O executado opôs embargos à execução fiscal movida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA para cobrança de multa ambiental, alegando que o procedimento administrativo instaurado para apurar a prática de infração ambiental consistente em desmatamento de floresta nativa no Bioma Amazônia padecia de nulidade.
Isso porque, a conduta descrita no auto de infração ambiental consistiu em desmatamento e foi enquadrado no art. 50 do Decreto 6.514/08, porém, a floresta destruída, no caso Amazônica, não é objeto de especial preservação, tornando atípica a conduta, pedindo que a execução fiscal de multa ambiental fosse extinta.
Instado a se manifestar, o IBAMA defendeu a presunção de legitimidade da Cédula de Dívida Ativa – CDA, e disse que o procedimento administrativo tramitou regularmente, tendo apurado desmate da Floresta Amazônica.
O IBAMA também sustentou a desnecessidade de legislação infraconstitucional para regulamentar o § 4º, do art. 225, da Constituição Federal de 1988, bem ainda defendeu o acerto do auto de infração ambiental, que faz referência ao ferimento do art. 50, do Decreto 6.514/08, sustentando que toda a floresta amazônica é objeto de especial preservação.
Entretanto, as alegações do IBAMA foram rechaçadas pelo Juízo, que acolheu os embargos e extinguiu a execução fiscal que cobrava multa ambiental oriunda de auto de infração ambiental lavrado com base no art. 50 do Decreto 6.514/08, porque esse protege floresta de especial preservação, o que não é o caso da Floresta Amazônica.
Índice
Leia a sentença que anulou auto de infração ambiental
Observa-se, da análise das cópias dos documentos administrativos instaurado pelo IBAMA, que o motivo da autuação foi o Exequente ter destruído 18,04 ha de vegetação nativa, considerada objeto de especial preservação, sem autorização do órgão ambiental.
Entretanto, convém tecer alguns comentários sobre o critério utilizado, levando em conta que o Órgão de proteção ambiental se refere à área desmatada como sendo de especial proteção, porém sem identificar a legislação que a considera como tal.
Tal qual em diversos outros casos semelhantes que chegam a este Juízo, relativos às multas por infrações ambientais ocorridas na região amazônica, o IBAMA cita artigo da Constituição Federal que trata das áreas consideradas Patrimônio Nacional, mas que submete sua utilização à edição de lei regulamentadora (art. 225, § 4º):
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. (…)
§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
Ocorre que, o IBAMA tipificou a autuação no art. 50 do Decreto 6.514/08, o qual contempla a conduta de “Destruir ou danificar florestas ou qualquer tipo de vegetação nativa ou de espécies nativas plantadas, objeto de especial preservação, sem autorização ou licença da autoridade ambiental competente”.
Todavia, quando da lavratura do auto de infração, o IBAMA não apontou qualquer elemento que indicasse que a flora desmatada pelo Embargante se enquadrasse no conceito legal “objeto de especial preservação”.
A despeito da previsão constitucional de ser patrimônio nacional, a própria Carta Magna submete a utilização das referidas áreas à edição de lei específica regulamentadora – consoante transcrito alhures, ou seja, a utilização da floresta amazônica deve ser regulada por lei, entendendo-se não ser possível infração ambiental (ou qualquer outra) sem norma anterior que a defina.
No ordenamento jurídico brasileiro há um conjunto de normas que regulamentam o preceito constitucional, a exemplo da Lei 11.428/06 (Lei da Mata Atlântica) e da Lei 12.651/12 (Código Florestal), que estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, de áreas de preservação permanente (APPs) e da reserva legal.
Entretanto, apesar da previsão constitucional de proteção especial, não houve, até o momento, edição de norma específica para disciplinamento da Floresta Amazônica como área de proteção especial – diferente, como visto acima, do bioma Mata Atlântica.
Fica claro que há uma definição do que seja especial preservação: regime jurídico próprio e especial definido em legislação. Assim, questiona-se, quais áreas da Amazônia seriam objeto de especial preservação?
As áreas de preservação permanente e as de reserva legal, bem como as unidades de conservação criadas na forma da legislação, pois só essas têm regime jurídico próprio e especial. Não há regime jurídico especial para as áreas particulares situadas na Amazônia, onde é permitido o uso alternativo do solo.
