RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME AMBIENTAL. POLUIÇÃO ART. 54, § 2º, V, DA LEI N. 9.605/1998. POTENCIALIDADE LESIVA DE CAUSAR DANOS À SAÚDE HUMANA. IMPRESCINDÍVEL PROVA DO RISCO DE DANO. CRIME NÃO CONFIGURADO.
O delito previsto na primeira parte do 54 da Lei n. 9.605/1998 exige prova do risco de dano, sendo insuficiente para configurar a conduta delitiva a mera potencialidade de dano à saúde humana.
Em razão da necessidade de demonstração efetiva do dano mediante a realização de perícia oficial, merece reforma o acórdão. Recurso especial
RECURSO ESPECIAL 1.417.279 – SC
Trata-se de recurso especial interposto com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina prolatado na Apelação Criminal n. 2012.018399-2 (fl. 143):
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES AMBIENTAIS. CAUSAR POLUIÇÃO E FAZER FUNCIONAR ESTABELECIMENTO POTENCIALMENTE POLUIDOR SEM LICENÇA OU AUTORIZAÇÃO DOS ÓRGÃOS AMBIENTAIS COMPETENTES. ART. 54, § 2o, INC. V, C/C ART. 60, AMBOS DA LEI 9.605/1998. SENTENÇA QUE DECLAROU A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO COM RELAÇÃO AO CRIME DO ART. 60 DA REFERIDA LEI E ABSOLVEU O ACUSADO DO DELITO DO ART. 54, § 2o, INC. V, FACE A AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL.RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRETENDIDA CONDENAÇÃO DO RÉU PELO CRIME DE CAUSAR POLUIÇÃO QUE POSSA RESULTAR EM DANO À SAÚDE HUMANA. ACOLHIMENTO.MATERIALIDADE DO CRIME SUFICIENTEMENTE DEMONSTRADA ATRAVÉS DE DOCUMENTOS JUNTADOS AOS AUTOS, DEPOIMENTOS TESTEMUNHAIS, TERMO CIRCUNSTANCIADO, LEVANTAMENTO FOTOGRÁFICO E DO PRÓPRIO ACUSADO QUE DECLAROU QUE SE UTILIZOU DE UMA MANGUEIRA PARA RETIRAR DEJETOS DE UMA ESTERQUEIRA E JOGÁ-LOS NO GRAMADO PRÓXIMO. PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL.CONDUTA ESTA QUE FEZ COM QUE OS DEJETOS ESCORRESSEM PARA CURSO HÍDRICO, CONFORME CONSTATADO ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS. SITUAÇÃO QUE FACILMENTE PODERÁ RESULTAR EM DANOS À SAÚDE HUMANA, OU A MORTANDADE OU DESTRUIÇÃO SIGNIFICATIVA DA FLORA.ELEMENTAR CARACTERIZADORA DO DELITO PRESENTE. AUTORIA, DO MESMO MODO, VERIFICADA. CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE. SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU REFORMADA. RECURSO PROVIDO.
Consta dos autos que o recorrente foi denunciado pela suposta prática dos crimes previstos nos arts. 54, § 2º, V, e 60 da Lei n. 9.605/1998, em concurso material.
A sentença absolveu o réu quanto ao delito do art. 54 e julgou extinta a punibilidade com relação ao crime do art. 60. Tão só a acusação apelou.
O Tribunal de origem, por sua vez, condenou o réu pela prática do delito previsto no art. 54 da Lei n. 9.605/1998 a uma pena privativa de liberdade de 1 ano de reclusão. No presente recurso, alega o recorrente ofensa ao art. 54, 2º, V, da Lei n. 9.605/1998.
Sustenta que o acórdão recorrido errou ao condená-lo, pois imprescindível laudo pericial que comprovasse a poluição em níveis capazes de causar dano à saúde humana, mortandade de animais ou destruição da flora.
Pede a reforma do acórdão recorrido para absolvê-lo da penalidade prevista no art. 54, § 2º, V, da Lei n. 9.605/1998. Oferecidas contrarrazões, o recurso foi admitido na origem.
O Ministério Público Federal opina pelo desprovimento do recurso.
RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE E O PATRIMÔNIO GENÉTICO. POLUIÇÃO. FALTA DE COTEJO ANALÍTICO. DESCUMPRIMENTO DAS EXIGÊNCIAS PREVISTAS NO ART. 255, §§ 1º E 2º, DO RISTJ. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. INCABÍVEL REEXAME DE PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. CONDENAÇÃO DEVIDAMENTE JUSTIFICADA PELO ACÓRDÃO ATACADO.
Parecer pelo não conhecimento do recurso especial. Se conhecido, pelo seu desprovimento. É o relatório.
VOTO
Quanto à divergência jurisprudencial aventada, verifica-se que o recorrente não se desobrigou de atender aos requisitos do art. 255, §§ 1º e 2º, do RISTJ.
De fato, esta Corte tem reiteradamente decidido que, para comprovação da divergência jurisprudencial, não basta a simples transcrição de ementas, devendo ser mencionadas e expostas circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados.
Na espécie, contudo, verifica-se dos autos que o recorrente não cumpriu as exigências, pois não realizou o devido cotejo analítico entre os acórdãos ditos divergentes, além de não ter comprovado a similitude fática entre os arestos mencionados na petição de recurso especial.
Portanto, não conheço do recurso com fundamento na alínea c. Passo a analisar o recurso com fundamento na alínea a.
O recorrente pretende a sua absolvição por insuficiência probatória, argumentando que é imprescindível a realização de perícia para constatar a ocorrência de dano ambiental.
O acórdão recorrido reconhece que não houve a pericia reclamada e que o que se demonstrou nos autos foi que o réu espalhou dejetos suínos na grama e com isso veio a escorrer para um curso hídrico existente ali próximo. Foi este o fato reconhecido pelo acórdão e que justificou a pena imposta ao recorrente.
O art. 54 da Lei n. 9.605/1998 assim tipifica o delito de poluição ambiental:
causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.
Como visto, a norma penal visa coibir a poluição de qualquer natureza, em níveis tais que representem risco ou efetivo dano à saúde humana, provoquem a morte de animais ou destruam significativamente a flora.
Vê-se que o tipo penal se divide em duas modalidades: de perigo (possa resultar em dano à saúde humana) e de dano (resulte em dano à saúde humana ou provoque a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora).
Entendo que, mesmo na parte em que se tutela o crime de perigo, faz-se imprescindível a prova do risco de dano à saúde. Já disse o Ministro Feliz Fischer, em oportunidade anterior, que:
para caracterização do delito previsto no art. 54 da Lei 9.605/98, a poluição gerada deve ter o condão de, ao menos, poder causar danos à saúde humana (HC n. 54.536).
Também o Ministro Gilson Dipp, por ocasião do julgamento do RHC n. 17.429, concluiu que só é punível a emissão de poluentes efetivamente perigosa ou danosa para a saúde humana, ou que provoque a matança de animais ou a destruição significativa da flora, não se adequando ao tipo penal a conduta de poluir, em níveis incapazes de gerar prejuízos aos bens juridicamente tutelados.
Ou seja, para figurar presente o crime previsto no art. 54 da Lei n. 9.605/1998, não basta ficar caracterizada a ação de poluir; é necessário que a poluição seja capaz de causar danos à saúde humana, e não há como, a meu ver, verificar se tal condição se encontra presente sem prova técnica.
O tipo penal traz um elemento normativo do tipo, constante na expressão “em níveis tais”. Isso significa que só haverá o delito se ocorrer poluição em níveis elevados, que resultem (crime de dano) ou possam resultar (crime de perigo concreto) danos à saúde humana, mortandade de animais (silvestres, domésticos ou domesticados), ou destruição significativa da flora (GOMES, L. F.; MACIEL, S. Crimes ambientais: comentários à Lei 9.605/1998. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pág. 231). E para constatação
desse nível exigido pela norma, como dito mais acima, imprescindível laudo pericial.
Nesse sentido Delmanto, ao comentar sobre o tipo previsto no art. 54, quando afirma que, em todos os casos, haverá necessidade de perícia que comprove o perigo (concreto) de dano ou a lesão ocorrida (DELMANTO, R.; DELMANTO JÚNIOR, R.; DELMANTO, F. M. de A. Leis penais especiais comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pág. 506).
Igualmente, Luiz Flávio Gomes e Sílvio Maciel:
É indispensável, entretanto, o exame pericial para se verificar se a poluição causou perigo efetivo ou dano à saúde humana, ou se causou mortandade de animais ou destruição da flora, de forma significativa. (GOMES, L. F.; MACIEL, S. Crimes ambientais: Comentários à Lei 9.605/1998. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, pág. 232)
Ainda, sobre a imprescindibilidade de prova pericial para constatação do possível dano à saúde humana: NUCCI, G. S. Leis penais e processuais penais comentadas. Vol. 2, 6ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pág. 589 e MARCÃO, R. Crimes Ambientais: Anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei 9.605, de 12-2-1998. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2015, pág. 405.
Sendo assim, por entender que há necessidade de demonstração efetiva do dano mediante a realização de perícia oficial, merece reforma o acórdão recorrido.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença proferida pelo Juízo de primeira instância e absolver o recorrente pelo crime previsto no art. 54 da Lei n. 9.605/1998.