É possível a aplicação do princípio da consunção, para que os crimes ambientais de causar dano ambiental em unidade de conservação (art. 40) e impedir sua regeneração (art. 48) previstos da Lei de Crimes Ambientais sejam absorvidos pelo crime de construir em solo que, por seu valor ecológico, não é edificável (art. 64 da mesma Lei).
Referidos crimes ambientais estão assim redigidos:
Art. 40. Causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização:
Art. 48. Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação:
Art. 64. Promover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:
A conduta de construir casa ou qualquer outro tipo de edificação em área de estação ecológica, unidade de conservação do tipo de proteção integral, corresponde unicamente ao crime ambiental previsto no art. 64, pois não há distinção entre os bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras.
Índice
1. Absorção do delito do art. 48 pelo do art. 64 da Lei 9.605/1998
Quanto ao crime ambiental de impedir a regeneração de florestas previsto no art. 48 da Lei 9.605/98, a jurisprudência já sacramentou que tal conduta é mero pós-fato impunível do ato de construir em local não edificável.
Tal assertiva decorre porque, com a própria existência da construção desejada e executada pelo infrator, na qual reside o dolo, a regeneração da flora antes existente no mesmo lugar fica inevitavelmente impedida.
Ou seja, se é a própria existência da edificação irregular que impede a regeneração natural da vegetação, o delito do art. 48 da Lei 9.605/1998 resta absorvido pelo do art. 64 da mesma legislação.
Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ:
Aquele que constrói uma edificação, claramente não poderá permitir que dentro daquela venha a nascer uma floresta. É mero exaurimento do crime de construção indevida, pelo aproveitamento natural da coisa construída’ (REsp 1639723/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 07/02/2017, DJe 16/02/2017).
Portanto, há conflito aparente de normas quando há a incidência de mais de uma norma repressiva numa única conduta delituosa, sendo que tais normas possuem entre si relação de hierarquia ou dependência, de forma que somente uma é aplicável.
2. Princípio da consunção entre os art. 40 e 64 da Lei 9.605/1998
No caso do crime ambiental de causar dano em unidade de conservação (art. 40) consistente na construção de imóvel em local não edificável (art. 64), também se aplica o princípio da consunção, de modo, aquele é absorvido por este.
Aqui, todavia, a jurisprudência é tímida. Por isso, passemos a uma análise jurídica dos tipos penais. Mas antes disso, é necessário compreender melhor as unidades de conservação.
O regime jurídico geral das unidades de conservação está previsto na Lei 9.985/00 (Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC), dispondo, em seu art. 2º, I:
Art. 2º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I – unidade de conservação: espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção;
As unidades de conservação e outras categorias de espaços territoriais especialmente protegidos, como as áreas de preservação permanente e a reserva legal, são criadas por ato do poder público ou em conjunção de vontades com o particular proprietário da área.
2.1. Divisão das unidades de conservação integrantes do SNUC
As unidades de conservação integrantes do SNUC dividem-se em dois grupos, com características específicas:
Unidades de Proteção Integral: tem o objetivo básico de preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, dividas nas seguintes categorias:
- Estação Ecológica;
- Reserva Biológica;
- Parque Nacional;
- Monumento Natural;
- Refúgio de Vida Silvestre.
Unidades de Uso Sustentável: tem o objetivo básico de compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais, assim divididas:
- Área de Proteção Ambiental;
- Área de Relevante Interesse Ecológico;
- Floresta Nacional;
- Reserva Extrativista;
- Reserva de Fauna;
- Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e
- Reserva Particular do Patrimônio Natural.
3. Conflito aparente de normas entre os art. 40 e 64 da Lei 9.605/1998
Como visto, há diferentes categorias de Unidades de Conservação, permitindo-se, a depender da categoria, um uso mais flexibilizado, como bem destacam Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer:
Muito embora as diferentes categorias que integram o grupo das unidades de conservação de proteção integral, todas apresentam um regime jurídico mais rígido de proteção, já que, diferentemente do grupo das unidades de conservação de uso sustentável, o seu objetivo principal é a preservação do ambiente natural, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com forte limitação à intervenção antrópica.[1]
As unidades de conservação não são o único espaço especialmente protegido que recebe especial tutela da Lei 9.605/1998.
Isso porque, também há outras espécies de áreas que recebem especial proteção da lei penal ambiental, a exemplo das florestas de preservação permanente (arts. 38, 39, 40, 44), as de domínio público (arts. 44 e 50-A), a Mata Atlântica (art. 38-A), a vegetação fixadora de dunas e mangues (art. 50) e as praias (art. 54, § 2º, IV).
Sendo assim, para avaliar a possibilidade de absorção de um crime por outro, é necessário verificar se o delito menor se encontra na cadeia causal do delito continente, como uma etapa do iter criminis – seja na preparação, consumação ou exaurimento do crime maior.
Tal raciocínio independe da diversidade de bens jurídicos protegidos por cada tipo incriminador ou do fato de que o crime absorvido tenha pena maior do que a do crime continente, como ensina Cezar Roberto Bitencourt[2]:
Não convence o argumento de que é impossível a absorção quando se tratar de bens jurídicos distintos. A prosperar tal argumento, jamais se poderia, por exemplo, falar em absorção nos crimes contra o sistema financeiro (Lei 7.492/86), na medida em que todos eles possuem uma objetividade jurídica específica. É conhecido, entretanto, o entendimento do TRF da 4ª Região, no sentido de que o art. 22 absorve o art. 6º da Lei 7.492/8612.
