APELAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INSCRIÇÃO NA DÍVIDA ATIVA. MULTA. LIMPEZA URBANA. AUTO DE INFRAÇÃO. PRESUNÇÃO RELATIVA DE VERACIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO. ADMITE PROVA EM CONTRÁRIO. FALSIDADE DE ASSINATURA. CONCLUSÃO DA PERÍCIA GRAFOTÉCNICA. DANO MORAL. REPARAÇÃO. SISTEMA DE ÔNUS E PRECLUSÕES.
1. A presunção de veracidade do ato administrativo não é absoluta, admite prova em contrário.
2. A prova pericial tem peso considerável quando o fato exige conhecimento técnico, não devendo ser desprezada, a menos que o juiz identifique erro metodológico. As dúvidas levantadas quanto à coincidência entre os dados pessoais informados no auto de infração, ainda que intrigantes, não são capazes de afastar a conclusão do perito grafotécnico quando a parte não se esforça para demonstrar as suas alegações. O não atendimento do ônus probatório, no tempo e na forma prevista pela lei, coloca a parte em posição desvantajosa. Doutrina.
3. O dano moral é a privação ou lesão de direito da personalidade. Os direitos da personalidade compreendem aqueles essenciais à pessoa humana, a fim de proteger sua dignidade.
4. O dano moral é in re ipsa, ou seja, é uma consequência jurídica que se verifica independentemente da prova do efetivo prejuízo da vítima.
5. A reparação do dano moral deverá observar as finalidades compensatória, punitiva e preventiva, além do grau de culpa do agente, do potencial econômico, características pessoais das partes, a repercussão do fato no meio social e a natureza do direito violado, obedecidos os critérios da equidade, proporcionalidade e razoabilidade.
6. Apelação desprovida. (TJ-DF 07023125220188070018 DF 0702312-52.2018.8.07.0018, Relator: HECTOR VALVERDE, Data de Julgamento: 19/02/2020, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe : 19/03/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)
RELATÓRIO
Trata-se de apelação interposta pelo Distrito Federal contra a sentença proferida pelo Juízo da Oitava contra a Agência de Fiscalização do Distrito Federal, porém a Agefis foi incorporada à Administração Direta, assim o polo passivo foi retificado). A petição inicial alega que o nome do apelado foi inscrito indevidamente na dívida ativa.
Explica que em setembro de 2017 foi notificado sobre a inscrição do seu nome na dívida ativa, devido a multa por despejo de entulho no endereço situado na quadra 55, conjunto B, lote 8, Brazlândia. Afirma que não reside no endereço e que desconhece o local – reside há mais de 20 (vinte) anos em Ceilândia.
Esclarece que não trabalha como carroceiro. Suspeita que foi identificada a pessoa errada. Questiona o procedimento administrativo que gerou a multa, especialmente por não ter sido notificado para retirar o lixo do local.
Alega ter sofrido dano moral com a inscrição. Os pedidos formulados na ação foram: (1) declaração de nulidade do auto de infração; (2) declaração de nulidade da multa; (3) reparação do dano moral, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) (id 13083283).
O benefício da gratuidade de justiça foi deferido (id 13083290).
A defesa formulou preliminar de incompetência absoluta, sob a alegação de que a competência para apreciar a demanda seria dos Juizados Especiais da Fazenda Pública. Em relação ao mérito, a principal tese da defesa é a de que não houve erro de identificação.
Ressalta que a assinatura e os dados pessoais indicados no auto de infração (RG, CPF e número de telefone) são os mesmos informados pelo apelado na petição inicial, situação que demonstraria que se trata da mesma pessoa (id 13083294).
O apelado apresentou réplica. Impugnou a assinatura presente no auto de infração (id 13083300).
A decisão de saneamento e organização do processo deferiu a realização da perícia grafotécnica requerida pelo apelado (id 13083303 e 13083305). O apelante abriu mão da produção probatória (id 13083304).
O laudo pericial foi anexado. Concluiu que houve falsidade sem imitação na assinatura (id 13083355 e 13083356).
