com multa variável entre R$ 5.000,00 e R$ 50.000.000,00.
Curiosamente, em atividades de menor impacto ambiental e de menor capacidade econômica do “agente infrator”, o órgão ambiental permanece fiel à lei paulista. Não se quer insinuar que a escolha da aplicação das normas federais para os “grandes” tenha qualquer relação com o valor das multas federais comparadas às estaduais. (…)
Ora, como sabemos, a praxe administrativa não revoga lei e, obviamente, o Estado deve aplicar a sua em todos os casos de poluição ocorridos nos seus limites territoriais (…).
O procedimento que vem sendo adotado não é condizente com o pioneirismo que sempre foi característico do Estado na proteção ambiental, merecendo correção de rumos.
É evidente que a falta de critérios objetivos e a indefinição quanto às normas aplicáveis aos casos concretos é extremamente danosa, pois não sinaliza inequivocamente para as atividades industriais quais são os critérios legais aplicáveis.”
5. Conclusão
Fica evidente que a falta de critério em situações similares e com danos muito aproximados, utilizando-se, para aplicar a multa, dois pesos e duas medidas para casos similares e sem nenhum critério objetivo para aplicar multas ambientais viola o princípio da isonomia ou igualdade e da segurança jurídica.
Todo esse cenário escancara vício de motivação no auto de infração ambiental lavrado com base em legislação federal quando o próprio Estado ou Município possuem legislação própria.
Tal vício viola frontalmente as regras de competência estabelecidas na Constituição Federal, bem como revela o desrespeito aos princípios da igualdade/ isonomia/ impessoalidade e da segurança jurídica em relação ao direito aplicado, fulminando, assim, a nulidade do auto de infração ambiental.