O Superior Tribunal de Justiça – STJ decidiu em sede de julgamento de recursos repetitivos que, na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas “a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.
A controvérsia dizia respeito a qual norma deveria ser aplicável para fins de definir a extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d’água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada: se corresponde à área de preservação permanente prevista no art. 4°, I, da Lei n. 12.651/2012 (equivalente ao art. 2°, alínea “a”, da revogada Lei n. 4.771/1965), cuja largura varia de 30 (trinta) a 500 (quinhentos) metros, ou ao recuo de 15 (quinze) metros determinado no art. 4°, caput, III, da Lei n. 6.766/1979.
Para o STJ, a definição da norma a incidir sobre o caso deve garantir a melhor e mais eficaz proteção ao meio ambiente natural e ao meio ambiente artificial, em cumprimento ao disposto no art. 225 da CF/1988, sempre com os olhos também voltados ao princípio do desenvolvimento sustentável (art. 170, VI,) e às funções social e ecológica da propriedade.
O art. 4º, caput, inciso I, da Lei n. 12.651/2012 mantém-se hígido no sistema normativo federal, após os julgamentos da ADC 42 e das ADIs 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937.
A disciplina da extensão das faixas marginais a cursos d’água no meio urbano foi apreciada inicialmente no julgamento do REsp 1.518.490/SC, Relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe de 15/10/2019, precedente esse que solucionou, especificamente, a antinomia entre a norma do antigo Código Florestal (art. 2º da Lei n. 4.771/1965) e a norma da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1976), com a afirmação de que o normativo do antigo Código Florestal é o que deve disciplinar a largura mínima das faixas marginais ao longo dos cursos d’água no meio urbano.
Segundo o STJ, a norma inserta no novo Código Florestal (art. 4º, caput, inciso I), ao prever medidas mínimas superiores para as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, sendo especial e específica para o caso em face do previsto no art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1976, é a que deve reger a proteção das APPs ciliares ou ripárias em áreas urbanas consolidadas, espaços territoriais especialmente protegidos (art. 225, III, da CF/1988), que não se condicionam a fronteiras entre o meio rural e o urbano.
Para a Corte Superior, a opção pela não aplicação do art. 4º, caput, e I, da Lei n. 12.651/2012, quando o comando do seu caput é expresso em determinar a sua incidência também ao meio urbano, apresenta-se inequivocamente inapropriado, pois estar-se-ia a afrontar o enunciado da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal.
Atualização 29.12.2022: Congresso transfere aos Municípios o poder de definir as faixas de APPs
Em resposta ao julgamento do Superior Tribunal de Justiça – STJ, o Congresso Nacional se mobilizou e aprovo o Projeto de Lei 2.510/2019, sancionado pelo Presidente da República no dia 29 de dezembro de 2021 (Lei 14.285/2021), que resultou na alteração do § 10, do art. 4º do Código Florestal, dispondo que nas áreas urbanas, cabe aos Municípios definir as áreas de preservação permanente – APPs:
§ 10. Em áreas urbanas consolidadas, ouvidos os conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente, lei municipal ou distrital poderá definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo, com regras que estabeleçam: (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
I – a não ocupação de áreas com risco de desastres; (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
II – a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
III – a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de preservação permanente urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental fixados nesta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
A alteração legislativa buscou uma solução para um dos pontos mais controversos do Código Florestal: a regularização de edificações em APPs de faixas marginais de cursos hídricos em áreas urbanas.
Todos os municípios brasileiros têm edificações nessa situação, pois em todos os lugares do mundo as ocupações urbanas – em sua grande maioria oriundas de vilas e aldeias que remontam há séculos – se estabeleceram inicialmente às margens de rios e córregos.
Com o advento da Lei 4.771/65 (Código Florestal que vigeu até 2012), foram instituídas as APPs em margens de rios e, desde então, restava sem solução pacífica o destino das edificações nessas faixas em áreas urbanas.
Com a aprovação do Código Florestal, ampliando as distâncias nas faixas marginais dos leitos de rios e córregos, iniciou-se uma grande batalha judicial para entender se tais determinações seriam aplicadas em áreas urbanas.
Ocorre que a maioria dos municípios brasileiros nasceram e cresceram às margens de importantes rios, o que dificulta muito a operacionalização das novas margens sugeridas e requeridas pelo referido Código Florestal.
O novo regramento previsto no § 10 do artigo 4º trouxe uma solução que fortalece o pacto federativo e o papel dos Municípios e do Distrito Federal no trato dos assuntos de interesse local, sobretudo quanto à organização do espaço urbano onde se encontram essas faixas marginais de cursos hídricos.
Essa alteração no Código Florestal atualizou o conceito de área urbana consolidada e conferiu segurança jurídica aos municípios que agora, têm a faculdade (e não a obrigação) de, por meio de lei municipal ou distrital – após oitiva dos conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente –, definir as faixas marginais de cursos d´água naturais na área urbana, com metragens distintas das previstas no inciso I do art. 4º do Código.
Embora essa alteração tenha sido alvo de judicialização, cuja palavra final sobre sua constitucionalidade caberá ao Supremo Tribunal Federal – STF, entendemos acertada a alteração que conferiu aos municípios amparo legal para que adequem os limites de APP constantes da Lei Florestal à realidade de suas áreas urbanas.
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Confira a íntegra do Acórdão e do Voto que definiu a aplicação do Código Florestal em áreas urbanas.
EMENTA
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DA INCIDÊNCIA DO ART. 4º, I, DA LEI N. 12.651/2012 (NOVO CÓDIGO FLORESTAL) OU DO ART. 4º, CAPUT, III, DA LEI N. 6.766/1979 (LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO). DELIMITAÇÃO DA EXTENSÃO DA FAIXA NÃO EDIFICÁVEL A PARTIR DAS MARGENS DE CURSOS D’ÁGUA NATURAIS EM TRECHOS CARACTERIZADOS COMO ÁREA URBANA CONSOLIDADA.
- Nos termos em que decidido pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016, aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista (Enunciado Administrativo n. 3).
- Discussão dos autos: Trata-se de mandado de segurança impetrado contra ato de Secretário Municipal questionando o indeferimento de pedido de reforma de imóvel (derrubada de casa para construção de outra) que dista menos de 30 (trinta) metros do Rio Itajaí-Açu, encontrando-se em Área de Preservação Permanente urbana. O acórdão recorrido negou provimento ao reexame necessário e manteve a concessão da ordem a fim de que seja observado no pedido administrativo a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n. 6.766/1979), que prevê o recuo de 15 (quinze) metros da margem do curso d´água.
