Inversão do ônus da prova. Direito Ambiental. jurisprudência. STJ.
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Inversão do ônus da prova. Direito Ambiental. jurisprudência. STJ.
Legislador, doutrina e jurisprudência convergem na suavização da inflexibilidade do regime do art. 333 do CPC, particularmente nos processos coletivos.
No campo do Direito Ambiental, aplicáveis com maior razão os fundamentos teórico-dogmáticos do ônus dinâmico, acima aludidos. Mas não é só.
A própria natureza indisponível do bem jurídico protegido (o meio ambiente), de projeção intergeracional, certamente favorece uma atuação mais incisiva e proativa do juiz, que seja para salvaguardar os interesses dos incontáveis sujeitos-ausentes, por vezes toda a humanidade e as gerações futuras.
Ademais, o cunho processual do art. 6º, VIII, do CDC liberta essa regra da vinculação exclusiva ou confinamento à relação jurídica de consumo.
Por derradeiro, a incidência do princípio da precaução, ele próprio transmissor por excelência de inversão probatória, base do princípio in dubio pro natura, induz igual resultado na dinâmica da prova, aliás como expressamente reconhecido pelo STJ.
Manifestação jurídica da complexidade dos processos ecológicos e da crescente estima ética, política e legal da garantia de qualidade ambiental, o princípio in dubio pro natura, na sua acepção processual, encontra suas origens remotas no tradicional principio in dubio pro damnato (= na dúvida, em favor do prejudicado ou vítima), utilizado nomeadamente na tutela da integridade física das pessoas.
Ninguém questiona que, como direito fundamental das presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado reclama tutela judicial abrangente, eficaz e eficiente, não se contentando com iniciativas materiais e processuais retóricas, cosméticas, teatrais ou de fantasia.
Consequentemente, o Direito Processual Civil deve ser compatibilizado com essa prioridade, constitucional e legal, dado o seu caráter instrumental, mas nem por isso menos poderoso e decisivo na viabilização ou negação do desiderato maior do legislador – uma genuína e objetiva facilitação do acesso à Justiça para os litígios ambientais.
Por sua vez, o princípio da precaução, reconhecido implícita e explicitamente pelo Direito brasileiro, estabelece, diante do dever genérico e abstrato de conservação do meio ambiente, um regime ético-jurídico em que o exercício de atividade potencialmente poluidora, sobretudo quando perigosa, conduz à inversão das regras de gestão da licitude e causalidade da conduta, com a imposição ao empreendedor do encargo de demonstrar a sua inofensividade.
Dito de outra forma, pode-se dizer que, no contexto do Direito Ambiental, o adágio in dubio pro reo é transmudado, no rastro do princípio da precaução, em in dubio pro natura, carregando consigo uma forte presunção em favor da proteção da saúde humana e da biota.
Tal, por óbvio:
“coloca a responsabilidade pela demonstração da segurança naqueles que conduzem atividades potencialmente perigosas”, o que simboliza claramente “um novo paradigma: antes, o poluidor se beneficiava da dúvida científica; doravante, a dúvida funcionará em benefício do ambiente”
(Nicolas de Sadeleer, Environmental Principles: From Political Slogans to Legal Rules, Oxford, Oxford University Press, 2002, p. 203).
A inversão do ônus da prova, em matéria ambiental, é amplamente sustentada pela melhor doutrina brasileira.
Para Hugo Nigro Mazzilli (A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 22ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 181), a norma do art. 6º, VIII, do CDC:
(…) tem evidente caráter processual, ainda que não inserida no Título III do CDC. Ora, a mens legis consiste em integrar por completo as regras processuais de defesa de interesses transindividuais, fazendo da LACP e do CDC como que um só estatuto. Dessa forma, a inversão pode ser aplicada, analogicamente, à defesa judicial de quaisquer interesses transindividuais”.