Partindo dessa análise, constatamos que nem todo o território abrangido pela Floresta Amazônica é área de proteção especial, por falta de legislação específica.
Deverão ser identificadas áreas de preservação permanente e reserva legal – que no caso da Amazônia Legal poderá variar entre 20 e 80%, conforme art. 12, da Lei 12.651/12. Se fosse adotado entendimento diverso, nenhuma área da Amazônia Legal poderia ser desmatada ou cultivada.
Dessa forma, para aferição de infração ambiental em área situada na Amazônia Legal, mister se faz a delimitação dessas áreas (preservação permanente e reserva legal) dentro da área total do imóvel, para que, então, seja aplicada a legislação pertinente.
Nesse sentido, a legislação aplicada é a genérica, no tocante às vedações quanto às áreas de preservação permanente e reserva legal. De fato, o regime aplicável às APPs da Amazônia é o mesmo das demais matas comuns do resto do país.
O cuidado que se deve ter com a reserva legal na Amazônia é o mesmo cuidado que se deve ter com qualquer reserva legal das propriedades localizadas em outras regiões.
Não há regime mais ou menos gravoso só por ser floresta amazônica. Igualmente, nas áreas de uso alternativo do solo em imóveis da Amazônia não há diferença de regime jurídico em relação às áreas de mesmo uso em relação aos imóveis fora daquela região. Isso é a prova de que não há regime jurídico próprio e especial.
Pretende o legislador, por meio da lei de crimes Ambientais e seus regulamentos, uma punição mais severa de quem danifica floresta objeto de especial preservação.
Tanto o faz que comina multa para tal infração em valor muito superior àquela cominada para destruição de matas que não são objeto de especial proteção.
Relembre que existe, sim, infração para punir aquele que danifica floresta sem essa elementar “especial proteção”. Porém, comina pena bem menor, tendo em vista a menor reprovação da conduta.
A doutrina segue o mesmo entendimento. Paulo Afonso Leme Machado cita como exemplos de espaços territoriais especialmente protegidos as unidades de conservação, as áreas de preservação permanente e as reservas legais florestais, asseverando que são criadas por meio de resolução, decreto, lei ou portaria. Esse é também o entendimento de Edis Milaré.
Da mesma forma, José Afonso da Silva afirma que a transformação dos biomas citados em patrimônio nacional visa impedir qualquer forma de internacionalização da Amazônia ou qualquer outra área.
Percebe-se, assim, não haver cabimento na interpretação dada pelo IBAMA de qualquer área da Amazônia seja objeto de especial proteção.
Por falta de norma que regulamente a Amazônia como sendo de especial proteção, serão protegidos de forma específica só os espaços assim designados em lei, como no caso da reserva legal, da área de preservação permanente ou unidades de conservação.
E isso tem um fundamento específico: trata-se de direito sancionador. E tal ramo deve se pautar pela legalidade estrita. Vejamos.
Do direito sancionador. Respeito à legalidade estrita
O poder sancionador da Administração Pública é consequência do princípio da supremacia do interesse público – inerente e essencial a qualquer convívio social. “Deriva do princípio da submissão do Poder Público à ordem jurídica a tipicidade dos atos estatais”.
“O excepcional poder sancionador da Administração Pública, por representar uma exceção ao monopólio jurisdicional do Judiciário, somente pode ser exercido em situações peculiares e dentro dos estritos limites da legalidade formal, não havendo, nessa seara específica do Direito Administrativo (Direito Sancionador), a possibilidade de atuação administrativa discricionária, na qual vigora a avaliação de oportunidade, conveniência e motivação, pelo próprio agente público, quanto à emissão e ao conteúdo do ato” (STJ, AgRg no REsp 1287739. Rel. Min. Francisco Falcão. Julgado em 31.05.2012).
“Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. O que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção”. Diante disso, observa-se que as elementares da infração administrativa demandam análise estrita.
O art. 37 do Decreto 3.179/99 traz hipótese de norma em branco – à semelhança das leis penais em branco. Sendo assim, demandaria uma complementação, que não veio. Alguns argumentam que a “especial proteção” da Floresta Amazônica decorreria expressamente do §4º do art. 225 da CF.