- Delimitação da controvérsia: Extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d’água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada: se corresponde à área de preservação permanente prevista no art. 4°, I, da Lei n. 12.651/2012 (equivalente ao art. 2°, alínea “a”, da revogada Lei n. 4.771/1965), cuja largura varia de 30 (trinta) a 500 (quinhentos) metros, ou ao recuo de 15 (quinze) metros determinado no art. 4°, caput, III, da Lei n. 766/1979.
- A definição da norma a incidir sobre o caso deve garantir a melhor e mais eficaz proteção ao meio ambiente natural e ao meio ambiente artificial, em cumprimento ao disposto no art. 225 da CF/1988, sempre com os olhos também voltados ao princípio do desenvolvimento sustentável (art. 170, VI,) e às funções social e ecológica da propriedade.
- O art. 4º, caput, inciso I, da Lei n. 12.651/2012 mantém-se hígido no sistema normativo federal, após os julgamentos da ADC n. 42 e das ADIs ns. 4.901, 4.902, 4.903 e 937.
- A disciplina da extensão das faixas marginais a cursos d’água no meio urbano foi apreciada inicialmente nesta Corte Superior no julgamento do REsp 1.518.490/SC, Relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe de 15/10/2019, precedente esse que solucionou, especificamente, a antinomia entre a norma do antigo Código Florestal (art. 2º da Lei n. 4.771/1965) e a norma da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1976), com a afirmação de que o normativo do antigo Código Florestal é o que deve disciplinar a largura mínima das faixas marginais ao longo dos cursos d’água no meio urbano. Nesse sentido: REsp 1.505.083/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 10/12/2018; AgInt no REsp 1.484.153/SC, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 19/12/2018; REsp 1.546.415/SC, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 28/2/2019; e AgInt no REsp 1.542.756/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 2/4/2019.
- Exsurge inarredável que a norma inserta no novo Código Florestal (art. 4º, caput, inciso I), ao prever medidas mínimas superiores para as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, sendo especial e específica para o caso em face do previsto no art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1976, é a que deve reger a proteção das APPs ciliares ou ripárias em áreas urbanas consolidadas, espaços territoriais especialmente protegidos (art. 225, III, da CF/1988), que não se condicionam a fronteiras entre o meio rural e o
- A superveniência da Lei n. 13.913, de 25 de novembro de 2019, que suprimiu a expressão “[…] salvo maiores exigências da legislação específica.” do inciso III do art. 4º da Lei n. 6.766/1976, não afasta a aplicação do art. 4º, caput, e I, da Lei n. 12.651/2012 às áreas urbanas de ocupação consolidada, pois, pelo critério da especialidade, esse normativo do novo Código Florestal é o que garante a mais ampla proteção ao meio ambiente, em áreas urbana e rural, e à
- Tese fixada – Tema 1010/STJ: Na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à
- Recurso especial conhecido e
- Acórdão sujeito ao regime previsto no art. 1.036 e seguintes do CPC/2015.
VOTO
[…] A controvérsia diz respeito a qual norma deve ser aplicável para fins de definir a extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d’água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada: se corresponde à área de preservação permanente prevista no art. 4°, I, da Lei n. 12.651/2012 (equivalente ao art. 2°, alínea “a”, da revogada Lei n. 4.771/1965), cuja largura varia de 30 (trinta) a 500 (quinhentos) metros, ou ao recuo de 15 (quinze) metros determinado no art. 4°, caput, III, da Lei n. 6.766/1979.
O tratamento da extensão da faixa não edificável nas margens de cursos d’água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada está umbilicalmente associado à definição e às funções das Áreas de Preservação Permanente (APPs), que se incluem, constitucionalmente, entre os espaços territoriais “[…] a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção (art. 225, § 1º, III, da CF/1988)”, e contribuem para assegurar a efetividade do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
1. O histórico legislativo, a definição legal de Área de Preservação Permanente – APP, funções da APP ciliar ou ripária e o não impacto na demanda do julgamento da ADC n. 42 e das ADIs ns. 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937.
A proteção contemporânea das florestas no País se inicia com a edição do Decreto n. 4.421, de 28 de dezembro de 1921, que criou o Serviço Florestal do Brasil, e tinha por objetivo a conservação, o beneficiamento, a reconstituição, a formação e aproveitamento das florestas.
O Decreto n. 23.793/1934 (Código Florestal de 1934) dispôs a respeito da florestas protetoras que, por sua localização, serviam para: conservar o regime de águas; evitar a erosão das terras pelos agentes naturais; fixar as dunas; auxiliar a defesa das fronteiras; assegurar condições de salubridade pública; proteger sítios que, por sua beleza, mereciam ser conservados e asilar espécimes raros de fauna indígena (art. 4º).
A previsão de conservação do regime de águas associada à vegetação denota a inicial preocupação do legislador de 1934 com a proteção desses recursos naturais finitos e, porque não dizer, introduz disciplina, ainda que embrionária, da sustentabilidade dos recursos para as gerações viventes à época e futuras. Florestas protetoras, segundo a doutrina, foram o embrião do que atualmente compõe o conceito de APPs; todavia, à época, não se tratou a respeito do tamanho da área, ainda que mínima, a ser protegida.
A partir do Código Florestal de 1965 (Lei n. 4.771/1965), tem-se, então, a disciplina da preservação permanente das florestas e demais formas de vegetação naturais, conforme localização, com o estabelecimento de faixas mínimas de vegetação às margens dos cursos d’água. Confiram-se, nas redações originais, os arts. 2º e 3º:
Art. 2º Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:
a – ao longo dos rios ou de outro qualquer curso d’água, em faixa marginal cuja largura mínima será:
1 – de 5 (cinco) metros para os rios de menos de 10 (dez ) metros de largura:
2 – igual à metade da largura dos cursos que meçam de 10 (dez) a 200 (duzentos) metros de distância entre as margens;
3 – de 100 (cem) metros para todos os cursos cuja largura seja superior a 200 (duzentos) metros.
b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais;
c) nas nascentes, mesmo nos chamados “olhos d’água”, seja qual for a sua situação topográfica;
d) no topo de morros, montes, montanhas e serras;
e) nas encostas ou partes destas, com declividade superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive;
f) nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues;
g) nas bordas dos taboleiros ou chapadas;
h) em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, nos campos naturais ou artificiais, as florestas nativas e as vegetações
Art. 3º Consideram-se, ainda, de preservação permanentes, quando assim declaradas por ato do Poder Público, as florestas e demais formas de vegetação natural destinadas:
a) a atenuar a erosão das terras;a fixar as dunas;
b) a formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias;
c) a auxiliar a defesa do território nacional a critério das autoridades militares;
d) a proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico ou histórico;
e) a asilar exemplares da fauna ou flora ameaçados de extinção;
f) a manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas;
g) a assegurar condições de bem-estar público.
