PENAL E PROCESSUAL PENAL. QUESTÃO DE ORDEM. CRIME AMBIENTAL. ART. 54, § 2º, INCISO V, DA LEI Nº 9.605/98. LANÇAMENTO DE EFLUENTES EM RIO POR UNIDADE DE TRATAMENTO DE ESGOTO SANITÁRIO. AUSÊNCIA DE LESÃO A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. RÉU PREFEITO. PRERROGATIVA DE FUNÇÃO.
Não havendo lesão de bens, serviços ou interesses da União ou das suas autarquias ou empresas públicas, compete a Justiça Estadual a apreciação dos crimes ambientais.
Exercendo um dos réus o cargo de Prefeito Municipal, compete ao Tribunal de Justiça do respectivo Estado o processo e julgamento do feito.
(TRF-4 – QUO: 3205 SC 2008.04.00.003205-0, Relator: LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, Data de Julgamento: 19/06/2008, QUARTA SEÇÃO, Data de Publicação: D.E. 27/06/2008)
RELATÓRIO
O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra […], imputando-lhes a prática do delito previsto no artigo 54, § 2º, inciso V, da Lei nº 9.605/98, estando assim descritos os fatos na inicial:
“(…) As agentes de fiscalização realizaram vistoria no local e constataram lançamento de efluentes (DBO, Fósforo e Nitrogênio) fora dos padrões estabelecidos pelo Decreto 14.250/81, contaminando o corpo receptor com coliformes fecais, eutrofisação por elevado teor de fósforo e consumo de oxigênio por elevada demanda bioquímica de Oxigênio – DBO e o Auto de Infração Ambiental.
Após o recebimento da peça acusatória e a realização dos interrogatórios dos réus, foi declinada a competência para este Tribunal, em razão de o denunciado encontrar-se exercendo o cargo de Prefeito do Município.
Remetidos os autos a esta Corte, a Procuradoria Regional da República manifestou-se pela competência do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina para processar e julgar o feito. É o relatório. Apresento em mesa.
VOTO
A Constituição Federal, em seu artigo 23, incisos VI e VII, prevê que a proteção ao meio ambiente é matéria de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sendo que, quanto aos crimes ambientais, não há dispositivo constitucional ou legal que expresse qual a Justiça competente para julgamento.
A competência da Justiça Federal encontra-se expressamente prevista na Constituição Federal, enquanto que a Estadual é remanescente. Em relação àquela, dispõe o artigo 109, inciso IV, da Lei Maior:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
Assim, não se evidenciando qualquer dessas hipóteses, mesmo no caso de crimes ambientais, cabe à Justiça Comum Estadual, como regra, o processo e julgamento do delito. Acerca do tema, reproduzo o seguinte ensinamento doutrinário:
Os crimes contra a flora são, em princípio, da competência da Justiça Estadual. (…) Em realidade, nada há que justifique a competência federal, exceto se o delito foi praticado em detrimento de bem da União, ou seja, a uma unidade de conservação federal.
Aí incide a regra geral do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal. Por exemplo, se o infrator corta árvores clandestinamente no Parque Nacional de Itatiaia, incorrendo no delito previsto no art. 38 da Lei nº 9.605, de 1998, a competência será da Justiça Federal.
Porém, se ele pratica a mesma ação contra árvores pertencentes a particulares ( Código Civil, arts. 43 e 528), ao Estado ou a um Município, razão não há para a competência ser da Justiça Federal: a uma, porque as árvores não pertencem à União; a outra, porque a fiscalização não é mais privativa do órgão federal, mas comum aos órgãos ambientais estaduais ou municipais ( CF, art. 23, incs. VI e VII).
Nesse sentido, há dezenas de precedentes do Superior Tribunal de Justiça, dos quais se menciona um a título de exemplo.
Aqui merece referência a regra do art. 225, § 4º, da Constituição Federal, que atribui o caráter de patrimônio nacional à Floresta Amazônica, Serra do Mar, Mata Atlântica, Pantanal e Zona Costeira. Isto não quer dizer que a propriedade é da União, mas sim que se trata de patrimônio comum a todos os brasileiros, cabendo-lhes zelar por ele.
Ou, como ensina José Afonso da Silva, “o significado primeiro e político da declaração constitucional de que aqueles ecossistemas florestais constituem patrimônio nacional está em que não se admite qualquer forma de internacionalização da Amazônia ou de qualquer outra área.”
Logo, não constitui, em princípio, competência da Justiça Federal julgar os crimes praticados contra as referidas áreas protegidas.
O Supremo Tribunal Federal, ainda que sem adotar a posição de Silva, no sentido de que o objetivo é evitar a internacionalização da Amazônia, reconheceu que patrimônio nacional não se confunde com o da União.