O recurso aborda três pontos. O primeiro resgata a tese de que a assinatura e os dados pessoais presentes no auto de infração (RG, CPF e número de telefone) são idênticos aos informados nas peças processuais do apelado, o que demonstra que não houve erro de identificação. O segundo ponto defende a inexistência do dano moral e o terceiro considera excessivo o valor fixado para a reparação (id 13083367).
Preparo dispensado. O apelado apresentou contrarrazões (id 13083372).
É o relatório.
VOTO
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço da apelação.
O Distrito Federal multou o apelado em R$ 305,06 (trezentos e cinco reais e seis centavos), por praticar atos lesivos à limpeza urbana (Lei Distrital n. 972/1995 e Dec. Distrital n. 18.369/1997).
O auto de infração D 102530-FLP registra que a infração (despejo de lixo residencial) teria ocorrido, e identificou o infrator, que teria assinado o documento de autuação (id 13083326).
O apelado nega que tenha sido o autor da infração. Afirma que mora em outro local, em Ceilândia, e não reconhece a assinatura posta no documento. O laudo pericial concluiu que a assinatura realmente não pertence a ele.
Erro de identificação.
A tese de que não houve erro de identificação não pode ser aceita. O perito concluiu que a assinatura é falsa, ou seja, diverge da assinatura do apelado. A falsificação, nas palavras da perita, não apresenta semelhança, quem assinou sequer tentou reproduzir o gesto gráfico autêntico:
“A perita eliminou peremptoriamente a hipótese de que o apelado tenha sido o autor da assinatura: “
12) Nesse sentido, a perita pode ELIMINAR a AUTORIA do periciando na peça questionada.” (id 13083356, f. 11).
Dentre as várias incongruências detectadas na assinatura, perceptíveis até para um leigo, destaca-se, como principal, o fato de que a assinatura no auto de infração registra o sobrenome Souza (id 13083326), ao passo que o sobrenome do apelado é Sousa, conforme registram os diversos documentos anexados por ele, especialmente a carteira de identidade (id 13083355, f. 4, 13083320, f. 2-4).
Os endereços também não coincidem. O local da infração foi na Quadra 55, Conj. B, Casa 8, assentamento Brazlândia, enquanto o apelado reside na QNM 04, conj. H, lote 04, Ceilândia Norte, de acordo com a certidão expedida pelo própria Secretaria da Fazenda do Distrito Federal (id 13083288, f. 1).
As coincidências entre os números do RG, de CPF e de telefone, apontadas pelo apelante,são, de fato, intrigantes, porém insuficientes para desfazer a conclusão do laudo pericial.
O apelado comprovou que não é o autor da assinatura constante do auto de infração e que o endereço de Brazlândia, para onde foram enviadas as notificações do procedimento administrativo, não é o de sua residência (id 13083295, f. 13-14). A presunção de veracidade dos atos administrativos é relativa, portanto não prevalece quando é produzida prova em contrário.
Registre-se que o apelante abriu mão da fase probatória, momento em que poderia ter solicitado o depoimento pessoal do apelado ou a oitiva do fiscal responsável pela autuação, esclarecendo os pontos levantados na apelação.
O comportamento inerte do apelante atrai a incidência do sistema de ônus e preclusões do Código de Processo Civil. A respeito do ônus de provar, confira-se a lição da doutrina:
“O não atendimento do ônus de provar coloca a parte em desvantajosa posição para a obtenção do ganho de causa. A produção probatória, no tempo e na forma prescrita em lei, é ônus da condição de parte.” [1]
A doutrina ensina que a prova pericial tem peso considerável quando o fato demanda conhecimento técnico, não devendo ser desprezada, a menos que o juiz identifique erro metodológico:
“A prova pericial tem cárter técnico, científico e especializado e deve prevalecer sobre todas as outras em matéria médicas e também sobre o conhecimento privado que o magistrado julgue ter acerca da matéria.” [2]
Confira-se o entendimento da Primeira Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios sobre o peso da prova pericial:
“Conquanto o magistrado não seja obrigado a adotar o laudo produzido, inexiste óbice para que o julgador venha a adotá-lo, especialmente quando essa importante prova técnica encontra-se apta a formar, com segurança, o seu convencimento a respeito da lide posta em debate, desde que respeitado o contraditório e a ampla defesa. 6.Inexistente qualquer elemento hábil e específico a rechaçar a prova pericial realizada por perito nomeado e compromissado pelo juízo a quo, esta prevalece sobre a perícia técnica encomendada pela parte.”