§ 1° A supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente só será admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social.
§ 2º As florestas que integram o Patrimônio Indígena ficam sujeitas ao regime de preservação permanente (letra g) pelo só efeito desta Lei.
Um novo desenho das faixas marginais ao longo dos rios ou cursos d’água foi feito com a edição da Lei n. 7.511/1986, que alterou o antigo Código Florestal. O art. 2º passou então a ter a seguinte redação:
Art. 2º Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e
demais formas de vegetação natural situadas:
a) ao longo dos rios ou de outro qualquer curso d’água, em faixa marginal cuja largura mínima será:
b) de 30 (trinta) metros para os rios de menos de 10 (dez) metros de largura;
c) de 50 (cinqüenta) metros para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinqüenta) metros de largura;
d) de 100 (cem) metros para os cursos d’água que meçam entre 50 (cinqüenta) e 100 (cem) metros de largura;
e) de 150 (cento e cinqüenta) metros para os cursos d’água que possuam entre 100 (cem) e 200 (duzentos) metros de largura; igual à distância entre as margens para os cursos d’água com largura superior a 200 (duzentos) metros;
O art. 2º do antigo Código Florestal foi novamente alterado pela Lei n. 7.803/1989, sendo significativo observar a previsão expressa de aplicação desse diploma legal às áreas urbanas, verbis:
“No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo”.
A Medida Provisória n. 2.166-67/2001 acrescentou ao art. 1º do antigo Código Florestal, a definição legal da “área” de preservação permanente (APP). Confira-se:
Art. 1°. As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem.
§ 1º. As ações ou omissões contrárias às disposições deste Código na utilização e exploração das florestas e demais formas de vegetação são consideradas uso nocivo da propriedade, aplicando-se, para o caso, o procedimento sumário previsto no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil. (Renumerado do parágrafo único pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
§ 2º. Para os efeitos deste Código, entende-se por: […]
II – área de preservação permanente: área protegida nos termos dos arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; (nossos os grifos) (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001)
Paralelamente à evolução das normas contidas no Código Florestal de 1964, sobreveio, em 1979, a Lei n. 6.766/1979 (Lei de Parcelamento do Solo Urbano – LPSU), cuja redação original dispôs sobre o tratamento das áreas urbanas non aedificandi no inciso III do caput do art. 4º, tendo sido suprimida a expressão “dutos” em 2004, pela Lei n. 10.932/2004. Confira-se:
Art. 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: […]
III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica (grifo nosso);
Nessa pequena digressão a respeito da Lei n. 6.766/1979 (LPSU), outro dispositivo nela contido interessa, ao menos para fins de contextualização da controvérsia. A atenção aqui, ainda que lateral, é a respeito do art. 3º, parágrafo único. Confira-se:
Art. 3º Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal.
Parágrafo único – Não será permitido o parcelamento do solo: […]
V – em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção (grifo nosso).
Esse normativo deixa nítida a preocupação do legislador de 1979 com a vedação ao parcelamento do solo em áreas que deveriam ser protegidas da atividade antrópica e em áreas insalubres ao desenvolvimento humano.
Entretanto, o conceito legal de “áreas de preservação ecológica”, em que seriam proibidos os parcelamentos urbanos, não foi abordado pela Lei n. 6.766/1979.
A lei não o definiu, não impondo, especificamente, qualquer proteção a elas, o que demandou o tratamento da questão pelas legislações locais, por meio de planos diretores e leis específicas (estaduais e municipais), situação perfeitamente natural no âmbito do poder de legislar dos entes federativos, conforme disciplina o sistema federativo brasileiro (art. 24, VI, e 30, I e II, da CF), mas que reverbera nesta controvérsia, que sempre se fez atual.
Nesse contexto, indispensável consignar a lembrança ao dever de cooperação constitucionalmente previsto entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com vistas à consecução do equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar das pessoas em âmbito nacional (art. 23, parágrafo único, da CF), o que impõe rota única a ser seguida quando se está a tratar da necessidade premente de se concretizar soluções para o bem-estar social e o bem-estar ambiental nos meios urbano e rural, com essencial atenção a um valor maior, a busca pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito fundamental de todos (arts. 5º, § 2º, e 225, da CF), metaindividual por excelência, e com inequívoco viés solidário entre as gerações, cuja persecução não deve admitir interrupção entre a urbis e o campo.
A propósito, colhe-se, por oportuna, a lição do Ministro Celso de Mello:
“A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a “defesa do meio ambiente” (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral (ADI 3.540-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 3/2/2006)”.
Em complemento ao ponto, registra-se ser pacífica a orientação desta Corte Superior, segundo a qual a proteção ao meio ambiente abrange, em igual medida, as regiões rurais e urbanas, sem distinção, em atenção ao mandamento constitucional do direito à sadia qualidade de vida (art. 225, caput).
Confiram-se: AgRg no REsp 664.886/SC, Rel. p/ Acórdão Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 9/3/2012; AgInt no AREsp 839.492/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 06/03/2017; REsp n. REsp 1.667.087/RS, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 13/8/2018; AgInt no REsp 1.484.153/SC, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 19/12/2018.
Após essa breve disciplina da legislação federal que tratou em 1979 do parcelamento do solo urbano, retoma-se a evolução da legislação de proteção da vegetação nativa, atinente ao caso ora sub judice, com a entrada em vigor em 2012 do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012).
Aqui, a observação a ser inicialmente feita é a definição legal da APP no novo Código Florestal e de sua função, conforme previsto no art. 3º, II, da Lei n. 12.651/2012, in verbis:
Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por: […]
II – Área de Preservação Permanente – APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (grifo nosso);
Ao conceito legal de APP previsto no art. 3º, II, soma-se a possibilidade de serem constituídas novas áreas de preservação permanente, conforme sejam observadas as finalidades previstas no art. 6º. Confira-se:
Art. 6º Consideram-se, ainda, de preservação permanente, quando declaradas de interesse social por ato do Chefe do Poder Executivo, as áreas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a uma ou mais das seguintes finalidades:
I – conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra e de rocha;
II – proteger as restingas ou veredas;
III – proteger várzeas;
IV – abrigar exemplares da fauna ou da flora ameaçados de extinção;
V – proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico, cultural ou histórico;
VI – formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias;
VII – assegurar condições de bem-estar público;
VIII – auxiliar a defesa do território nacional, a critério das autoridades
XI – proteger áreas úmidas, especialmente as de importância internacional. (Incluído pela Lei n. 12.727, de 2012).