Na verdade, a diversidade de bens jurídicos tutelados não é obstáculo para a configuração da consunção. Inegavelmente – exemplificando – são diferentes os bens jurídicos tutelados na invasão de domicílio para a prática de furto, e, no entanto, somente o crime-fim (furto) é punido, como ocorre também na falsificação de documento para a prática de estelionato, não se punindo aquele, mas somente este (Súmula 17/STJ).
Como se vê, o fato de os tipos penais se localizarem em seções diferentes de uma legislação penal e tutelarem bens jurídicos diferentes, ou então, que em determinadas situações o crime cuja sanção é mais branda absover o crime com sanção mais grave, não inviabiliza a consunção.
Nesse norte, a distinção entre os bens jurídicos tutelados pelos arts. 40 e 64 da Lei 9.605/1998 é suavizada ao passo que, este último se refere à construção em espaços não edificáveis por sua especial relevância ecológica, abrangendo expressamente a guarida do meio ambiente, e não apenas as posturas locais de ordenação urbanística e da ocupação do solo.
À propósito, o doutrinador Luís Paulo Sirvisnkas[3], ao comentar o art. 64 da Lei 9.605/1998, identifica que o “bem jurídico protegido é a preservação do patrimônio natural, cultural e urbano”.
3.1. Pós-fato punível
Sobre a categoria dos pós-fatos, Johanes Wessels[4] leciona:
A ideia básica da consunção se aplica totalmente ao pós-fato impunível. Um pós-fato é consumido quando se exaure na utilidade ou asseguramento da posição alcançada com a infração anterior, sem aumentar consideravelmente o dano já causado ou violar nenhum outro interesse jurídico.
A conexão típica entre os dois atos autônomos é que o agente precisa cometer o pós-fato para que o antefato tenha, para ele, algum sentido. Assim é que um furto só faz sentido para o agente se ele puder utilizar o bem ilegalmente obtido para seus próprios fins.
4. Jurisprudência
A jurisprudência ainda é tímida em relação à consunção entre os arts. 40 e 64 da Lei 9.605/98, porém, o STJ possui entendimento de que ocorre crime único quando o agente constrói em algum espaço ambiental especialmente protegido. Nesse sentido:
PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME AMBIENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. ARTS. 48 E 64 DA LEI N. 9.605/98. CONSUNÇÃO. ABSORVIDO O CRIME MEIO DE DESTRUIR FLORESTA E O PÓS-FATO IMPUNÍVEL DE IMPEDIR SUA REGENERAÇÃO. CRIME ÚNICO DE CONSTRUIR EM LOCAL NÃO EDIFICÁVEL. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
Ocorre o conflito aparente de normas quando há a incidência de mais de uma norma repressiva numa única conduta delituosa, sendo que tais normas possuem entre si relação de hierarquia ou dependência, de forma que somente uma é aplicável.
O crime de destruir floresta nativa e vegetação protetora de mangues dá-se como meio necessário da realização do único intento de construir casa ou outra edificação em solo não edificável, em razão do que incide a absorção do crime-meio de destruição de vegetação pelo crime-fim de edificação proibida.
Dá-se tipo penal único de incidência final (art. 64 da Lei n. 9.605/98), já em tese crime uno, diferenciando-se do concurso formal, onde o crime em tese é duplo, mas ocasionalmente praticado por ação e desígnio únicos. Recurso especial improvido”. (REsp 1639723/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 07/02/2017, DJe 16/02/2017).
E ainda:
Com a vênia de Vossa Excelência, tenho manifestado que nas hipóteses de construção em área ambiental o crime único ocorrido é o do art. 64 da lei ambiental.
Sobre o tema, diversamente do posicionamento fixado em alguns precedentes desta Corte Superior (AgRg no REsp 1214052/SC, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe 12/03/2013 e REsp 1125374/SC, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJe 17/08/2011), entendo que a suposta destruição da vegetação nativa é mera etapa inicial do único crime pretendido e realizado de construir em local não edificável (área de preservação permanente).
O crime de destruir floresta nativa dá-se como meio da realização do único intento de construir em local não edificável, em razão do que incide a absorção do crime-meio de destruição de vegetação pelo crime-fim de edificação proibida.
Na mesma linha, o delito de impedir a regeneração natural da flora se dá como mero gozo da construção, em evidente pós-fato impunível. Aquele que constrói uma edificação, claramente não poderá permitir que dentro daquela venha a nascer uma floresta. É mero exaurimento do crime de construção indevida, pelo aproveitamento natural da coisa construída” (REsp 1376670/SC).
5. Conclusão
Conclui-se que, o dano causado pela construção em unidade de conservação de proteção integral é absorvido pelo crime de edificação irregular, bem como, pelo crime de impedir sua regeneração, de modo que, o princípio da consunção impede a condenação autônoma pelo arts. 40 e 48 da Lei 9.605/1998.
Ademais, o próprio dano à unidade de conservação ou impedimento da regeneração decorrem da construção proibida, ou seja, se esta não existisse, aqueles também não existiriam.
Além disso, o crime ambiental previsto no art. 64 da Lei 9.605/1998 já contempla o crime do art. 40, porquanto prevê a tutela do dano ecológico.
Portanto, a incidência do princípio da consunção entre os arts. 40 e 64 da Lei de Crimes Ambientais é cabível para casos de construção em Unidade de Conservação, de modo que somente este último é punível.