Todavia, a legislação exigida deve ser específica, tratando da regulamentação do bioma – à semelhança da Mata Atlântica. O que a CF faz é apenas estabelecer alguns biomas como “patrimônio nacional”; a partir dessa definição, o legislador tem a faculdade de passar a tratar do tema com suas especificidades. E desse dever ainda não se desincumbiu nosso Congresso Nacional.
Em suma, em matéria de direito sancionador, deve-se observar a estrita legalidade. Não se vislumbra, com essa premissa em mente, a infração do art. 50 do Decreto 6.514/08. Poderia supor outras infrações do Decreto.
Ocorre que o juiz não pode readequar a conduta e enquadrá-la em outra infração. Não ocorre, aqui, hipótese semelhante ao que dispõe o art. 383 do CPP. Vejamos.
Impossibilidade de reenquadrar a conduta. Necessidade de anular a multa
A administração agiu dentro de seu poder sancionador e aplicou multa ao Exequente. Diante disso, enquadrou uma conduta em uma determinada infração administrativa e dosou a sanção.
Como visto acima, não subsiste a infração acusada ao Exequente, por motivo de ilegalidade. Isso é dado ao Judiciário fazer: controlar o ato administrativo de sanção. Assim não fosse, estar-se-ia deixando de aplicar a inafastabilidade de jurisdição (art. 5º, inc. XXXV, CF).
Ora, diante da legalidade estrita que pauta o direito administrativo sancionador, a Administração tem pouca margem de atuação, devendo respeito à legalidade. E o controle de legalidade de ato administrativo nada tem a ver com se imiscuir no mérito do ato.
Com isso em mente – controle de legalidade e mérito do ato –, não cabe, obviamente, ao Judiciário, readequar a conduta em outro tipo de infração. Dessa maneira, não resta alternativa a não ser anular a infração acusada e a sanção aplicada. Somente a Administração Pública pode aplicar sanções administrativas.
Dispositivo
Ante o exposto, ACOLHO os embargos à execução para declarar a nulidade do auto de infração ambiental, bem como os atos dele provenientes, conforme a fundamentação já apresentada supra, sem prejuízo de nova autuação em tipificação correta, observado o prazo prescricional.
Resolvo o mérito, nos termos do art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Determino o cancelamento da penhora do veículo do Embargante. Expeça- se carta precatória competente para tanto. Sem custas (art. 4º, inc. I, da Lei nº 9.289/96).
Condeno o IBAMA em honorários, desde já fixados em 10% do valor da causa.
Sentença não sujeita à remessa necessária, na forma do art. 496, § 3º, inc. I, do CPC. Intimem-se.
7 Comentários. Deixe novo
Boa tarde! Material excelente! Se entrar com uma ação de nulidade de Auto de Infração, a ACP será suspensa? Ou essa tese pode ser ventilada direto na ACP?
A ação civil pública dificilmente será suspensa com base nessa tese, até porque as responsabilidades cível e administrativa ambiental são independentes. Mas cada caso é um caso. Aqui no escritório já conseguimos demonstrar a conexão de ação anulatória de auto de infração ambiental e a ação civil pública que visava a reparação dos danos ambientais decorrentes do mesmo fato, sendo essa suspensa em razão daquela.
Boa tarde, sensacional. Realmente é um domínio completo da matéria. Sou advogado aqui no Pará. Minhas demandas jurídicas são mais na área ambiental e autuação por desmatamento na Amazônia. Como faço para ter acesso a esta sentença (julgado) citada neste artigo? Pois não foi mencionado nenhum dado da referida sentença.
Boa tarde Paulo. A sentença foi proferida pela 2ª Vara Federal Cível e Criminal da SJ do Acre nos autos de uma execução fiscal em dezembro de 2022. Sobre julgado, dá uma olhada nessa jurisprudência:
https://advambiental.com.br/decisao/auto-de-infracao-ambiental-desmatamento-conduta-de-terceiro-nulidade/
Muito bom poder ventilar esse tema da norma penal em branco no Direito Ambiental. Parabéns pela abordagem sucinta e objetiva. Obrigado pelo conteúdo.
Finalmente a tese que defendo há anos foi reconhecida por um juiz. Espero que as instâncias recursais corroborem a sentença. Qual seria o juízo que exarou a sentença?
A sentença foi proferida em dezembro de 2022 pela 2ª Vara Federal Cível e Criminal da SJ do Acre em uma execução fiscal.