Tratando-se, no caso dos autos, de áreas ciliares ou ripárias, é oportuna a reflexão feita pelo Ministro Herman Benjamin, no julgamento do RESp n. 1.245.149/MS, a respeito da multifuncionalidade dessas APPs:
Aferrada às margens de rios, córregos, riachos, nascentes, charcos, lagos, lagoas e estuários, intenta a APP ciliar assegurar, a um só tempo, a integridade físico-química da água, a estabilização do leito hídrico e do solo da bacia, a mitigação dos efeitos nocivos das enchentes, a barragem e filtragem de detritos, sedimentos e poluentes, a absorção de nutrientes pelo sistema radicular, o esplendor da paisagem e a própria sobrevivência da flora ribeirinha e fauna.
Essas funções multifacetárias e insubstituíveis elevam-na ao status de peça fundamental na formação de corredores ecológicos, elos de conexão da biodiversidade, genuínas veias bióticas do meio ambiente (REsp 1.245.149/MS, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 13/6/2013).
Por fim, chega-se ao outro normativo que compõe a controvérsia direta a ser dirimida, o qual previu, expressamente, APPs em zonas urbanas.
Art. 4º, caput, I, da Lei n. 12.651/2012 (com da redação dada pela Lei n. 12.727, de
2012), assim dispõe:
Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:
I – as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;
b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura;
c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura;
d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;
e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros (grifo nosso) (grifo nosso);
Esse é, portanto, o painel da legislação federal que, no momento, interessa para o deslinde da hipótese objetiva.
Ao contexto das normas federais, é necessário dizer ainda que o novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012) teve vários dos seus dispositivos contestados no Supremo Tribunal Federal por meio da ADC n. 42 e das ADIs ns. 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937, julgadas na sessão do Tribunal Pleno de 28/2/2018, com publicação em 13/8/2019.
Da certidão dos aludidos julgamentos extrai-se que o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a constitucionalidade do art. 3º, XIX, por maioria, recusou a tese de declaração de inconstitucionalidade, por arrastamento, do art. 4º, I, sendo vencidos, nesse ponto, a Ministra Cármen Lúcia (Presidente) e o Ministro Ricardo Lewandowski, que votaram pelo restabelecimento dos cálculos das faixas marginais dos cursos d’água, segundo a regência normativa anterior, ou seja, desde o
[…] nível mais alto” (art. 2º, “a”, da Lei n. 4.771/1965), ao invés da referência trazida pelo inciso I do art. 4º, que agora declara “[…] desde a borda da calha do leito regular.
Assim, conclui-se, inicialmente, que o art. 4º, inciso I, da Lei n. 12.651/2012 mantém-se hígido no sistema normativo federal, após os julgamentos da ADC n. 42 e das ADIs ns. 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937.
2. Jurisprudência do STJ a respeito do limite mínimo das APPs urbanas antes da entrada em vigor do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012). Prevalência do antigo Código Florestal (Lei n. 4.771/1965) sobre a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n. 6.766/1979). Precedente: REsp n. 1.518.490/SC.
Com efeito, assinale-se que esta Corte Superior pacificou compreensão segundo o qual o antigo Código Florestal também deve ser aplicado ao meio urbano. Confiram-se: EREsp n. 218.781/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe de 23/2/2012; AgRg no REsp n. 664.886/SC, Rel. Min. Humberto Martins, Rel. p/ acórdão Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 9/3/2012; e AgInt no AgInt no AgInt no AREsp 747.515/SC, Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 15/10/2018.
A respeito da controvérsia específica versada nos autos, é imprescindível observar inicialmente o raciocínio lógico-jurídico externado pelo Ministro Og Fernandes, Relator do REsp 1.518.490/SC, julgado pela Segunda Turma em 9/10/2018, DJe 15/10/2018, precedente esse que solucionou a antinomia entre a norma do antigo Código Florestal e a norma da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, quanto à disciplina das faixas marginais a cursos d’água no meio urbano. Confira-se:
A controvérsia repousa em qual norma incide no caso concreto – hipótese de construção em zona urbana na margem de rio –, tendo em vista que o Código Florestal vigente à época dos fatos (Lei n. 4.771/1965) estabelecia como área de preservação permanente toda vegetação natural localizada a 50 metros dos rios ou de qualquer curso de água, com largura mínima de 10 metros. Ocorre que a Lei n. 6.766/1979 estabelecia proibição de apenas 15 metros do curso de água.
Dois aspectos devem ser ponderados para analisar a adequada incidência normativa: i) estabelecer qual o valor jurídico-positivo apto a elucidar a antinomia; e ii) reconhecer se existe possibilidade de aplicar norma ambiental menos protetiva em detrimento de norma ambiental mais protetiva.
Ab initio, cuida-se de hipótese de antinomia, resta verificar na espécie sua extensão: real ou aparente. A antinomia real torna impossível a convivência normativa, gerando o afastamento de uma das normas por meio da interpretação ab-rogante. Já a antinomia aparente permite a conciliação entre os dispositivos supostamente diversos por meio da técnica da interpretação corretiva. Dessa forma, o interprete elimina a aparente contradição mediante análise sistêmica e teleológica dos diversos dispositivos envolvidos.
No tocante à convivência harmônica de diplomas normativos que tutelam o mesmo bem jurídico, José Garcia Medina, em colenda obra intitulada “Curso de Direito Processual Civil Moderno”, aponta que o diálogo das fontes deve objetivar a concretização dos direitos fundamentais. A propósito:
Através desse diálogo emerge a solução do conflito, pela análise do magistrado que pondera as fontes heterogêneas que não se excluem. Erik Jayma, escrevendo sobre “lei dialogue des sources”, discorre que disposições sobre direitos humanos, convenções internacionais, constituições etc. são fontes que não se excluem, necessariamente, mas “conversam” entre si. Conclui o autor que os juízes devem “coordenar” essas fontes e “ouvir o que elas dizem”.
No caso, como afirma Claudia Lima Marques, “muda-se assim o paradigma: da retirada simples (revogação) de uma das normas em conflito do sistema jurídico ou do ‘monólogo’ de uma só norma (a ‘comunicar’ a solução justa), à convivência desta normas, ao ‘diálogo’ das normas para alcançar a sua ratio, a finalidade visada ou ‘narrada’ em ambas” Em conclusão, “o desafio é este, aplicar as fontes em diálogo de forma justa”. (MEDINA, p. 97, 2018)
Nesse aspecto, cumpre observar a previsão legal em choque, respectivamente o Código Florestal (1965) e a Lei de Parcelamento de Solo Urbano (6.766/1979):
Art. 2° Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será: (Redação dada pela Lei nº 7.803 de 18.7.1989) 2 – de 50 (cinquenta) metros para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, obervar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo. (Incluído pela Lei nº 7.803 de 18.7.1989)
Art. 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não-edificável de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica; (Redação dada pela Lei nº 10.932, de 2004)
No caso em tela, verifica-se apenas uma antinomia aparente, tendo em vista que o próprio ordenamento jurídico fornece diretrizes para superar o suposto conflito, sem a necessidade de afastar a incidência de uma das normas.