(Acórdão 963895, 20130110798497APC, Relator: SIMONE LUCINDO, 1ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 24/8/2016, publicado no DJE: 28/9/2016. Pág.: 266-279).
O apelante não trouxe qualquer elemento que permita desconsiderar a conclusão do laudo pericial, de modo que a tese deve ser rejeitada.
Dano moral do Distrito Federal e dos Territórios sobre inscrição indevida na dívida ativa:
“A inscrição do nome do contribuinte na dívida ativa e no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (CADIN) e o aviamento de executivo fiscal em seu desfavor em decorrência do ilícito tributário em que incidira a empresa que contratara seus serviços, que, conquanto decotando do preço ajustado o equivalente ao imposto de renda incidente na fonte, não o repassara aos cofres públicos, determinando que passasse a figurar como obrigado tributário inadimplente, consubstanciam fatos geradores de dano moral afetando o prestador de serviços, pois afetaram substancialmente sua credibilidade e honorabilidade, a par dos contratempos e dissabores que lhe irradiaram, legitimando que, maculado seus direitos da personalidade, seja contemplado com compensação pecuniária coadunada com o havido.” (Acórdão 1210540, 07028696720178070020, Relator: TEÓFILO CAETANO, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 16/10/2019, publicado no DJE: 4/11/2019. Pág.: Sem Página Cadastrada.);
“A inscrição indevida do nome na dívida ativa, e o posterior chamamento em ação de execução fiscal, são motivos suficientes para configurar a ofensa aos direitos da personalidade, aptos a reparação por dano moral.” (Acórdão 1100512, 07058269820178070001, Relator: HECTOR VALVERDE, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 30/5/2018, publicado no DJE: 6/6/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada.); “Aquele que dá ensejo à inscrição indevida do nome de outrem em dívida ativa fica obrigado a reparar o dano moral causado.” (Acórdão 876661, 20120111917226APC, Relator: MARIA IVATÔNIA, , Revisor: ROMULO DE ARAUJO MENDES, 1ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 17/6/2015, publicado no DJE: 7/7/2015. Pág.: 267).
As noções de dignidade da pessoa humana e direitos da personalidade são premissas indispensáveis ao instituto do dano moral.
Dignidade, na concepção de Kant, é o que não tem preço, o que não pode ser substituído por um equivalente ou considerado um meio. O homem, como ser racional, tem dignidade. [3]
O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e considerado o núcleo de todo sistema jurídico, nacional ou internacional, sobressaindo a premissa insuperável da primazia do ser humano como fim da Ciência do Direito. Constitui a essência do sistema jurídico brasileiro.
O dano moral é a privação ou lesão de direito da personalidade. Os direitos da personalidade compreendem aqueles essenciais à pessoa humana, a fim de proteger sua dignidade. [4] São direitos subjetivos inatos do ser humano. [5]
Têm como objeto as manifestações interiores, os atributos físicos e morais, bem como as projeções pessoais no meio social, aspecto externo ou extrínseco. A classificação elaborada por Rubens Limongi França, reiteradamente invocada pela doutrina nacional, distingue os atributos relativos à integridade física (direitos à vida, aos alimentos, sobre o próprio corpo vivo ou morto, sobre o corpo alheio vivo ou morto e sobre as partes separadas do corpo vivo ou morto), à integridade intelectual (direitos à liberdade de pensamento, pessoal de autor científico, artístico e de inventor), e à integridade moral (direitos à honra, à honorificência, ao recato, ao segredo pessoal, doméstico e profissional, à imagem, à identidade pessoal, familiar e social) do ser humano. [6]
A existência do dano moral não está condicionada à prova da dor da vítima. A moderna concepção admite que o dano moral reside na violação dos direitos da personalidade.
O dano moral é demonstrado por raciocínio lógico, por presunção judicial, de forma indireta. O dano moral é in re ipsa, ou seja, é uma consequência jurídica que se verifica independentemente da prova do efetivo prejuízo da vítima.