Ricardo de Barros Leonel trata extensivamente da matéria:
Não obstante a inversão do ônus tenha sido capitulada no Código do Consumidor entre as regras de direito material, como direito básico do consumidor, não significa que tenha perdido seu caráter de norma adjetiva.
A explicitação como direito básico do consumidor deve ser analisada teleologicamente, pois foi a forma encontrada pelo legislador para demonstrar a maior importância possível reconhecida à regra.
Pretendeu-se explicitar que a norma processual de julgamento de modificação do ônus, além do aspecto procedimental, fora alçada a relevo maior, configurando direito fundamental do sistema de proteção ao consumidor. Ademais, a exegese do ordenamento não pode ser feita só pelo método gramatical.
É imprescindível utilização conjunta dos princípios hermenêuticos, com o reconhecimento da finalidade – interpretação teleológica ou finalística – da norma analisadda.
Na hipótese em comento, a determinação de aplicação recíproca de normas do “capítulo processual” do Código do Consumidor à Lei da Ação Civil Pública implica a conclusão de que as “normas processuais” daquele diploma são utilizáveis nas demandas coletivas, ainda que não fundadas em relações de consumo.
Nessa linha de raciocínio, toda e qualquer norma processual de cada um dos diplomas coletivos pode justificar providências e subsidiar soluções em demandas fundadas em diplomas distintos do ordenamento supra-individual.
Acrescente-se que a interpretação ampliativa – aplicação recíproca de todas as normas processuais do ordenamento coletivo – é a que melhor se amolda ao ordenamento constitucional e infraconstitucional , pois ultimamente o labor legislativo tem sido voltado à otimização e ampliação da tutela coletiva.
Tais conclusões ajustam-se ao moderno pensamento científico, identificando como valor subjacente ao processo a implementação de sua máxima efetividade, pois deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que deve receber (Manual do Processo Coletivo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, pp. 341-342).
Celso Antonio Pacheco Fiorillo, por sua vez, defende que o tratamento diferenciado se justifica pelo desequilíbrio na relação entre o poluidor e a vítima, a par do real sentido do princípio da igualdade (Princípios do Direito Processual Ambiental, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, pp. 66-67):
O conteúdo jurídico do princípio da isonomia no direito processual ambiental irá refletir, conforme pudemos observar, em todos os aspectos instrumentais aplicáveis à defesa em juízo do meio ambiente.
Daí se admitir no direito processual ambiental (a exemplo do que ocorre nos subsistemas antes referidos, em que se reconhece uma das partes como mais fraca em face de determinada relação jurídica) a necessidade de adotar alguns mecanismos destinados a “equilibrar” a relação poluidor/pessoa humana;
É a hipótese de mencionar, a exemplo do que ocorre no direito das relações de consumo, a possibilidade de inverter o ônus da prova estatuído no art. 6º, VIII, da Lei 8.078/90, em proveito do conteúdo do princípio da isonomia no direito ambiental brasileiro.
Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart observam que a inversão do ônus probatório tem a ver com a necessidade de se viabilizarem as transformações pregadas pelo Direito material, como na defesa do meio ambiente, não se limitando à hipótese da proteção do consumidor (Processo de Conhecimento, 7ª ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2008, p. 272):
A idéia de que somente as relações de consumo reclamam a inversão do ônus da prova não tem sustentação. Considerada a natureza das relações de consumo, é certo que ao consumidor não pode ser imputado o ônus de provar certos fatos (..).
Porém, isso não quer dizer que não existam outras situações de direito substancial que exijam a possibilidade de inversão do ônus da prova ou mesmo requeiram uma atenuação do rigor na aplicação da sua regra, contentando-se com a verossimilhança.
Basta pensar nas chamadas atividades perigosas, ou na responsabilidade pelo perigo, bem como nos casos em que a responsabilidade se relaciona com a violação de deveres legais, quando o juiz não pode aplicar a regra do ônus da prova como se estivesse frente a um caso “comum”, exigindo que o autor prove a causalidade entre a atividade e o dano e entre a violação do dever e o dano sofrido.
Ou seja, não há razão para forçar uma interpretação capaz de concluir que o art. 6º, VIII, do CDC pode ser aplicado, por exemplo, nos casos de dano ambiental, quando se tem a consciência de que a inversão do ônus da prova ou a redução das exigências de prova têm a ver com as necessidades do direito material e não com uma única situação específica ou com uma lei determinada.
Além disso, não existe motivo para supor que a inversão do ônus da prova somente é viável quando prevista em lei. Aliás, a própria norma do art. 333 não precisaria estar expressamente prevista, pois decorre do bom senso ou do interesse na aplicação da norma de direito material (…).
Da mesma forma que a regra do ônus da prova decorre do direito material, algumas situações específicas exigem o seu tratamento diferenciado.
Na mesma linha a lição de Didier, Sarno e Oliveira:
Parece-nos que a concepção mais acertada sobre a distribuição do ônus da prova é essa última: a distribuição dinâmica do ônus da prova, segundo a qual a prova incumbe a quem tem melhores condições de produzi-la, à luz das circunstâncias do caso concreto. Em outras palavras: prova quem pode.
Esse posicionamento justifica-se nos princípios da adaptabilidade do procedimento às peculiaridades do caso concreto, da cooperação e da igualdade (…). (Fredie Didier Jr. et alii, Curso de Direito Processual Civil, Salvador, Editora PODIVM, 2007, vol. 2, p. 62).
Centrado nos reflexos processuais do princípio da precaução, esclarece o Magistrado paulista Álvaro Luiz Valery Mirra (Ação Civil Pública e a Reparação do Dano ao Meio Ambiente, 2ª ed., São Paulo, Editora Juarez de Oliveira, 2004, p. 268):
Como decorrência da substituição do critério da certeza pelo critério da probabilidade, consagrado com o advento do princípio da precaução, pode-se dizer que, nas ações ambientais, para o autor da demanda basta a demonstração de elementos concretos e com base científica, que levem à conclusão quanto à probabilidade da caracterização da degradação, cabendo, então, ao réu a comprovação de que a sua conduta ou atividade, com absoluta segurança, não provoca ou não provocará a alegada ou temida lesão ao meio ambiente.
Assim, o princípio da precaução tem também essa outra relevantíssima conseqüência na esfera judicial: acarretar a inversão do ônus da prova, impondo ao degradador o encargo de provar, sem sombra de dúvida, que a sua atividade questionada não é efetiva ou potencialmente degradadora da qualidade ambiental. Do contrário, a conclusão será no sentido de considerar caracterizada a degradação ambiental.
Havendo indícios de graves danos ambientais, seria contrassenso admitir que norma instrumental (art. 333, caput), em tese voltada à realização da justiça material, vire obstáculo instransponível à proteção do meio ambiente e sirva de escudo ao potencial poluidor, em detrimento de bens dessa magnitude (a proteção jurisdicional que se busca compreende, simultaneamente, o ambiente e a saúde pública).
Portanto, no Direito Ambiental brasileiro, a inversão do ônus da prova é de ordem substantiva e ope legis, direta ou indireta (esta última se manifesta, p. ex., na derivação inevitável do princípio da precaução), como também de cunho estritamente processual e ope judicis (assim no caso de hipossuficiência da vítima, verossimilhança da alegação ou outras hipóteses inseridas nos poderes genéricos do juiz, emanação natural do seu ofício de condutor e administrador do processo), fazendo-a valer, universalmente, em todos os domínios da Ação Civil Pública, inclusive em matéria ambiental, e não só no espaço das relações de consumo.
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2 Comentários. Deixe novo
Peço licença para usar com referência em minha tese de mestrado. Parabéns!
À vontade Madalena 😉 Aliás, nós do escritório Farenzena Advocacia e que agradecemos por nosso conteúdo lhe ser útil.