Mesmo diante de existência concreta de infração ambiental, a lavratura de dois autos de infração ambiental ou para mais de uma pessoa física ou jurídica pelo mesmo fato, viola o princípio do non bis in idem. Isso porque, a imputação da penalidade de multa acaba por aplicar dupla penalidade pelo mesmo fato gerador.
Inegável que o correto seria identificar a pessoa física ou jurídica direta e efetivamente responsável pelo cumprimento da obrigação da qual decorreu a suposta conduta irregular, a qual, e somente essa, é que poderia suportar eventuais penalidades.
É dizer, cada parte somente poderia ser responsabilizada na medida em que sua conduta tivesse diretamente atrelada à ilicitude apontada no auto de infração ambiental, havendo a devida proporção entre a conduta e a penalidade aplicada.
Admitindo-se que a conduta supostamente lesiva realmente estivesse vinculada a obrigações assumidas conjuntamente por uma e por outra, fosse isso possível, certo é que a infração haveria de ser considerada una, com a imposição de uma única penalidade que, nessas circunstâncias, haveria de ser dividida e suportada entre ambas as partes, mas nunca como duas penalidades distintas.
A autuação ambiental, quando lavrada de forma indiscriminada, caracteriza-se como verdadeira afronta ao princípio do non bis in idem, o qual impede a imposição de dupla penalidade pelo mesmo fato.
Índice
1. Poder de polícia e a aplicação de sanções administrativas
Não é demais relembrar que o Direito Administrativo, quando no exercício do poder de polícia, em especial na aplicação de sanções administrativas, se aproxima do Direito Penal, uma vez que impõe ao administrado a constrição de algum bem da vida, como in casu, seu patrimônio.
Enveredando nesse entendimento, não seria razoável, que princípios formadores da base do regime jurídico punitivo, como o da legalidade, da tipicidade, da irretroatividade, da culpabilidade, do non bis in idem e do devido processo legal, aplicados ao longo da trajetória evolutiva do Direito Penal, findassem resguardados apenas aos processos de tal ramo do Direito.
Desse modo, toda e qualquer atividade punitiva do Estado, seja através de sanções penais impostas pelo Poder Judiciário, seja através de sanções administrativas impostas pela Administração Pública, devem compartilhar dos mesmos princípios.
Ainda que no exercício de funções estatais distintas, com peculiaridades processuais a um e a outro, não deixa de ser o mesmo Estado que aplica a sanção administrativa e a sanção penal, não se podendo alegar que, em razão da diversidade do regime jurídico, sejam ignoradas as garantias dos particulares apenas pelo fato de ser a Administração Pública quem impõe a sanção.
Ratificando esse entendimento, em lição atemporal, esclarece Alberto Xavier[1] que “o mesmo Estado não pode aceitar respeitáveis princípios de civilização moderna, comportar-se como Estado civilizado num determinado capítulo e rasgar os valores da civilização noutro capítulo”.
Assim, o princípio do non bis in idem, decorrente do próprio princípio fundamental do Estado de Direito, protege o particular que enfrenta o poder punitivo estatal, tanto na seara jurisdicional, como no âmbito da Administração Pública, devendo ser aplicado em ambos os casos, respeitadas as peculiaridades inerentes a cada um deles.
2. Aplicação do princípio do non bis in idem
Observa-se, portanto, que a aplicação do princípio do non bis in idem tem sua presença garantida no sistema jurídico de um Estado Democrático de Direito, além de estar intimamente atrelado aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, é totalmente procedente no processo administrativo analisado.
Esse princípio estabelece, em primeiro plano, que ninguém poderá ser punido mais de uma vez por um mesmo fato, pois que, ao se admitir aplicação simultânea de infrações administrativas sobre um só e mesmo fato, violar-se-ia o princípio proibitivo de dupla valoração do mesmo comportamento, do contrário, haveria uma imputação multiplicada e uma imposição de um castigo repetido do mesmo fato, o que é vedado.
A aplicação desse princípio, porém, não se esgota nesse entendimento. Com uma compreensão mais abrangente, foi-se gradativamente aumentando a sua importância e aplicando-o também quando há imposição de sanção a pessoas distintas, tendo a mesma infração como fato gerador, tal como in casu.
Salta aos olhos, dessa forma, a nulidade dos autos de infração ambiental quando as sanções múltiplas são baseadas em fato único, visto que é vedado ao Estado aplicar sanção em razão do mesmo fato gerador, ainda que a duas pessoas físicas ou jurídicas distintas.
3. O que diz a doutrina sobre o princípio do non bis in idem
Sobre o princípio do non bis in idem, Édis Milaré[2] ensina:
Assim é, em virtude do repúdio de nosso sistema jurídico às sanções múltiplas, baseadas em fato único, por ferirem de morte o consagrado princípio do ‘non bis in idem’, por força do qual o Estado não deve punir em duplicidade a mesma pessoa, em razão da mesma infração.
Nesta linha, o dispositivo legal em comento afasta a ação federal, no caso de multas já terem sido impostas pelos Estados, Distrito Federal ou Municípios, o que está, aliás, em consonância com a norma que reserva à União ação meramente supletiva no tocante ao poder de polícia em matéria ambiental.
Apesar da referência específica à multa, parece que este artigo se aplica, por analogia ‘legis’, a qualquer outra penalidade prevista no art. 72 da Lei 9.605/1998, que tenha sido imposta pelos Estados, Distrito Federal ou Municípios. Isto porque o art. 14 da Lei 6.938/1981, na parte em que foi revogado pela da Lei 9.605/1998, atribuía à União a aplicação da multa, no caso de omissão da autoridade estadual ou municipal.
A perda ou restrição de incentivos fiscais ou de financiamentos competia ao CONAMA e a suspensão de atividades cabia ao Presidente da República, como dispunha o art. 16 da mesma lei, até sua revogação pela Lei 7.804/1989. Nesse contexto, tinha sentido referir-se apenas à multa para afastar a ação da união, pois não havia outras penalidades além das já mencionadas.
Porém, a Lei 9.605/98 define muitas outras penalidades e não faz qualquer reserva de poder para a União. Como qualquer ente federado pode impor as penalidades, entendemos que o dispositivo aplica-se a qualquer uma delas e não apenas à multa, em obediência ao referido princípio do ‘non bis in idem’.
4. Jurisprudência sobre princípio do non bis in idem
Sobre o tema, a jurisprudência já decidiu:
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. FEPAM. DEP. NULIDADE DE AUTO DE INFRAÇÃO EMITIDO. HIPÓTESE DE BIS IN IDEM CONFIGURADA.
1. Hipótese em que se mantém a sentença que entendeu que ocorreu, no caso, dupla sanção pelo mesmo fato, tornando nula a multa fixada no segundo auto de infração, em razão de ter ocorrido o chamado “bis in idem”.
2. Não tendo o apelante trazido elementos passíveis de elidir as conclusões sentenciais, nada há a reparar na bem prolatada sentença, razão pela qual se nega provimento à apelação.
(TRF-4 – APL: 50038273620114047101 RS 5003827-36.2011.404.7101, Relator: VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, Data de Julgamento: 14/12/2016, QUARTA TURMA)
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. IBAMA. FLORAM. NULIDADE DE AUTOS DE INFRAÇÃO EMITIDOS. HIPÓTESE DE BIS IN IDEM CONFIGURADA.
1. Hipótese em que se mantém a sentença que entendeu que, apesar de o IBAMA ter competência para fiscalizar e impor sanções, ocorreu, no caso, dupla sanção pelo mesmo fato, tornando nula a multa fixada no segundo auto de infração, em razão de ter ocorrido o chamado “bis in idem”.
2. Não tendo o apelante trazido elementos passíveis de elidir as conclusões sentenciais, nada há a reparar na bem prolatada sentença, razão pela qual se nega provimento à apelação. (TRF4, APELAÇÃO CÍVEL 5019514-76.2013.404.7200, 3ª TURMA, Des. Federal FERNANDO QUADROS DA SILVA, POR UNANIMIDADE, JUNTADO AOS AUTOS EM 22/10/2015)
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. ICMBIO. FATMA. NULIDADE DE AUTO DE INFRAÇÃO EMITIDO. HIPÓTESE DE BIS IN IDEM CONFIGURADA.
1. Hipótese em que se mantém a sentença que entendeu pela ocorrência, no caso, de dupla sanção pelo mesmo fato, tornando nula a multa fixada pelo ICMBio, em razão de ter ocorrido o chamado “bis in idem”.
2. Não tendo o apelante trazido elementos passíveis de elidir as conclusões sentenciais, nada há a reparar na bem prolatada sentença, razão pela qual se nega provimento à apelação.
(TRF-4 – AC: 50368973320144047200 SC 5036897-33.2014.4.04.7200, Relator: SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, Data de Julgamento: 04/04/2018, QUARTA TURMA)
Vê-se que, o que importa para a verificação da ocorrência, ou não, do alegado “bis in idem”, é a descrição da infração contida nos autos em causa.
5. Conclusão
Portanto, as sanções administrativas devem ser interpretadas de acordo com a vedação ao non bis in idem, razão pela qual ninguém deve ser penalizado mais de uma vez por um mesmo fato.
Convém frisar que a aplicação cumulativa de multas só é autorizada pela Lei 9.605/98 nas hipóteses em que o agente, praticando mais de uma conduta comissiva ou omissiva, causalmente eficaz para a perpetração de agressão ambiental, der causa a qualquer dos eventos proibidos pela legislação.
Diante disso, autos de infração ambiental lavrados pelo mesmo fato, são eivados de vício insanável, pois, em evidente afronta ao princípio do non bis in idem, hipótese que acarreta na sua nulidade.
4 Comentários. Deixe novo
Boa noite Dr.
Sou um assíduo estudioso dos seus trabalhos, razão pela qual, de muita valia . Recomendo a todos os estudiosos do Direito Ambiental.
Excelente essa matéria.
Carlos Magno.
MUITO BOM ESSE ARTIGO SOBRE O PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM
Excelente artigo, paranbés!
Muito bom o artigo sobre bis in idem