(Freitas, Vladimir Passos de e Freitas, Gilberto Passos de, Crimes Contra a Natureza (de acordo com a Lei 9.605/98), 7ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 60)
Sobre a questão, colaciono julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, respectivamente:
CRIMINAL. RESP. COMPETÊNCIA. INTIMAÇÃO DO DENUNCIADO. DESNECESSIDADE. RELAÇÃO JURÍDICA NÃO CONSOLIDADA. CRIME AMBIENTAL. TRANSPORTE DE MADEIRA SEM AUTORIZAÇÃO. COMPETÊNCIA CONCORRENTE PARA LEGISLAR E FISCALIZAR O CUMPRIMENTO DE NORMAS AMBIENTAIS PELA UNIÃO, ESTADOS E MUNICÍPIOS. LESÃO A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO NÃO DEMONSTRADA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. RECURSO DESPROVIDO. (…)
II. Tendo em vista que a competência para legislar acerca de matéria ambiental – bem como de exercer o poder de polícia com o fim de assegurar o cumprimento das normas – é concorrente, sendo repartida entre a União, os Estados e os Municípios, somente a lesão específica aos interesses da União é capaz de atrair a competência da Justiça Federal, para o julgamento de eventuais crimes ambientais.
III. Existência de eventual lesão a bens, serviços ou interesses da União, a ensejar a competência da Justiça Federal não demonstrada. IV. Cancelamento da Súmula n.º 91 por esta Corte. V. Recurso desprovido. (STJ, 5ª Turma, RESP 697585/TO, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ: 18/04/2005, p. 383)
COMPETÊNCIA. CRIME AMBIENTAL. ARTIGO 50 DA LEI N.º 9.605/98. DESTRUIR OU DANIFICAR VEGETAÇÃO DE CERRADO SEM AUTORIZAÇÃO DO IBAMA, AUTARQUIA FEDERAL. DELITO OCORRIDO EM PROPRIEDADE PRIVADA. JUSTIÇA COMUM ESTADUAL.
Hipótese em que não se configura a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do feito, nos termos do art. 109, inciso IV, da Carta Magna, porque o interesse da União, no caso, se manifesta de forma genérica ou indireta.
Recurso Extraordinário não conhecido. (STF, 1ª Turma, RE 349191/TO, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ: 07/03/2003).
Ainda, em caso análogo, assim decidiu esta Corte:
DIREITO PENAL E PROCESSUAL. COMPETÊNCIA. INQUÉRITO. PREFEITO MUNICIPAL. DESVIO DE RIO. OBRA POLUIDORA. ART. 60 DA LEI 9.605/98. AUSÊNCIA DE INTERESSE ESPECÍFICO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO A BENS DA UNIÃO. COMPETÊNCIA ESTADUAL.
1. O evento supostamente delituoso apurado nos autos é a abertura de acesso para veículos às margens de rio estadual, além do desvio do curso d´água, enquadrado pelo Ministério Público no artigo 60 da Lei 9.605/98.
2. Não se cogitando do crime de extração de recursos minerais previsto no art. 55 da referida norma, não se justifica a competência desta esfera do Poder Judiciário, pois inexiste demonstração de lesão concreta ao patrimônio público federal.
3. A hipotética infração penal foi praticada no âmbito municipal, não havendo indicativos de ofensa direta a bens da União, cabendo, portanto, à Justiça Estadual processar e julgar o feito. Precedentes. (TRF-4ª Região, 4ª Seção, QUOINQ Nº 2006.04.00.000875-0/SC, Rel. Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, DJU: 27/09/2006, p. 603)
Na espécie, a acusação imputa aos réus a prática de crime ambiental, em face de lançamento, no Rio Velho, de efluentes da Unidade de Tratamento de Esgoto Sanitário da CASAN, módulos I e II, de Paranaguamirim, na cidade de Joinville/SC.
Portanto, o dano ambiental atribuído aos acusados ocorreu direta e imediatamente no Rio Velho, sendo que este rio cruza a cidade de Joinville/SC, desembocando na Lagoa de Saguaçu e essa, por sua vez, na Baía da Babitonga, ou seja, não se configura o referido rio como bem da União, o que, como antes exposto, não atrai a competência da Justiça Federal para o caso.
De outra parte, vê-se que a demanda teve o início de seu processamento no Juízo Federal, com realização de parte da instrução, sendo declinada a competência para esta Corte em razão de um dos réus exercer o cargo de Prefeito do Município.
Acerca da matéria, o Código de Processo Penal prescreve o seguinte:
Art. 567. A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente.
Assim, entendo ser do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina a competência para processar e julgar o feito, cabendo à referida Corte decidir pelo aproveitamento da prova já colhida.
Isto posto, voto no sentido de acolher a questão de ordem para declinar da competência para a Justiça Estadual, determinando a remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.