A reparação deve ser a mais ampla possível. Etimologicamente, na acepção comum, reparar significa a ação de restaurar, consertar, pôr em bom estado ou restituir ao estado primitivo o que estava arruinado. [7] De Plácido e Silva ensina que o vocábulo reparação deriva do latim reparatio, de reparare, que significa restabelecer, restaurar, renovar, recompor ou reaver. [8]
A reparação do dano moral tem finalidades distintas do dano patrimonial. Não obstante as divergências doutrinárias, as variadas funções ou finalidades da reparação do dano moral formam, na verdade, uma unidade.
O sistema jurídico prevê resposta proporcional ao dano moral, levando-se em conta as suas peculiaridades e visando cumprir as suas variadas finalidades de forma simultânea.
A primeira finalidade da reparação do dano moral versa sobre a função compensatória, caracterizada como um meio de satisfação da vítima em razão da privação ou violação de seus direitos da personalidade.
Nesse caso, o sistema jurídico considera a repercussão do ato ilícito em relação à vítima. Não significa o pagamento da dor, sofrimento, aflição, preocupação, desgosto experimentados pela vítima do ato ilícito.
O dinheiro na reparação do dano moral serve como meio de compensar a vítima. A finalidade da resposta do sistema jurídico pela violação dos direitos da personalidade é atenuar a dor, o sofrimento, aflição, preocupação, desgosto.
No caso do dano moral, a reparação pecuniária vem abrandar o sentimento inato de vingança da vítima, confortar o seu espírito ultrajado, contribuir para a superação de fatos desagradáveis do passado.
A segunda finalidade refere-se ao caráter punitivo, em que o sistema jurídico responde ao agente causador do dano, sancionando-o com o dever de reparar a ofensa imaterial com parte de seu patrimônio.
O enfoque da finalidade punitiva da reparação do dano moral é quanto à pessoa do ofensor, ou seja, é o mecanismo de resposta do sistema jurídico voltado à sanção do agente causador do ato ilícito, e não mais a específica preocupação com a pessoa da vítima, que por seu lado tem a atenção devida na finalidade compensatória.
Desta forma, considerando que a violação dos direitos da personalidade é um ato contrário aos objetivos do sistema jurídico, bem como a circunstância de que toda agressão a direito subjetivo tem a respectiva resposta jurídica, torna-se consequência lógica que a sanção é medida imperativa, indeclinável.
A terceira finalidade da reparação do dano moral relaciona-se ao aspecto preventivo, entendido como uma medida de desestímulo e intimidação do ofensor, mas com o inequívoco propósito de alcançar todos integrantes da coletividade, alertando-os e desestimulando-os da prática de semelhantes ilicitudes.
O caráter preventivo da reparação do dano moral está indissociavelmente vinculado à necessidade de adoção de medidas que evitem a eclosão de conflitos no cenário social.
O valor a ser fixado deverá observar, ainda, os critérios gerais da equidade, proporcionalidade e razoabilidade, bem como atender a critérios específicos, tais como o grau de culpa do agente, o potencial econômico e características pessoais das partes, a repercussão do fato no meio social e a natureza do direito violado, esclarecendo-se que o valor do dano moral não pode promover o enriquecimento ilícito da vítima e não deve ser ínfimo a ponto de aviltar o direito da personalidade violado.
À míngua de parâmetros legais, matemáticos ou exatos, o juiz deve utilizar o seu prudente arbítrio, o bom senso, a proporcionalidade ou razoabilidade para valorar o dano moral.
A atuação do juiz dirige-se a encontrar uma quantia que não seja ínfima, simbólica, que não represente uma mera censura judicial, ou reduzida a ponto de desmerecer a relevante natureza jurídica do bem da vida violado (direitos da personalidade).
Considero razoável o valor de R$ 7.000,00 (sete mil reais) fixado pela sentença. A quantia é suficiente para reparar os transtornos sofridos pelo apelado e é proporcional à capacidade econômica do apelante.
O montante também atende adequadamente à função pedagógica da condenação, sem provocar enriquecimento sem causa. A reprovabilidade da conduta é um critério importante na quantificação do dano moral.
O apelante sequer se atentou para o fato de que o sobrenome na assinatura não coincidia com o nome registrado no auto de infração, circunstância que deve ser sopesada.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso.