APELAÇÃO CRIMINAL – CRIME AMBIENTAL – CRIME CONTRA A FAUNA – ART. 29, § 1º, INCISO III, DA LEI Nº 9.605/98 – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – INAPLICABILIDADE – BEM JURÍDICO TUTELADO – MEIO AMBIENTE – ANIMAIS QUE NÃO COMPÕEM A LISTA DE ESPÉCIES EM EXTINÇÃO – ISENÇÃO DE PENA – POSSIBILIDADE.
Inaplicável o princípio da insignificância às hipóteses de manutenção em cativeiro de espécime da fauna silvestre, porquanto o bem jurídico tutelado mostra-se relevante, sendo o meio ambiente equilibrado. Tratando-se de espécime que não compõe a listagem de espécies em extinção, possível a aplicação da isenção de pena, consoante § 2º do tipo incriminador.
(TJ-MG – APR: 10396150043406001 Mantena, Relator: Anacleto Rodrigues, Data de Julgamento: 28/07/2022, Câmaras Criminais / 8ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 02/08/2022)
V O T O
Trata-se de apelação interposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS contra a sentença de fls. 50/54v, que absolveu JULIANO PEREIRA ADRIANO da imputação da prática do delito do art. 29, § 1º, inciso III, da Lei nº 9.605/98, nos termos do art. 386, inciso III, do CPP.
Em suas razões recursais, o Parquet sustenta a impossibilidade de aplicação do princípio da insignificância, visto que o bem tutelado é o meio ambiente em si, não se podendo considerar de pouca ou nenhuma lesividade a conduta de manter em cativeiro, sem licença ou autorização do órgão ambiental, dois pássaros da fauna silvestre. Pede a reforma da sentença para condenação do Acusado nos exatos termos da denúncia (fls. 56/59v).
Seguiram-se contrarrazões de fls. 61/65.
Em parecer de fls. 70/72, a d. Procuradoria-Geral de Justiça opinou pelo conhecimento e provimento do recurso. É o relatório.
Conheço do recurso, porquanto presentes os pressupostos e condições de sua admissibilidade.
Não suscitadas preliminares ou inexistentes nulidades que possam ser decretadas de ofício, passo ao exame do mérito.
Narra a denúncia que, em 25 de junho de 2015, por volta das 11h20min, no Córrego dos Vitalino, Sítio Vista Alegre, zona rural, no município de Central de Minas/MG, JULIANO PEREIRA ADRIANO, manteve em cativeiro espécimes da fauna silvestre sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.
Consta que durante fiscalização ambiental foram encontrados dois pássaros, sendo eles dois canários da terra sem anilhas de identificação e registro do órgão competente.
Ao perceber a aproximação da guarnição, o Acusado tentou soltar os pássaros.
A materialidade delitiva restou testificada pelo termo Circunstanciado de Ocorrência de fls. 04/06, Boletim de Ocorrência de fls. 07/10, acervo fotográfico de fl. 11, e atestado biológico de fl. 13.
A autoria é igualmente certa, considerando que o Acusado foi flagrado pela polícia ambiental em seu sítio mantendo em cativeiro dois canários da terra.
A controvérsia cinge-se à tipicidade da conduta, afastada na sentença pela insignificância.
Conforme dispõe o artigo em que incurso o agente:
“Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:
Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas: (…)
III – quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.”
Primeiramente, convém registrar que o princípio da intervenção mínima, limitador do poder punitivo do Estado, faz com que o legislador selecione para fins de proteção pelo Direito Penal tão somente os bens mais relevantes em nossa sociedade, ficando afastados aqueles considerados inexpressivos.
E, com o intuito de excluir do âmbito de incidência da lei aquelas situações consideradas irrelevantes, a melhor doutrina e jurisprudência têm acolhido o princípio da insignificância como causa supralegal de exclusão de tipicidade.
Sobre o tema, são os ensinamentos de Carlos Vico Manãs, citado por Rogério Greco:
“Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminador possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do direito penal, com o significado sistemático político-criminal da expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiaria e fragmentária do direito penal.” (in Curso de Direito Penal, Parte Geral, 19ª Ed., 2017, p. 115)
Veja-se, outrossim, a lição de Cézar Roberto Bittencourt:
“O princípio da insignificância foi cunhado pela primeira vez por Claus Roxin, em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal, partindo do velho adágio latino minima non curat praetor. A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade a bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado. (…)
Assim, a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente em razão ao grau de sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida, como por exemplo, nas palavras de Roxin, ‘mau-trato não é qualquer tipo de lesão à integridade corporal, mas somente uma lesão relevante; uma forma delitiva de injúria é só a lesão grave a pretensão social de respeito. (in Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 21/22)
Os Tribunais Superiores têm entendido pela possibilidade de aplicação do princípio da insignificância nos delitos patrimoniais quando observado” certos vetores, como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada “( HC n. 98.152/MG, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe 5/6/2009).
Quanto aos delitos ambientais, de fato, o Colendo Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal” reconhecem a atipicidade material de determinadas condutas praticadas em detrimento do meio ambiente, desde que verificada a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada “( REsp 1.743.980/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/09/2018, DJe 12/09/2018).
Entretanto, considera-se inaplicável o referido princípio ao presente caso, visto que foi apreendida, ainda, uma gaiola com armadilha para capturar pássaros, o que indica tratar-se de prática recorrente do Acusado que, consoante Termo Circunstanciado de Ocorrência tentou soltar os animais quando da chegada da polícia, evidenciando que era conhecedor da proteção que a legislação confere à espécie em questão.
Nesse sentido:
“APELAÇÃO CRIMINAL – CRIME AMBIENTAL – CONDUTA TIPIFICADA NO ART. 29, § 1º, INCISO III, DA LEI Nº 9.605/98 – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – INAPLICABILIDADE. Segundo a orientação do Superior Tribunal de Justiça, a aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra o meio ambiente deve levar em conta o equilíbrio ecológico e não apenas as questões jurídicas ou a dimensão econômica, devendo ser restrita aos casos em que a conduta do agente apresenta mínima ofensividade, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento, inexpressividade da lesão jurídica provocada e nenhuma periculosidade social da ação.”(TJMG – Apelação Criminal 1.0155.17.000959-3/001, Relator (a): Des.(a) Edison Feital Leite , 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 10/08/2021, publicação da sumula em 20/08/2021).
Assim, uma vez que comprovadas materialidade, autoria e tipicidade da conduta, impõe-se a condenação do acusado.
Entretanto, verifica-se que os animais mantidos irregularmente em cativeiro eram dois pássaros da espécie Sicalis flaveola, conhecidos como canários da terra, que estavam sob guarda doméstica e não compõe a listagem de espécies ameaçadas de extinção, conforme Portaria do Ministério do Meio Ambiente nº 444/2014.
Tal fato atrai a incidência do § 2º do art. 29 da Lei 9.605/98, que assim preceitua, in verbis:
No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.
Nesse jaez já decidiu este Sodalício:
“APELAÇÃO CRIMINAL – ART. 29, § 1º, III, DA LEI 9.605/98 – NECESSIDADE DE APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 29, § 2º, DA LEI 9.605/98 – CIRCUNSTÂNCIAS QUE DETERMINAM SEJA O RÉU EXIMIDO DA PENA – POSSE DE ARMA DE FOGO – ABSOLVIÇÃO – IMPOSSIBLIDADE – AUTORIA E MATERIALIDADE INCONTESTES – CONDUTA TÍPICA – CRIME DE PERIGO ABSTRATO E DE MERA CONDUTA – CONDENAÇÃO MANTIDA”. (TJMG – Apelação Criminal 1.0184.19.000385-7/001, Relator (a): Des.(a) Márcia Milanez, 8ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 14/05/2020, publicação da sumula em 18/05/2020)
“APELAÇÃO CRIMINAL – CRIME CONTRA A FAUNA (ART. 29, § 1º, III, DA LEI N. 9.605/98)- MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS – PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – INAPLICABILIDADE – ISENÇÃO DE PENA – CONCESSÃO DEVIDA – GUARDA DOMÉSTICA DE PÁSSAROS NÃO AMEAÇADOS DE EXTINÇÃO – POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO – ABSOLVIÇÃO POR ATIPICIDADE – IMPOSSIBILIDADE. 1. O princípio da insignificância é de aplicação excepcional quando o caso envolve delito contra o meio ambiente, bem jurídico merecedor de especial proteção no contexto atual. 2. Considerando que o réu mantinha sob guarda doméstica dois pássaros”trinca-ferro”, espécie silvestre não ameaçada de extinção, e que as circunstâncias do art. 59, do CP são favoráveis ao réu, possível a isenção de pena, nos termos do art. 29, § 2º, da Lei 9.605/98. 3. Para a configuração do delito de posse irregular de arma de fogo e munições é indiferente os artefatos terem sido “herdados” pelo acusado, pois o que interessa é se ele de fato as possuía em desacordo com determinação legal ou regulamentar.”(TJMG – Apelação Criminal 1.0242.12.001771-8/001, Relator (a): Des.(a) Dirceu Walace Baroni , 8ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 19/09/2019, publicação da sumula em 25/09/2019)
“APELAÇÃO CRIMINAL – TRÁFICO DE DROGAS E CRIME CONTRA A FAUNA – INVALIDADE DE PROVAS POR INVASÃO DE DOMICÍLIO – NÃO OCORRÊNCIA – PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO – ABSOLVIÇÃO NA ORIGEM – INCONFORMISMO MINISTERIAL – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS – DEPOIMENTOS POLICIAIS – VALIDADE – CONDENAÇÃO IMPOSTA – RECURSO MINISTERIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Não sendo constatada qualquer irregularidade na prisão em flagrante do acusado, não há que se falar em invalidade da prova produzida por suposta violação de domicílio. 2. Restando devidamente comprovada a materialidade delitiva, bem como a destinação mercantil dos entorpecentes apreendidos em poder do réu, que também mantinha, em sua residência, espécimes da fauna silvestre, impositiva sua condenação pela narcotraficância, além do delito previsto no art. 29, § 1º, da Lei 9.9605/98. 3. Levando em consideração que os pássaros apreendidos não estavam ameaçados de extinção e que as circunstâncias favorecem ao réu, deve ele ser beneficiado com o perdão judicial previsto no art. 29, § 2º, da Lei 9.605/98, com a consequente extinção de sua punibilidade, nos termos do art. 107, IX, do CP, quanto ao delito contra a fauna. 4. Recurso parcialmente provido. V.V. Preenchidos os requisitos do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, aplica-se a incidência da causa de causa de diminuição de pena. Em razão do quantum da pena fixada, bem como das circunstâncias judiciais analisadas, entendo que se mostra possível a modificação do regime prisional para o aberto. Estando presentes os requisitos do artigo 44, do CP mostra-se possível a substituição da pena corporal por restritivas de direitos. (TJMG – Apelação Criminal 1.0687.18.001806-5/001, Relator (a): Des.(a) Eduardo Brum, 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 04/03/2020, publicação da sumula em 11/03/2020).
Cabe destacar que todas as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP são favoráveis ao acusado, permitindo a concessão da isenção da pena.
Mediante tais considerações, DOU PROVIMENTO AO RECURSO para condenar o acusado JULIANO PEREIRA ADRIANO pela prática do delito previsto no art. 29, § 1º, inciso III da Lei nº 9.605/98, todavia, isentando-o de pena conforme disposto no § 2º do mesmo dispositivo legal e, por conseguinte, declaro extinta sua punibilidade quanto a tal delito, com fundamento no art. 107, inciso IX, do CP.