Mediante análise teleológica, compreendo que a Lei de Parcelamento Urbano impingiu reforço normativo à proibição de construção nas margens dos cursos de água, uma vez que indica uma mínima proteção à margem imediata, delegando a legislação específica a possibilidade de ampliar os limites de proteção.
Ademais, sob o vértice da especificidade, percebo que a própria Lei n. 6.766/1979 – cuja finalidade é estabelecer critérios para o loteamento urbano – reconhece não ser a sua especificidade a proteção ambiental dos cursos de água, razão pela qual indica a possibilidade da legislação específica impor maior restrição do que a referida norma.
Cumpre estabelecer qual é a norma mais específica em matéria de proteção das áreas de preservação permanente (proteção que alberga os cursos de água).
O instituto das áreas de preservação permanente tem objetivos expressos em relação à integridade dos ecossistemas e a qualidade do meio ambiente. Como se verifica, as área de preservação permanentes têm esse papel de abrigar a biodiversidade e promover a propagação da vida, assegurar a qualidade do solo e garantir o armazenamento de recurso hídrico em condições favoráveis de quantidade e qualidade.
O sistema normativo brasileiro já protegia claramente as áreas de preservação permanente desde o antigo Código Florestal.
Trata-se de legislação com conteúdo robusto quanto à proteção dos nossos biomas. É o que se colhe, também, da abalizada doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet em sua obra “Constituição e Legislação Ambiental Comentadas”:
Dentre as questões mais destacadas trazidas pela legislação em questão, podemos apontar os institutos jurídicos da área de preservação permanente (APP) e da reserva legal (RL). (SARLET, p. 647-648, 2015)
Dessa forma, considero que o Código Florestal é mais específico, no que atine à proteção dos cursos de água, do que a Lei de Parcelamento de Solo Urbano (grifo nosso).
Assim sendo, restou interpretar o parágrafo único do art. 2º do referido Código Florestal.
É inegável que o dispositivo supracitado indica, nos casos de áreas urbanas, a observância das leis de uso do solo. Entretanto, mediante leitura atenta do diploma legal percebe-se que, ao excepcionar a tutela das edificações, a norma impôs essencial observância aos princípios e limites insculpidos no Código Florestal. Logo, cuida-se de permissão para impor mais restrições ambientais, jamais de salvo-conduto para redução do patamar protetivo.
Por fim, a título argumentativo, assevero que, mesmo compreendendo a situação como antinomia real, não se pode admitir uma construção a menos de 50 metros do curso de água. Incidindo a antinomia real no caso concreto seria inevitável o afastamento da previsão do art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1979. […]
Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso especial, para reformar o acórdão recorrido determinando o respeito ao limite de 50 metros de área de preservação permanente, devendo o PRAD contemplar a integral recomposição da área de preservação permanente.
Após o julgamento do REsp 1.518.490/SC, outros recursos especiais sobre o referido tema foram apreciados pela Primeira e Segunda Turmas da Primeira Seção desta Corte Superior, tendo sido mantido o entendimento segundo o qual é o art. 2º da Lei n. 4.771/1965 que deve ser aplicado nas áreas urbanas para fins de disciplina das áreas non aedificandi às margens dos cursos d´água, e não o art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1976.
Confiram-se:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE-APP. SUPOSTA ANTINOMIA DO CÓDIGO FLORESTAL COM A LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO NO QUE TANGE À DEFINIÇÃO DA ÁREA NÃO-EDIFICÁVEL ÀS MARGENS DE RIO. MAIOR PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE. INCIDÊNCIA DO LIMITE PREVISTO NO CÓDIGO AMBIENTAL VIGENTE À ÉPOCA DOS FATOS. RECURSO ESPECIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROVIDO, PARA RECONHECER A IMPOSSIBILIDADE DE CONTINUIDADE OU PERMANÊNCIA DE QUALQUER EDIFICAÇÃO NA ÁREA DE PRESERVAÇÃO DAS MARGENS DO RIO TUBARÃO.
- Discute-se nos autos, no âmbito de análise desta Corte Superior de Justiça, o suposto conflito da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (art. 4o., III, da Lei 6.766/1979) sobre o Código Florestal (art. 2o. da Lei 4.771/1965) no que tange à definição da dimensão non aedificandi no leito do Rio Tubarão, considerada como Área de Preservação Permanente- APP, restando incontroverso nos autos que os recorridos edificaram a uma distância de 22 metros do corpo d’água.
- A aparente antinomia das normas foi enfrentada pela Corte de origem com enfoque na suposta especialidade da Lei 6.766/1979, compreendendo que a Lei 4.771/1965 cederia espaço à aplicação da Lei de Parcelamento do Solo no âmbito
- O âmbito de proteção jurídica das normas em confronto seria, na realidade, distinto. Enquanto o art. 2o. do Código Florestal visa à proteção da biodiversidade, a Lei de Parcelamento do Solo tem por finalidade precípua a ordenação do espaço urbano destinado à habitação, de modo que a proteção pretendida estaria mais relacionada à segurança da população, prevenindo edificações em terrenos alagadiços ou sujeitos a inundações.
- Por ser o que oferece a maior proteção ambiental, o limite que prevalece é o do art. 2o. da Lei 4.771/1965, com a redação vigente à época dos fatos, que, na espécie, remontam ao ano de 2011. Incide, portanto, o teor dado ao dispositivo pela Lei 7.511/1986, que previu a distância mínima de 100 metros, em detrimento do limite de 15 metros estabelecido pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano. Precedente da Segunda Turma: REsp. 1.518.490/SC, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe 10.2018.
- Frise-se, ademais, não se admitir, notadamente em temas de Direito Ambiental, a incidência da Teoria do Fato Consumado para a manutenção de situação que, apesar do decurso do tempo, é danosa ao ecossistema e violadora das normas de proteção
- Não se olvida que, ao que tudo indica, a particular agiu de boa-fé, amparada no Plano Diretor do Município de Orleans/SC (Lei Complementar Municipal 2.147/2004) – que estabelece a distância de 20 metros – e na referida Lei do Parcelamento do Solo Urbano, tendo sua edificação licenciada pela co-ré FUNDAÇÃO AMBIENTAL MUNICIPAL DE ORLEANS-FAMOR, órgão ambiental responsável no âmbito do Município.
- Por essa razão, terá ela, a princípio, direito à persecução do ressarcimento pelas perdas e danos na via processual adequada.
- Recurso Especial do MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA provido, reconhecendo a imprescindibilidade da observância do limite imposto pelo Código Ambiental para a edificação nas margens do Rio Tubarão, e, por conseguinte, a necessária demolição da edificação construída na Área de Preservação Permanente-APP, impondo, ainda, à FUNDAÇÃO AMBIENTAL MUNICIPAL DE ORLEANS-FAMOR a obrigação de não mais expedir licenciamentos e autorizações para projetos de construção na referida área (REsp 1.505.083/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 10/12/2018).
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. CÓDIGO FLORESTAL. ÁREA URBANA. APLICAÇÃO. EDIFICAÇÃO DE IMÓVEL. DISTÂNCIA DE 30 METROS DE MARGEM DE CURSO D’ÁGUA. OBSERVÂNCIA.
- O Plenário do STJ decidiu que “aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado Administrativo n. 2).
- É firme a orientação jurisprudencial desta Corte de que “a proteção ao meio ambiente não difere área urbana de rural, porquanto ambas merecem a atenção em favor da garantia da qualidade de vida proporcionada pelo texto constitucional, pelo Código Florestal e pelas emais normas legais sobre o tema” (REsp 1667087/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2018, DJe 13/08/2018).
- As duas turmas integrantes da Primeira Seção desta Corte têm prestigiado o disposto no art. 2º, “a”, item 1, da Lei nº 4.771/1965 (antigo Código Florestal), o qual estabelece como não edificável a faixa de 30 (trinta) metros das margens dos rios, esteja o curso d’água inserido em área urbana ou
- Agravo interno provido para denegar a segurança (AgInt no REsp 1.484.153/SC, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 19/12/2018).
AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ANTINOMIA DE NORMAS. APARENTE. ESPECIFICIDADE. INCIDÊNCIA DO CÓDIGO FLORESTAL. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. MAIOR PROTEÇÃO AMBIENTAL. PROVIMENTO. RESPEITO AO LIMITE IMPOSTO PELO CÓDIGO FLORESTAL.
- A proteção ao meio ambiente integra, axiologicamente, o ordenamento jurídico brasileiro, e as normas infraconstitucionais devem respeitar a teleologia da Constituição Federal. Dessa forma, o ordenamento jurídico precisa ser interpretado de forma sistêmica e harmônica, por meio da técnica da interpretação corretiva, conciliando os institutos em busca do interesse público primário.
- Na espécie, a antinomia entre a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n. 6.766/1979) e o Código Florestal (Lei n. 12.651/2012) é apenas aparente, pois a primeira estabelece uma proteção mínima e a segunda tutela a proteção específica, intensificando o mínimo protetivo às margens dos cursos de água.
- A proteção marginal dos cursos de água, em toda a sua extensão, possui importante papel de proteção contra o assoreamento. O Código Florestal tutela em maior extensão e profundidade o bem jurídico do meio ambiente, logo, é a norma específica a ser observada na espécie.
- Recurso especial provido (REsp 546.415/SC, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 28/2/2019).
PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 3/STJ. ÁREA URBANA. APLICABILIDADE DO CÓDIGO FLORESTAL. PRECEDENTES.
- O presente recurso atrai a incidência do Enunciado Administrativo 3/STJ: “Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC”.
- Decorre o presente recurso especial de ação civil pública ajuizada pelo MP/SC em face da ora recorrida e o Município de Florianópolis, com o objeto de obter a remoção de construção em área de preservação permanente, bem assim a recuperação ambiental do local da controvérsia. A Corte de origem manteve a sentença de procedência em parte do pedido – apenas no que se refere à área de até quinze metros do curso d’água -, sob o entendimento de que a Lei de Parcelamento Urbano deve prevalecer no caso concreto, por ser especial em relação ao Código Florestal. 3. Merece reforma o acórdão recorrido, pois, nos termos da jurisprudência desta Corte, o anterior Código Florestal também deve ser aplicado às áreas urbanas.
- Ademais, conforme já decidiu a Segunda Turma, (i) “a antinomia entre a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n. 6.766/1979) e o Código Florestal (Lei n. 4.771/1965) é apenas aparente, pois a primeira impinge um reforço normativo à segunda, intensificando o mínimo protetivo às margens dos cursos de água”; (ii) “[a] Lei n. 4.771/1965, ao excepcionar os casos de construções em área urbana (art. 2º, parágrafo único), condiciona a hipótese de exceção a escorreita observância dos princípios e limites insculpidos no Código”; (iii) “[a] proteção marginal dos cursos de água, em toda sua extensão, possui importante papel de proteção contra o assoreamento”; e (iv) “[o] Código Florestal (Lei n. 4.771/1965) tutela em maior extensão e profundidade o bem jurídico do meio ambiente, logo, é a norma específica a ser observada na espécie” (REsp 1518490/SC, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 15/10/2018).
- Agravo interno não provido (AgInt no REsp 1.542.756/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 2/4/2019).
No referente ao exame do art. 2º do antigo Código Florestal, veja-se lição de Paulo Affonso Leme Machado:
O art. 2º, parágrafo único, do Código Florestal deu um novo enfoque à questão florestal municipal, pois diz: “no caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se- á o disposto nos respectivos planos e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo”. Desnecessário seria este artigo, diante da obrigação que têm os Municípios de respeitar as normas gerais ambientais da União.
Contudo, ao introduzir-se esse parágrafo único no art. 2º do Código Florestal, quis o legislador deixar claro que os planos e leis de uso do solo do Município têm que estar em consonância com as normas do mencionado art. 2º.
Isto que dizer, por exemplo, que um Município, ao construir uma avenida nas margens de um curso d’água, não pode deixar de respeitar a faixa de implantação da vegetação de “preservação permanente”, de acordo com a largura do curso d’água.
A autonomia municipal ambiental entrosa-se, pois, com as normas federais e estaduais protetoras do meio ambiente. (Direito Ambiental Brasileiro, 17ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p. 409-410).
3. Aplicabilidade do art. 4°, I, da Lei n. 12.651/2012, para fins de impor a largura mínima às faixas marginais dos cursos d’água natural perene e intermitente existentes em área de consolidação urbana.
Historiado o contexto dos normativos que envolvem a questão contida no Tema
1.010/STJ e a jurisprudência desta Corte Superior, passa-se ao exame da antinomia entre eles:
Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:
I – as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;
b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura;
c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura;
d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;
e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros (grifo nosso) (grifo nosso);
Art. 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: […]
III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias, ferrovias e dutos, será obrigatória a reserva de uma faixa non aedificandi de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica;
Nas palavras de Osny Pereira, registradas em 1950, mas que se apresentam atualíssimas:
“Assim, como ninguém escava o terreno dos alicerces de sua casa, porque poderá comprometer a segurança da mesma, do mesmo modo ninguém arranca árvores das nascentes, das margens dos rios, nas encostas das montanhas, ao longo das estradas, porque poderá vir a ficar sem água, sujeito a inundações, sem vias de comunicação, pelas barreiras e outros males conhecidamente resultantes da sua insensatez.
As árvores nesses lugares estão para as respectivas terras como o vestuário está para o corpo humano. Proibindo a devastação, o Estado nada mais faz do que auxiliar o próprio particular a bem administrar os seus bens individuais, abrindo-lhe os olhos contra os danos que poderia inadvertidamente cometer contra si mesmo” (PEREIRA, 1950).
(Osny Pereira, Direito Florestal Brasileiro, Rio de Janeiro: Borsoi, 1950, Apud Novo Código Florestal – Comentários à Lei n. 12.651, de 25 de maio de 2012, à Lei n. 12.727, de 17 de outubro de 2012 e ao Decreto n. 7.830, de 17 de outubro de 2012, Coordenação de Édis Milaré e Paulo Affonso Leme Machado. 2ª Ed., São Paulo, RT, 2013, p. 164).
A obra “O Código Florestal e a Ciência: Contribuições para o Diálogo/Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência/Academia Brasileira de Ciências – São Paulo: SBPC, publicada em 2011, e disponível no endereço eletrônico: http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc- 547.pdf (acesso em 8/11/2020, pág. 13), apresenta ponderações científicas que foram externadas para contribuir no diálogo que a sociedade teve à época sobre as possíveis alterações no Código Florestal de 1965, em especial sobre as APPs, destacando-se as seguintes informações:
Uma possível alteração na definição da APP ripária, do nível mais alto do curso d’água – conforme determina o Código Florestal vigente – para a borda do leito menor, como é proposto no substitutivo, representaria grande perda de proteção para áreas sensíveis. Essa alteração proposta no bordo de referência significaria perda de até 60% de proteção para essas áreas na Amazônia, por exemplo. Já a redução da faixa ripária de 30 para 15 m nos rios com até 5 m de largura, que compõem mais de 50% da rede de drenagem em extensão, resultaria numa redução de 31% na área protegida pelas APPs ripárias. Estudo recente constatou que as APPs ripárias representam, de acordo com o Código em vigor, somente 6,9% das áreas privadas (grifo nosso).
No respeitante ao valor mínimo de 30 (trinta) metros para as APPs ciliares, veja-se Nota Técnica n. 12/2012/GEUSA/SIP-ANA, de 9 de maio de 2012, da Agência Nacional de Águas, disponível no endereço eletrônico: https://arquivos.ana.gov.br/imprensa/noticias/20120509_NT_n_012-2012-CodigoFlorestal.pdf , acesso em 8/11/2020):
Os trabalhos relacionados dão uma pequena amostra dos estudos existentes que concluem com fundamentação técnica e científica o posicionamento abarcado pelo Código Florestal vigente, que é a adoção de faixas fixas de mata ciliar, com o valor mínimo de 30 metros para todos os cursos de água, tendo em vista que a utilização das áreas é dinâmica e em determinados momentos poderá haver condições de maior erosão, e a existência dessa faixa mínima certamente reduzirá substancialmente os impactos negativos sobre os recursos hídricos.
Com efeito, todas as funções ambientais das APPs são igualmente importantes (preservação dos recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas, conforme art. 3º, II, da Lei n. 12.651/2012).
Nesse aspecto, um olhar especial para a proteção do solo e dos recursos hídricos, por meio da salvaguarda às APPs ripárias, ao que tudo vem a indicar, pela notoriedade do tema, é de vital importância, especialmente quando se observa, por uma visão macrossocial, sem distinção entre meio urbano e rural, a indispensável função ecossistêmica associada às matas ciliares que favorecem a infiltração da água no solo, contribuindo com o armazenamento, transferência e recarga dos cursos d’água superficiais e dos aquíferos (reservatórios de água doce subterrâneos).
Deve-se, portanto, manter o entendimento desta Corte Superior de que não se pode tratar a disciplina das faixas marginais dos cursos d’água em áreas urbanas somente pela visão do Direito Urbanístico, enxergando cada urbis de forma isolada, pois as repercussões das intervenções antrópicas sobre essas áreas desbordam, quase sempre, do eixo local.
A definição da norma a incidir sobre o caso, consequentemente, deve garantir a melhor e mais eficaz proteção ao meio ambiente natural e ao meio ambiente artificial, em cumprimento ao disposto no art. 225 da CF/1988, sempre com os olhos também voltados ao princípio do desenvolvimento sustentável (art. 170, VI,) e às funções social e ecológica da propriedade. Por oportuno, confira-se:
O princípio do desenvolvimento sustentável expresso no art. 170, VI, da CF88, confrontado com o direito de propriedade privada e a livre iniciativa (caput e inciso II do art. 170), também se presta a desmistificar a perspectiva de um capitalismo liberal-individualista em favor da sua leitura à luz dos valores e princípios constitucionais socioambientais.
Assim, com relação à pedra estruturante do sistema capitalista, ou seja, a propriedade privada, os interesses do seu titular devem ajustar-se aos interesses da sociedade e do Estado, na esteira das funções social e ecológica que lhe são inerentes. (Ingo Wolfgan Sarlet e Tiago Fensterseifer, Direito Constitucional Ambiental – Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção ao Meio Ambiente; 3ª Edição, RT, 2013, p. 342)
A propósito:
MEIO AMBIENTE – DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) – PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE – DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE – NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS – ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) – ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE – MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI – SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL – RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) – COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES – OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) – A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) – DECISÃO NÃO REFERENDADA – CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. […]
A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. – O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações (STF, Tribunal Pleno, ADI-MC 3540/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 3/2/2006 – grifo nosso) .
É imperativo, portanto, que a antinomia nitidamente aparente entre as normas que fazem parte do Tema 1010/STJ (art. 4°, I, da Lei n. 12.651/2012 e art. 4°, caput, III, da Lei n. 6.766/1979) seja solucionada por meio do critério da especialidade.
A tutela ao caso, de forma ampla, além de pressupor a compreensão integrada do Direito Ambiental e do Direito Urbanístico, precisa conduzir ao respeito à dignidade da pessoa humana, notadamente sob as perspectivas coletiva e ecológica, indispensáveis à existência digna do indivíduo e da coletividade. A norma a atuar deve, inegavelmente, traduzir a consecução, tanto do bem-estar ambiental quanto do bem-estar social, não só para as gerações presentes, mas também para as futuras, com especial atenção ao princípio da solidariedade intergeracional.
Com efeito, a Lei n. 6.766/1979, como anunciado inicialmente, ao dispor a respeito de norma ambiental, vedou o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica em áreas de preservação ecológica, todavia, sem delimitar quais seriam essas áreas, no meio urbano, o que denota a generalidade da Lei Federal de 1979 para fins de disciplina da proteção integral ao meio ambiente.
Nesse passo, exsurge inarredável que a norma inserta no novo Código Florestal (art. 4º, caput, inciso I), ao prever medidas mínimas superiores para as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, sendo especial e específica para o caso em face do art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1976, é a que deve reger a proteção das APPs ciliares ou ripárias em áreas urbanas consolidadas, espaços territoriais especialmente protegidos (art. 225, III, da CF/1988), que não se condicionam a fronteiras entre o meio rural e urbano.
Assinale-se, a opção pela não aplicação do art. 4º, caput, e I, da Lei n. 12.651/2012, quando o comando do seu caput é expresso em determinar a sua incidência também ao meio urbano, apresenta-se inequivocamente inapropriado, pois estar-se-ia a afrontar o enunciado da Súmula Vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal.
Importante e também necessários os seguintes registros.
Após a afetação do Tema 1010/STJ, entrou em vigor a Lei n. 13.913, de 25 de novembro de 2019, que alterou e acrescentou dispositivos à Lei n. 6.766/1979. A disciplina das faixas não edificáveis ao longo das águas correntes e dormentes passou a ser determinada pelo inciso III-A do art. 4º, que passou a contar com a seguinte redação:
Art. 4º Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: […]
III – A. – ao longo das águas correntes e dormentes e da faixa de domínio das ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não edificável de, no mínimo, 15 (quinze) metros de cada lado;
No que interessa ao contexto, vê-se que foi subtraída a parte final do inciso III (a seguir, em negrito), que assim disciplinava a questão:
III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não-edificável de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica (grifo nosso).
A solução que ora se propõe não se altera pela superveniência da Lei n. 13.913, de 25 de novembro de 2019, que suprimiu a expressão “[…] salvo maiores exigências da legislação específica.” do inciso III do art. 4º da LPSU, pois, pelo critério da especialidade, o normativo contido no art. 4º, caput, I, da Lei n. 12.651/2012 (novo Código Florestal) é o que garante a mais ampla proteção ao meio ambiente, em áreas urbana e rural, e deve, como já assinalado, incidir ao caso.
O fato de agora o inciso III-A do art. 4º da Lei n. 6.766/1976 expressamente estabelecer, em caráter geral, a determinação do distanciamento de “no mínimo” 15 (metros) apenas reforça a função de norma geral norteadora da menor distância que as faixas marginais, não edificáveis, devem manter dos cursos d’água, o que, por uma visão teleológica do sistema de proteção ambiental, não restringe a aplicação do art. 4º, caput, da Lei n . 12.651/2012 às áreas urbanas consolidadas.
Por fim, impõe-se observar que art. 65-A das Disposições Transitórias do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2020), com a redação dada pela Lei n. 13.465, de 2017, dispôs sobre a regularização de núcleos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente, tendo o seu § 2º previsto a manutenção de faixa não edificável com largura mínima de 15 (quinze) metros de cada lado, o que reafirma a dicção da norma geral do parcelamento urbano (atualmente disciplinada no inciso III-A do art. 4º da Lei n. 6.766/1976). Confira-se:
Art. 65. Na Reurb-E dos núcleos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente não identificadas como áreas de risco, a regularização fundiária será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da lei específica de regularização fundiária urbana. […]
§ 2º Para fins da regularização ambiental prevista no caput, ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água, será mantida faixa não edificável com largura mínima de 15 (quinze) metros de cada lado.
Entretanto, a hipótese dos autos e a delimitação do Tema 1010/STJ não contempla o exame da sua aplicação para fins de objetivação de tese, pois desborda da controvérsia inicialmente fixada para julgamento, que não trata de regularização fundiária de núcleos urbanos informais.
Desse modo, nos termos dos arts. 1.036 e seguintes do CPC/2015, propõe-se a seguinte definição para fins de fixação da tese do Tema 1010/STJ:
Na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.
4. Modulação dos efeitos do julgamento
A modulação dos efeitos do julgamento tem por escopo atuar sobre situações excepcionalíssimas quando verificada a alteração da jurisprudência dominante, considerados o interesse social e a segurança jurídica (art. 927, § 3º, do CPC/2015). É instituto utilizado para evitar a surpresa com a nova interpretação da norma, o que não é o caso.
Como visto acima, o Superior Tribunal de Justiça já determinava a aplicação do antigo Código Florestal (Lei n. 4.771/1965) às áreas urbanas para melhor garantir a proteção das Áreas de Preservação Ambiental nela contidas, conforme precedentes da Primeira e Segunda Turmas. Não houve alteração desse entendimento com a edição do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), que também passou a ser aplicado por esse Tribunal Superior para fins de manter a proteção das Áreas de Preservação Ambiental urbanas. É dizer, não há surpresa ou guinada jurisprudencial a justificar a atribuição de eficácia prospectiva ao julgamento.
5. O exame do caso concreto.
Segundo consta no acórdão recorrido (fls. 97-108), os impetrantes questionaram ato supostamente ilegal do Sr. Secretário de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente do Município de Rio do Sul/SC, que indeferiu pedido de construção de residência de alvenaria em virtude de a obra a ser realizada ficar a menos de 30 (trinta) metros do Rio Itajaí-Açu, em área de preservação per manente.
A Corte de origem, adotando os fundamentos do parecer emitido pela eminente Procuradora de Justiça que oficiou no caso, entendeu por manter a concessão da ordem em sede de reexame necessário, aplicando o entendimento segundo o qual incide o limite de 15 (quinze) metros nas áreas marginais dos cursos d’água em áreas urbanas consolidadas, nos termos do art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1979. Confira-se o seguinte fragmento contido no voto condutor do acórdão (fl. 107):
Nesse sentido, tendo em vista a possibilidade de flexibilização das disposições contidas no Código Florestal, tem-se que a aplicação da Lei de Parcelamento do Solo, ao presente caso é medida que se impõe, para que seja contemplado a área de 15 metros de recuo do Rio Itajaí-Açú.
O entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina está em dissonância com a tese do Tema 1010/STJ, que determina a aplicação do art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, da Lei n. 12.651/2009 às áreas urbanas consolidadas, a fim de que sejam mantidas as faixas marginais dos cursos d’água previstas nas referidas alíneas.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial do Ministério Público de Santa Catarina para denegar a ordem. Sem condenação em honorários advocatícios, nos termos do art. 25 da Lei n. 12.016/2019 e da Súmula 105/STJ.
Acórdão sujeito ao regime previsto no art. 1.036 e seguintes do CPC/2015. É como voto.